UBER: MOTORISTAS AUTÔNOMOS OU UMA HIPÓTESE DE SUBORDINAÇÃO POR ALGORITMO?

Resumo

O novo sistema de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) abalou radicalmente as relações trabalhistas, gerando inquietação na comunidade científica quanto à natureza jurídica da relação entre UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. e seus motoristas “parceiros”. Atualmente, fala-se em mudança de paradigma no que concerne às relações trabalhistas com vínculo empregatício. O que se pretende neste trabalho é questionar se as mudanças inseridas nas relações trabalhistas, com a Tecnologia de Informação e Comunicação, têm o condão de mudar os pressupostos do conhecimento da ciência jurídica, ao ponto de alterar o conceito de subordinação jurídica. E se é possível, através de algoritmos, a manutenção da subordinação jurídica como aventada no artigo 6º, parágrafo único da Consolidação das Leis do Trabalho. O problema básico a ser averiguado é no sentido de se perceber se a Tecnologia de Informação e Comunicação propõe uma mudança transformadora de paradigmas ou uma mudança adaptativa sem interferir no conceito de subordinação jurídica ocorrente nas relações de trabalho com vínculo de emprego.

Artigo

UBER: MOTORISTAS AUTÔNOMOS OU UMA HIPÓTESE DE SUBORDINAÇÃO POR ALGORITMO?

                                              Rosildo Bomfim

 

RESUMO 

O novo sistema de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) abalou radicalmente as relações trabalhistas, gerando inquietação na comunidade científica quanto à natureza jurídica da relação entre UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. e seus motoristas “parceiros”. Atualmente, fala-se em mudança de paradigma no que concerne às relações trabalhistas com vínculo empregatício. O que se pretende neste trabalho é questionar se as mudanças inseridas nas relações trabalhistas, com a Tecnologia de Informação e Comunicação, têm o condão  de mudar os pressupostos do conhecimento da ciência jurídica, ao ponto de alterar o conceito de subordinação jurídica. E se é possível, através de algoritmos, a manutenção da subordinação jurídica como aventada no artigo 6º, parágrafo único da Consolidação das Leis do Trabalho. O problema básico a ser averiguado é no sentido de se perceber se a Tecnologia de Informação e Comunicação propõe uma mudança transformadora de paradigmas ou uma mudança adaptativa sem interferir no conceito de subordinação jurídica ocorrente nas relações de trabalho com vínculo de emprego.

 

PALAVRAS-CHAVE: Mudanças transformadoras. Mudanças adaptativas. Subordinação jurídica. Algoritmo.

  

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO.  2. CONHECENDO O CONCEITO DE ALGORITMO.  3. ANALISANDO OS DADOS DE ENTRADA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NOS DADOS DE SAÍDA. 3.1 CONSEQUÊNCIAS DOS DADOS DE ENTRADA.  4. REPRODUZINDO O DISCURSO. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

  1. INTRODUÇÃO

 Com o desenvolvimento da Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) nas relações trabalhistas,  fala-se muito em mudanças de paradigmas no Direito do Trabalho. O que se entende por mudanças de paradigmas?

Os paradigmas ajudam a explicar o mundo e alterá-los incorre na reavaliação do conhecimento que os definem, assim como as crenças, os valores e a ideologia a ele relacionados. Assim, todas as contribuições advindas dessa nossa tecnologia, como a velocidade, a digitação, a conectividade, o acesso à informação, o fim das hierarquias e o marketing reverso são novas técnicas de negócio para incrementar a competitividade entre as empresas. E, nunca, para mudar os paradigmas da sociedade que os incluem, ou seja, trata-se de mudanças adaptativas pretendendo apenas a conservação do status quo, mesmo que se apresentem com pretensões pseudo-revolucionárias e carregadas de chavões cibernéticos (PITASSI e LