SERVIÇOS “ESSENCIAIS” NA PANDEMIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS TRABALHADORES POR APLICATIVO E O FENÔMENO DA UBERIZAÇÃO

Resumo

A democratização do acesso á internet fez com que diversas empresas de serviços de transporte e entrega por aplicativos se desenvolvessem no mercado digital. Com o advento da pandemia da COVID-19 e a imposição de medidas como o isolamento social e o fechamento do comércio não essencial, tais serviços se tornaram de extrema necessidade, aumentando a demanda pelo serviço terceirizado dos motoristas e entregadores. Entretanto, se de um lado temos o aumento de trabalho, do outro temos menos renda, maior risco à saúde e realidades desumanas de trabalho, mostrando que a terceirização mitiga direitos trabalhistas, criando o fenômeno da uberização do trabalho que pode se mostrar muito cruel num cenário de crise como a COVID-19.

Artigo

SERVIÇOS “ESSENCIAIS” NA PANDEMIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS TRABALHADORES POR APLICATIVO E O FENÔMENO DA UBERIZAÇÃO

Gracy Helen Marinho de Andrade[1]

RESUMO

  A democratização do acesso á internet fez com que diversas empresas de serviços de transporte e entrega por aplicativos se desenvolvessem no mercado digital. Com o advento da pandemia da COVID-19 e a imposição de medidas como o isolamento social e o fechamento do comércio não essencial, tais serviços se tornaram de extrema necessidade, aumentando a demanda pelo serviço terceirizado dos motoristas e entregadores. Entretanto, se de um lado temos o aumento de trabalho, do outro temos menos renda, maior risco à saúde e realidades desumanas de trabalho, mostrando que a terceirização mitiga direitos trabalhistas, criando o fenômeno da uberização do trabalho que pode se mostrar muito cruel num cenário de crise como a COVID-19.

PALAVRAS-CHAVE: COVID-19; Terceirização; Direitos Trabalhistas; Direitos fundamentais; Uberização;

 

 

  • INTRODUÇÃO

Desde o desenvolvimento exponencial da internet e dos meios eletrônicos de acesso como smartphones e computadores mais acessíveis à população, os comportamentos de compra e também da reação do mercado vinham se desenvolvendo. É notório que diversas empresas nasceram de maneira exclusivamente virtual e tendem a crescer e se solidificar no mercado cada vez mais, como por exemplo, a Mercado Livre, Ifood, Uber, 99 Táxis, Rappi, Loggi, Nubank, Picpay etc. São empresas de grande porte e totalmente virtuais, com serviços que vão desde lojas de venda de produtos, comida, serviços de transporte e banco, e que pela própria praticidade e evolução da internet iriam se destacar cada vez mais no cenário nacional.

 Ocorre que, desde fevereiro/2020 o mundo enfrenta uma pandemia da COVID-19, que já ceifou a vida de mais de meio milhão de pessoas só no Brasil, e que necessitou de diversas medidas para conter o avanço da doença, dentre elas o isolamento social e consequentemente o fechamento de todo estabelecimento que não fosse essencial.

Até aquele momento, eram tidos como serviços essenciais basicamente transporte público coletivo, segurança e saúde. Entretanto, com o advento da pandemia e o implemento do isolamento social, decretos surgiram para ampliar essa lista e incluir outras atividades para atender a necessidade da população e garantir a eficácia do isolamento para conter o avanço da doença. Nesta toada, o decreto 10.329/2020 incluiu no rol de serviços essenciais os serviços de transporte de passageiros por aplicativo.

Em que pese, por força de lei, apenas o serviço de transporte de pessoas por aplicativo, como Uber e 99 Táxis, tenha sido reconhecido como serviço essencial, na prática, todos os serviços semelhantes de motoristas e entregadores por aplicativo se tornaram de extrema importância, fosse pelo fechamento do comércio não essencial, como lojas de roupas e demais artigos, fosse pelo medo da população em ir a supermercados, por exemplo. Essa importância se deu não só por conta da pandemia necessariamente, mas também por um processo que diversos autores chamam de “Uberização do Trabalho”.

Uma pesquisa realizada pela Criteo, canal programático de marketing da Google, e divulgada pela ABRAS – Associação Brasileira de Supermercados (2021), 67% dos consumidores passaram a comprar pela internet descobrindo uma nova forma de consumo que promete perdurar para depois da pandemia, e inclusive, segundo a pesquisa, as marcas não conseguirão sobreviver se não se adequarem ao meio digital a partir de agora.

Com essa alta procura, obviamente os serviços terceirizados oferecidos pelos motoristas e entregadores para os aplicativos cresceu de maneira estrondosa para atender a demanda. Entretanto, se de um lado temos mais trabalho, do outro temos menos renda e maior risco à saúde. A precarização do trabalho, que já era um problema na terceirização, passa a viver um cenário ainda pior durante a pandemia.

Sendo assim, este artigo tem como finalidade investigar e responder: quais são as condições de trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativos durante a pandemia da COVID-19?

O que se pretende demonstrar através do referido estudo é que a terceirização, que por si só já é uma forma de mitigar alguns direitos trabalhistas, dada a forma como se forma esse vínculo de trabalho, tende a piorar com a alta demanda de entregas, pois as condições de trabalho para atender o fluxo de pedidos tendem a se tornar ainda mais precárias, motivo que enseja, portanto, a atenção dos operadores de direito em prol da preservação da dignidade da pessoa humana e das mínimas e dignas condições de trabalho, ainda que este não seja aquele contrato regido pela CLT.

Por conta disso, o objeto de estudo desta pesquisa é pertinente ao direito do trabalho, mas também encontra luz no direito constitucional vez que abre discussão para a afronta aos direitos fundamentais guardados pela carta magna.

Para atingir tal objetivo, a pesquisa será composta de quatro seções. A primeira tem como objetivo trazer as principais empresas e a forma como se desenvolveram na internet. A segunda irá abordar os aspectos gerais dos contratos de trabalho autônomo ou terceirizado versus o fenômeno da uberização do trabalho no século XXI, a terceira irá abordar as condições de trabalho e a precarização da profissão digna destes trabalhadores.

Este estudo enquadra-se na vertente jurídico-social, com finalidade exploratória, do gênero de pesquisa empírica e de abordagem qualitativa. Os procedimentos adotados serão de pesquisa bibliográfica e documental através de livros, reportagens e estudos realizados por empresas e organizações.

 

  • O CRESCIMENTO DAS EMPRESAS DE SERVIÇOS POR APLICATIVO       

Em que pese o surgimento do celular e a democratização da internet seja algo bem recente em nossas vidas, e inclusive não atinja 100% da população, hoje parte da nossa rotina tem influência de algum tipo de aplicativo de smartphone. Hoje temos a possibilidade de pedir um carro para nos levar ao trabalho ou lazer, ou pedir nosso almoço em questão de minutos e sem sair de casa. Podemos também agendar serviços ou fazer compras de supermercado com apenas alguns cliques. Os bancos virtuais e os aplicativos de compra online também vêm apresentando crescimento exponencial nos últimos anos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Locomotiva para a revista Exame (2019) apontou que temos no Brasil cerca de 220 milhões de smartphones em circulação e 125 milhões de brasileiros com acesso à internet, isso em 2019, certamente esses números devem ter crescido de forma considerável, principalmente após a pandemia onde a internet e o comportamento do consumidor virtual tiveram uma mudança drástica.

 Àquela época da pesquisa (2019), o instituto afirmou que ao menos 45 milhões de pessoas se utilizavam dos aplicativos para obterem renda, sendo 5,5 milhões participantes de plataformas como Uber, 99, Ifood e Rappi, consolidando o fenômeno mundial que são os aplicativos, que prometem, inclusive, um faturamento de mais de 130 bilhões de dólares em 2023.

O Brasil virou um dos terrenos mais férteis para a popularização dos apps por uma conjunção de fatores econômicos e sociais. A recessão que assola o país desde 2014 e a taxa de desemprego elevada levaram as pessoas a procurar serviços mais baratos e também a buscar novas formas de trabalho. Soma-se a esse cenário a ascensão das classes C, D e E, que passaram a consumir pela internet e, sobretudo, pelo celular. De 2010 a 2018, a penetração de smartphones na classe C passou de 42% para 77%; entre as classes D e E, de 13% para 49%. (OLIVEIRA, et al, 2019 online).

A Uber chegou ao Brasil em 2014, mudando a forma como as pessoas se locomovem nos grandes centros urbanos, mas também abrindo a possibilidade de emprego informal para diversos brasileiros. Em 2019, 5 anos após sua chegada ao país, a Uber tinha realizado 2,6 bilhões de viagens e 17 bilhões de km rodados, segundo o site da empresa, afirmando inclusive que São Paulo é a maior cidade em volume de viagens pelo app no mundo. Afirma ainda, que em 2019, a empresa contava com 22 milhões de usuários ativos e 600 mil motoristas parceiros.

Os motoristas parceiros da Uber, prestam serviços de transporte remunerado privado individual de passageiros, conforme dispõe a lei 12.587/12 que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana e foi regulamentada na lei nº 13.640/18 que em seu art. 4º inciso X diz:

X – Transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede.

A lei exige ainda que os motoristas parceiros estejam cadastrados como contribuinte individual do INSS nos termos da alínea H do inciso V do art. 11 da Lei nº 8.213/91.

Dentre os serviços oferecidos pela Uber, temos além de viagens particulares, individuais ou compartilhadas, serviço de mercado e entrega de comida, aluguel de patinetes etc.

A concorrente da Uber, a 99, é uma empresa brasileira fundada em 2012 por três estudantes da Poli-USP, que com um gasto de apenas R$50 mil reais se transformou na primeira empresa iniciante brasileira a valer 1 bilhão de dólares (Manzoni Jr. E Loureiro 2018, online).  Tal sucesso fez com que seis anos depois, em 2018, fosse comprada pela Didi Chuxing, uma plataforma de mobilidade chinesa que é líder no mundo, e que também tem como parceira a Uber.

Os números da 99 são de 18 milhões de passageiros, 600 mil motoristas e mais de mil cidades atendidas, segundo site da própria empresa.

A Ifood, que também é uma empresa brasileira, iniciou no mercado em 2011 e não foi de forma digital. No início a empresa era um guia impresso de cardápios que contava com uma central telefônica por onde o cliente ligava e fazia seu pedido. No ano seguinte com a criação do site e do aplicativo a empresa explodiu no mercado digital atraindo investimentos de empresas importantes como o Grupo Movile e a fusão com a empresa Spoon Rocket, transformando a Ifood, que agora atende pelo nome de FoodTech, numa referência na América Latina presente no Brasil e também na Colômbia.

Ela conta com mais de 160 mil entregadores ativos na plataforma e 250 mil nos restaurantes parceiros, atendendo mais de 1200 cidades no Brasil com uma demanda de 60 milhões de pedidos entregues por mês. Dentre os serviços oferecidos temos o de entrega de refeições, mercado, loja online com produtos para restaurantes, ifood empresas para pagamento de refeições em meio corporativo, vale refeição e ifood card como vale presente.

Outra empresa de destaque no meio digital por aplicativos é a Mercado Livre, que veio da Argentina, e é uma das maiores empresas de tecnologia para venda online da América Latina e que segundo o site da própria empresa, é o sustento de mais de 111 mil pessoas, bem como alimentam 98.648 postos de trabalho, movimentando um montante que representa 0,12% do PIB do Brasil.

São, segundo a empresa, 10 milhões de vendedores e 34 milhões de compradores ativos, sendo o maior site de comércio eletrônico do Brasil ocupando posição de destaque de 5º lugar no ranking dos 10 sites com maior audiência do país.

 Embora a empresa ofereça várias vertentes de negócios como envios, pagamento e marketing, a principal atividade é a de compra e venda online. A princípio as entregas eram feitas por meio dos correios, hoje o site oferece a opção de entrega por motorista particular, que são prestadores de serviços contratados de forma autônoma para dar conta da demanda das entregas e também melhorar o serviço quanto ao tempo e comodidade para o consumidor.

A Rappi é a inovação do meio logístico, pois em 2020, segundo o site Startse (2021), a empresa se consolidou como o mais completo super app da América Latina, porque é uma empresa que faz delivery de basicamente qualquer coisa em minutos, diferente dos outros aplicativos que tem os serviços segmentados. Para se ter uma noção de como eles literalmente fazem delivery de tudo, é possível, através do RappiPay lançado em 2018 que os usuários façam transferências entre si ou até mesmo saques usando o sistema de delivery.

“Temos a plataforma das plataformas, fortalecendo as funcionalidades de Supermercados e Farmácias e lançamos verticais variadas, como E-commerce, Live Shopping, Chefs, Travel e RappiBank. Essa multiverticalidade significa que temos todos os apps em um só para atender o usuário”, explica o presidente da Rappi no Brasil. (STARTSE, 2021 online).

Vale ressaltar que essas são apenas algumas das empresas que têm destaque de relevância no mercado digital por aplicativos do Brasil. Tem-se que considerar que diversas empresas que eram conhecidas como lojas físicas passaram a vender pela internet e também a recorrer aos serviços de entrega por motoristas autônomos. Podemos citar, como exemplo, a Magazine Luiza e as Casas Bahia, que segundo o site Ecommerce Brasil (2021) tem as entregas administradas pela Logbee e pela Asap Log, respectivamente.

A Logbee parece adotar um sistema parecido com o da Mercado Livre, onde o motorista parceiro vai até o galpão de carga, coleta as mercadorias e faz as entregas, sendo cerca de 50 a 80 pedidos por dia, com uma remuneração em torno de R$200 a R$300. Já a Asap Log adota sistema parecido com a Uber, onde através de um aplicativo o motorista parceiro recebe a notificação de entrega e valor e escolhe se aceita ou não o serviço, segundo o site Ecommerce Brasil (2021).

Ainda de acordo com o site, a Asap Log conta com 200 mil motoristas ativos, em que pese não tenha demanda para tantos profissionais, enquanto na Logbee são 2.500 trabalhadores.

Como se pode observar o crescimento da economia por aplicativo vem se dando de maneira exponencial, seja pelo surgimento de novas empresas, seja pelo crescimento e desenvolvimento das que já estão consolidadas no mercado e se renovam na forma de trabalhar. Ocorre que, estamos também falando de milhares, senão milhões de trabalhadores com vínculo regido pelo Código Civil, que trabalham de maneira árdua para atender a demanda, com pouquíssimas ou nenhuma garantia conforme veremos na seção seguinte que tratará da forma de contratação terceirizada versus ao regime celetista de trabalho.

  • ASPECTOS GERAIS DO CONTRATO DE TRABALHO AUTÔNOMO OU TERCEIRIZADO E O FENÔMENO DA UBERIZAÇÃO DO TRABALHO DO SÉCULO XXI.

A título de esclarecimentos, precisamos primeiramente registrar que trabalho autônomo é diferente do trabalho terceirizado em si. Na seara do que se discute no presente artigo, devemos levar em consideração as seguintes vertentes: primeiramente trata-se de um trabalho terceirizado quando temos, por exemplo, empresas como a Mercado Livre, Casas Bahia e Magazine Luiza, que são em sua atividade principal, venda de produtos, por exemplo. O serviço de entrega nesses casos, seria um serviço terceirizado, onde a empresa delega a outro uma obrigação sua, qual seja, a entrega do produto ora comprado pelo consumidor.

Já o serviço autônomo, propriamente dito, aproxima-se daquilo que é feito pela Uber e 99, cujo serviço oferecido é na sua atividade-fim, aquilo que o motorista parceiro, ora entendido como autônomo, faz: o transporte de passageiros.

De uma forma ou de outra temos em ambos os casos um contrato de trabalho e não de emprego. Por sua vez, regido pelo Código Civil e não pela Consolidação das Leis Trabalhistas.

A prática de terceirizar as atividades-meio de algumas empresas tem sido cada vez mais recorrente dado o crescimento exponencial de algumas empresas. Tal ação tem se mostrado muito eficaz, pois segundo Oliveira (2009, p.2) dessa maneira, as empresas podem se dedicar aos seus produtos enquanto terceiros eficientes e eficazes realizam as atividades-meio, o que se perfaz posteriormente num mercado mais competitivo. Mas ressalta a autora, que existem dois vieses da terceirização: onde de um lado temos o aspecto meramente administrativo, que é usar a terceirização como uma ferramenta que possibilita que a empresa possa se dedicar ao negócio principal delegando atividades a outros, e por outro lado há o aspecto de recursos humanos, onde há de se ter o cuidado para que essa terceirização não se torne uma precarização do trabalho.

Completando tal entendimento e, inclusive, respaldando aquilo que apresentamos na justificativa do presente estudo, no que concerne ao crescimento das vendas e a necessidade de oferecer maior suporte de entrega, Batista (2006, p.65) trabalha a questão da ampliação da cadeia de produção, explicando que quanto mais ela se amplia mais se difundem os processos de trabalhos precários. O autor ainda aponta que isso é consequência da própria concorrência de mercado, pois uma vez que a concorrência é grande os preços praticados tendem a cair, fazendo com que as empresas busquem economia no que é possível para se sustentarem num mercado cada vez mais competitivo.

Em seu estudo, Andersen (2017, p.95) já havia apontado que a terceirização no Brasil é um problema, pois em que pese seja de suma importância para o sucesso das empresas como estratégia para o desenvolvimento da economia e geração de empregos, é um meio pelo qual se precariza o trabalho, pois há redução dos salários e benefícios, e é um meio mais propenso a fraudes e piores condições de trabalho, além de inclusive ser penoso no que se trata a execução dos créditos trabalhistas, complementando ainda que desde que foram iniciadas as regulamentações do trabalho terceirizado no Brasil que se solidificou com a lei 13.429/17, há um flerte com radicalismos paternalistas e exageros liberais.

            Mas até aqui, estamos falando sobre formas de execução do trabalho e da natureza jurídica do trabalho em si. Aliás sobre isso também cabe uma observação, pois há diferença entre trabalho e emprego, vez que o trabalho pode ser entendido como toda atividade humana que modifica o meio e ao fazer isso modifica a si mesmo, o trabalho está mais ligado a sonhos e objetivos, realizações pessoais e crescimento. Trabalhamos para construir um futuro melhor, por exemplo. Já o emprego é uma construção histórica e determinada que sujeita o empregado a um tipo de atividade imposta por outra pessoa, é uma forma de sobrevivência de uma sociedade capitalista, e se perfaz, segundo algumas teorias numa fonte de medo e bloqueio de capacidades vez que é o empregador quem detém todos os meios de produção e determina como, quando, onde, e por quanto o trabalho será exercido. Daí a necessidade da criação de leis como a CLT para proteger a parte vulnerável da relação, ou seja, o empregado.

            Após dialogar sobre tais formas de trabalho, deve-se apontar para o fenômeno social que acontece na atualidade: a uberização do trabalho, que é exatamente o que acontece com todos os casos acima apontados, não somente com os trabalhadores da empresa Uber. Isso porque temos na verdade uma expropriação secundária potencializada, vez que a Uber – e aqui estenda o entendimento para todos os demais apps – não detém nenhum meio de produção da atividade.

            É um aplicativo, gerenciado por algoritmos, que faz uma ponte entre o usuário e o trabalhador parceiro. Em tese, quem detém os meios de produção são o motorista/entregador, ou seja, o veículo de entrega, e a empresa que fornece o produto, como nos casos de venda de produtos e comidas, a remuneração é feita diretamente pelo cliente, e o aplicativo em si, só colhe lucros dessa relação. Sem estabelecer qualquer relação de emprego, via de regra, criando uma nova realidade de trabalho sem emprego, num limbo entre a formalidade e a informalidade.

            Antunes (2018), considera a uberização uma forma de escravidão digital e afirma que:

O caso mais emblemático é o da Uber, em que trabalhadores e trabalhadoras com automóveis próprios (seus instrumentos de trabalho) arcam com despesas de previdência, manutenção dos carros, alimentação e etc, configurando-se como um assalariamento disfarçado de trabalho “autônomo”. E, ao fazê-lo desse modo, as empresas se eximem dos direitos trabalhistas, burlando abertamente a legislação social em diversos países onde atuam. Com o trabalho on-line, que gera uma forte ampliação do tempo disponível para o trabalho, amplia-se ainda mais o que venho denominando de escravidão moderna na era digital. (ANTUNES, 2018 p.8)

Cantor apud Antunes (2018, p.47) destaca que:

Em síntese, com a universalização do capitalismo, o que vivemos hoje é a plena “subsunção da vida ao capital”, o que significa que todos os aspectos da vida foram mercantilizados e submetidos à tirania do tempo abstrato. Em concordância com esse pressuposto, o capital rompeu a distância que separava do tempo do trabalho o tempo livre, ou o tempo da vida.

Isso foi conseguido com a utilização de múltiplas estratégias, entre as quais sobressai a flexibilização do trabalho, que não é mais do que a ampliação da jornada de trabalho e a volta de formas de exploração em que impera o mais-valor absoluto[…]

Em que pese pareça uma relação dentro da lei, com um discurso lindo sobre aproximar fornecedores e consumidores, sobre ser seu próprio chefe e trabalhar por conta própria, sobre autonomia e outras poesias que as empresas normalmente se utilizam para encantar os trabalhadores como a de que você é um empreendedor cultivando o seu próprio capital humano, tudo não passa de um mero discurso, pois não há liberdade, tampouco autonomia.

Primeiramente e principalmente porque quem determina o valor do serviço é o aplicativo, além disso o aplicativo estipula metas fazendo com que o entregador/trabalhador parceiro se submeta a muitas horas de trabalho para garantir o mínimo para seu próprio sustento. Além disso, o trabalhador se submete a todos os comandos e diretrizes impostos pela plataforma, não tendo muita margem de escolha ou negociação. Além de ficar, muitas das vezes, subordinado exclusivamente à avaliação de clientes, trazendo uma realidade de vários chefes para um só trabalhador, e proporcionando um descredenciamento de parceiros como se fossem meramente números.

 

Imagem 1: A imagem perfeita do trabalho no século XXI

 

Fonte: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/04/imagem-perfeita-do-trabalho-no-seculo-xxi.html> Acesso em 05 set. 2021

A imagem acima viralizou nas redes sociais acompanhada do seguinte texto:

Um trabalhador sem vínculo empregatício e sem direito trabalhista fazendo entrega de comida de um restaurante que não é onde ele trabalha, para alguém que a pediu por um aplicativo milionário que também não é onde ele trabalha. Usando uma bicicleta que não é sua e pela qual ele paga para usar a um banco bilionário que também não é onde ele trabalha. Ele não trabalha em lugar nenhum, sem vínculo empregatício e direitos trabalhistas, porém trabalha muito (e provavelmente recebe pouco). (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2019 online).

A foto e o texto acima, expressam de diversas formas a palavra risco, primeiramente porque essas pessoas trabalham sem nenhuma proteção para sua incolumidade física, saúde e segurança em si, sejam os entregadores que o fazem de bicicleta, que não possuem um EPI adequado, sejam os entregadores em moto que não recebem, por exemplo, o adicional de periculosidade disposto no §4º do art. 193 da CLT, sejam os motoristas de veículos que arcam do próprio bolso com um seguro veicular.

Há também o risco do próprio negócio, que é transferido ao trabalhador, em contrariedade ao que dispõe a CLT em seu artigo 2º que determina que o risco do negócio é do empregador. Também há que se falar do risco da própria remuneração em si, pois vez que ele recebe estritamente pelo que trabalhou, sua produção é prejudicada por diversos fatores, como condições climáticas, temporais, de saúde e também limitações físicas, como a fome e a própria exaustão.

 

  • AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS TRABALHADORES DE APLICATIVO ANTES E DEPOIS DA PANDEMIA DA COVID-19

Conforme já explicitado no início do referido artigo, a democratização da internet seria um fato social que por si só impulsiona o consumo digital e consequentemente mudaria o comportamento de compras de diversos consumidores, principalmente após o surgimento de empresas exclusivamente digitais e a mudança de logística de empresas físicas já consolidadas. Entretanto, com o advento da pandemia e a imposição do isolamento social e do fechamento do comércio não essencial, essa mudança acabou por acontecer mais cedo e de forma mais intensa.

Martuce (2020, online) em matéria publicada pelo site Ecommerce Brasil, analisou dados de variadas empresas sobre a mudança de comportamento de compras na pandemia. Segundo o autor, um levantamento feito pela empresa de inteligência de mercado Compre&Confie, a transformação digital resultou num faturamento de R$27,3 bilhões de reais para o e-commerce de todo o Brasil apenas entre os meses de fevereiro e maio de 2020, o que representa um aumento de 71% com relação ao mesmo período em 2019, início da pandemia e das medidas de isolamento no Brasil.

Ainda segundo ele, um outro levantamento feito pela empresa Letta que analisou 182 lojas e 5,8 mil produtos em diversos setores, a procura pelos produtos fez os preços terem alterações, fator impactado ainda pelos problemas de abastecimento no início da quarentena. O autor afirma ainda que de acordo com o site Social Miner, o varejo virtual se tornou uma forma de distração, fazendo os consumidores acessarem as lojas e apps como forma de entretenimento na pandemia, com altos picos de acesso durante a noite.

O aumento repentino dessa demanda dado o crescimento das vendas e a necessidade consequentemente de entregadores, impactou diretamente todos os trabalhadores por aplicativo. O Observatório Social da Covid-19 da UFMG realizou um estudo sobre o impacto da pandemia para os motoristas de aplicativo (2020), e dentre suas análises apontou que de um lado houve perda significativa dos rendimentos, e de outro um aumento de exposição ao risco da doença. Aponta ainda que até 2015 o número de condutores de veículos para transporte particular que trabalhavam por conta própria no Brasil, de acordo com as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), era de aproximadamente 643 mil trabalhadores, passando para 1.124 milhão de condutores em abril de 2020.

A pesquisa ainda aponta que antes da pandemia o rendimento salarial dos motoristas por aplicativo já era inferior à média de mercado, mesmo quando estes trabalham 6h a mais em comparação a outros trabalhadores, e que essa renda passou a valer menos de 80% da renda média do trabalho no país em abril de 2020. Sendo que dos motoristas analisados, apenas 8% deles tinham outra ocupação, ou seja, a maioria esmagadora dependia do trabalho pelos apps para sobreviver, mesmo que 18%, segundo a pesquisa, possuíam curso superior completo.

Sobre esse último ponto, um levantamento feito pela plataforma Quero Bolsa com base em microdados da Pnad-Covid (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) e divulgado pela BBC News (2020), em maio de 2020 cerca de 42 mil brasileiros com ensino superior completo, inclusive alguns com pós graduação, se declararam como “entregador de mercadorias”. É um número expressivo de profissionais qualificados fora de sua área de formação. Segundo o estudo, esse número cresceu porque 8,8% do total de entregadores com ensino superior, algo em torno de 3,7 mil entregadores, foram afastados do trabalho durante a pandemia, tendo que buscar uma outra fonte de renda.

Entretanto, buscar uma forma de sobrevivência trabalhando por app na pandemia, se tornou cada vez mais difícil, árduo, desumano e perigoso, pois de acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit – Unicamp) e também divulgada pela BBC News, os trabalhadores precisavam enfrentar extensas e cansativas jornadas, só que em piores condições, haja vista terem que enfrentar um auto risco de contágio, custear medidas de proteção de seu próprio bolso, além de enfrentar significativa queda na remuneração pelos serviços.

No documentário “Vidas Entregues” produzido pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro e publicado no Youtube (2019), o entregador Vitor Pinheiro dos Santos, relata ter dias que não consegue fazer nenhuma entrega, ou que leva o dia inteiro para fazer uma entrega de R$7,00, e é motivado por outros entregadores que vem de outras cidades a não desistir. Alega também que há uma valorização dos clientes em detrimento dos entregadores, que por muitas das vezes se um cliente alega não ter recebido o pedido, ainda que entregue, o valor é descontado do entregador.

Já a entregadora Bianca Sousa dos Santos, afirma que paga no aluguel da bicicleta do Itaú o valor de R$20,00 por mês, e que precisa rodar de 1h em 1h, para não pagar multa que é cobrada por hora. Ou seja, isso consequentemente aumenta o tempo de trabalho, pois o dinheiro que ela poderia fazer em 4h de trabalho ininterrupto, acabam se tornando 8h para receber o mesmo valor.

Nenhum deles se consideram microempreendedores, apenas que não tem um patrão, mas que não enxergam nessa forma de trabalho uma forma de empreender, e se sentem na verdade desesperados pelo desemprego, ao invés de terem uma forma autônoma de auferir renda. O entregador Vitor, inclusive, afirmou que certa vez, quando os trabalhadores do Ifood tentaram fazer greve foram bloqueados no aplicativo ficando sem poder trabalhar, situação que se repete em outros casos conforme vamos expor abaixo.

 O filme GIG – A Uberização do Trabalho (2019) produzido pelo Repórter Brasil, relata o dia a dia chocante dos trabalhadores. Em depoimento um dos trabalhadores afirma que não se considera autônomo, uma vez que o aplicativo é quem determina o valor da corrida ou entrega, cobra esse valor do cliente e repassa para o trabalhador o que ele, o aplicativo, julga justo. E que o argumento de que o trabalhador teria liberdade para recusar ou não corridas, é discutível, uma vez que ele necessita das corridas para garantir seu salário, já que recebe estritamente pelo que trabalha, não há exatamente uma margem de escolha.

Os especialistas entrevistados para o filme alegam que do ponto de vista técnico, nunca foi tão fácil regular a profissão, uma vez que tendo os aplicativos toda a atividade prestada pelo trabalhador fica registrada, entretanto, do ponto de vista político há sempre complicações por conveniência e interesse. Afirmam também que acontece um comportamento em cadeia no sentido de que um trabalhador aceita ganhar pouco porque reconhece que tem um colega de aplicativo que ganha ainda menos, e que é melhor ganhar pouco do que ficar sem trabalho, causando uma espiral decente assustadora. A democratização do trabalho está vindo na forma de precarização do trabalho e vida.

Um outro entregador entrevistado, havia sofrido um acidente na motocicleta e fraturado a perna. Estava afastado em recuperação em casa, questionado informou que não pagava seguro da moto, e que seria impossível arcar com esse custo, tendo que pagar também internet e combustível para trabalhar, pois todos os custos são arcados pelos próprios trabalhadores. Que no acidente deu perda total na moto, e que por sorte o veículo que colidiu com ele tinha seguro e este arcaria com o valor da moto, se não o mesmo ainda perderia seu instrumento de trabalho.

Os especialistas alertam para a ‘gamificação” dos aplicativos, ou seja, um conjunto de recompensas ou premiações oferecidas pelos apps para o entregador que completar X entregas em Y horas, ou o motorista que fizer X corridas em Y horas. Segundo os especialistas do filme, isso aumenta o risco de acidentes porque força os trabalhadores a estenderem ainda mais as horas de trabalho, ou até mesmo trabalhar sob pressão e contra o tempo para garantir as metas, os motivando a infringir leis e colocar sua vida e a dos demais em risco por um valor que poderá receber a mais e que por ser extremamente mal remunerado, muitas vezes precisa.

E é de fato uma questão de jogos e psicologia comportamental. Segundo o jornal Folha de São Paulo, em reportagem de matéria desenvolvida pelo New York Times (2017), a Uber, procurando manipular o comportamento de seus motoristas para que trabalhassem em horários específicos e por uma determinada quantidade de horas:

Empregou centenas de cientistas sociais e especialistas em dados, o Uber testou técnicas de videogames, recursos gráficos e recompensas não monetárias de baixo valor capazes de estimular os motoristas para que trabalhassem mais – e ocasionalmente em lugares e horários que são menos lucrativos para eles. Para manter os motoristas rodando, a empresa explora a tendência de algumas pessoas a estabelecer metas de faturamento, alertando-as de que estão próximas de alcançarem o objetivo em um momento no qual elas anunciam sua intenção de parar de trabalhar.  (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017 online).

Os trabalhadores alegam que houve uma demanda maior de serviços em detrimento dos valores recebidos, no filme, um dos trabalhadores apresenta o seu extrato de recebimento, apontando que em setembro/2015 realizou 44 trabalhos e recebeu o valor de R$5.361,64 e um ano após, setembro/2016 foram 93 trabalhos, mais do que o dobro, mas a remuneração foi de R$2.283,45.

Esse fato também foi confirmado na pesquisa feita pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit – Unicamp) e divulgado pela BBC News (2020), que dentre os entrevistados no período de 13 a 27 de abril de 2020, 57% deles afirmaram que trabalhavam mais de nove horas por dia, percentual esse que subiu para 62% durante a pandemia segundo o estudo. Dentre eles, 51,9% afirmaram que trabalhavam todos os sete dias da semana, mas que a remuneração caiu durante a pandemia de acordo com 58,9% deles, sendo que 34,4% tinham remuneração inferior a R$260,00 semanais.

A alegação das empresas e também a percepção dos próprios motoristas é que houve um aumento no numero de entregadores o que, consequentemente, faz cair o número de entregas por pessoa diminuindo a renda. As empresas afirmam que não houve redução do valor pago por corrida. Entretanto, não estamos falando apenas de baixa remuneração e sim de má remuneração para um trabalho árduo e cansativo, principalmente com alto risco a saúde e integridade física.

Num protesto que ocorreu no auge da pandemia em julho de 2020 na cidade de São Paulo, diversos entregadores se reuniram pedindo por melhores condições de trabalho. Dentre as reclamações em matéria divulgada pelo jornal Brasil de Fato (2020), um entregador alega que o aplicativo determina como limite de quilometragem cerca de 7km para que ele entregue pedalando, muitas das vezes embaixo de sol quente, sendo que o valor pago é de R$7,00. De acordo com o entregador entrevistado, ele espera cerca de 30 minutos para surgir a entrega, leva mais 30 para entregar e recebe R$7,00. Outra reclamação comum é que os preços das tarifas não se ajustaram ao aumento do preço do combustível que é custeado pelo próprio motorista, isso implica uma diminuição indireta do valor recebido, portanto.

Outro ponto é que os entregadores não possuem a chamada autonomia que a plataforma afirma ter, e que, portanto, descaracterizaria o vínculo empregatício. Ora veja, entregadores que se envolvem em protestos contra as plataformas são imediatamente banidos. É o que afirma a matéria, apontando que Paulo Lima, um dos organizadores da maior paralisação nacional de 2020 foi banido dos principais aplicativos e hoje não pode mais trabalhar.

Imagem 2: Entregadores fazem greve em várias cidades do Brasil durante a pandemia

Fonte: < https://www.brasildefato.com.br/2021/09/23/entregadores-exaustos-restaurantes-amarrados-cresce-insatisfacao-contra-apps-de-delivery> Acesso em 02 out. 2021.

O abuso também é sentido por parte das empresas que oferecem seus produtos nos aplicativos. Segundo a matéria, os restaurantes chegam a pagar taxas de até 30% por entrega para o Uber-eats, por exemplo, mas tanto alguns entregadores, quanto os restaurantes preferem não se envolver em protestos para não sofrerem sanções por parte dos apps.

“Todo trabalho merece uma remuneração digna. Quando a gente viu que o entregador recebia R$ 3 ou R$ 4 para uma distância de mais de 5 km, a gente considerou que, ao entrar em um app de entrega, a gente estaria contribuindo com a exploração do trabalho – e com um mercado de embalagens que estava praticando valores fora da realidade” afirma Paulo César da Motta que é um dos proprietários do café e restaurante Empório do Aroma, no centro de Curitiba (PR) em entrevista para o Brasil de Fato (2020, online)

Há ainda que se destacar que os trabalhadores são bloqueados ou desligados da plataforma sem qualquer justificativa ou meio de recurso. Normalmente de forma definitiva. A associação dos Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amasp), em matéria divulgada pelo G1 (2021), acusa a Uber de excluir mais de 15 mil motoristas de aplicativo por, segundo ela, cancelamentos excessivos, sendo que não há proibição à prática do cancelamento nos termos de uso do aplicativo.

“O abuso no cancelamento de viagens não tem nada a ver com a liberdade do motorista parceiro de recusar solicitações. Na Uber, o motorista é totalmente livre para decidir quais solicitações de viagem aceitar e quais recusar” (Uber para G1 2020, online).

A matéria afirma que além dos cancelamentos para viagens com destinos à áreas de riscos que já eram comum, muitos cancelamentos aumentaram devido ao aumento do preço dos combustíveis que tornaram as viagens menos rentáveis e, portanto, desvantajosas para os motoristas, que em tese deveriam ser livres para escolherem que viagens ou não fazerem, já que são, segundo a Uber, trabalhadores independentes e autônomos, o que se mostra bastante contraditório se ao exercer tal direito são banidos da plataforma. Cumpre salientar novamente que a exclusão é definitiva, sem direito a ampla defesa e contraditório e sem a possibilidade de recursos.

Pelo disposto no referido capítulo, podemos observar grave ameaça a diversos princípios do direito do trabalho, que se mostra a única alternativa, aliada ao direito constitucional para resolver o problema em comento. É dever do direito do trabalho fazer valer o principio protetor, que tem como escopo atenuar a desigualdade entre o trabalhador e o empregador e deve ter como pedra basilar o princípio da dignidade humana.

A dignidade da pessoa humana é a plenitude concreta de todos os direitos fundamentais para que todos os seres humanos gozem de um tratamento idêntico e realístico quanto às condições de vida em sociedade. Nesse contexto temos o Direito do Trabalho, como um conjunto de normas, princípios e institutos que visam atenuar os antagonismos decorrentes da relação trabalho e capital, estabelecendo regras de proteção ao trabalhador.  (NETO E CALVANTE, 2019 p.198).

Desse modo, é de suma importância que o direito trabalhista aliado aos princípios resguardados pela CRFB/88, principalmente aqueles inerentes aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, voltem a atenção para essa nova forma de exploração mascarada de falsa legalidade que vem se tornando um fenômeno. Estamos falando de milhares de trabalhadores que são explorados de forma presumidamente legal, mas fatidicamente desumana, que não encontram no poder judiciário qualquer alento para sua triste situação.

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

  

A maior ameaça ao mercado de trabalho nos dias atuais frente ao fenômeno da uberização do trabalho, não é a exploração que sem dúvidas esses trabalhadores sofrem, mas a irrelevância com que tais vidas são encaradas. Os avanços tecnológicos têm permitido uma nova forma de exploração do trabalho, tornando-se a sociedade dos bicos e do trabalho amador, com uma carga horária extensa que, muitas das vezes, impossibilita o trabalhador de estudar e se aperfeiçoar para garantir um crescimento profissional.

Não é preciso nem se aprofundar muito nos direitos trabalhistas em si, para perceber que a exploração é tão evidente e cruel que não se respeita sequer o básico. A existência de um salário mínimo não é uma obra do acaso, não existe por mera liberalidade do legislador. Ele existe para, ainda que não garanta, mas em tese, para garantir que as pessoas tenham como subsistir com o básico, é a proteção do mínimo existencial. E vemos pelo fenômeno da uberização que os parceiros trabalham muito e nem um salário mínimo conseguem auferir.

É uma forma de exploração desumana pois implica colocar o trabalhador numa posição de que ele só garantirá a sua subsistência se trabalhar o suficiente, e no cenário atual o suficiente tem sido para além da capacidade humana de uma vida digna com garantia de direitos mínimos de qualidade de vida, como o direito a pausa para refeição e descanso, por exemplo.

Não se trata apenas da exploração, mas da condição humilhante e escravizadora, da irrelevância quanto às necessidades e limitações. Os trabalhadores foram submetidos a algoritmos que propiciam um trabalho desumano para garantia do mínimo: a simples e mera sobrevivência no mundo capitalista, que comprovadamente está cada vez mais impossível de se conquistar.

Esse é um fenômeno que cresceu muito na pandemia dada às necessidades atípicas das próprias atividades exercidas, mas também dado o avanço tecnológico e a mudança do comportamento de compra e contratação. Esse fenômeno não se restringirá aos tempos pandêmicos, mas claramente se mostra como uma nova forma de explorar o trabalho humano, uma forma cruel, desumana, mas, legalizada de escravização nos tempos modernos.

Não podemos permitir que o fascínio pela modernidade, a praticidade dos apps e a falta de burocracia nas contratações nos ceguem para o que de fato importa: a vida e o sustento digno das pessoas.

Se não nos atentarmos ao fato de que a uberização é uma nova forma de lidar com o trabalho humano nos tempos atuais e que essa forma prejudica em muito não só os direitos trabalhistas, mas até mesmo os próprios direitos e garantias fundamentais protegidos pela CRFB/88 e também por tantos outros diplomas e tratados, inclusive internacionais, veremos aos poucos a sociedade regredir em conquistas que foram obtidas a base de muita luta e suor.

Esses trabalhadores são levados a acreditarem que alçaram o patamar de empreendedores e donos dos seus próprios negócios quando na verdade mal passam de escravos explorados e alienados por empresas multimilionárias que pintam uma linda utopia de mundo moderno e de independência, mas que não passa de um puro e barato marketing, pois no fundo tais empreendimentos pouco se importam com a condição ou qualidade de vida humana, fazendo o que empresas já fazem há décadas: tentam burlar as leis que foram criadas com a finalidade, mais do que necessária, de proteger a parte hipossuficiente nesta relação.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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Notas:

[1] Graduanda do curso de Direito da Uniabeu – 10º período. Pós-Graduanda em direito trabalhista e previdenciário na Universidade Estácio de Sá e Pós-graduanda em Gestão de DP e Compliance Trabalhista pela Legale.

Palavras Chaves

COVID-19; Terceirização; Direitos Trabalhistas; Direitos fundamentais; Uberização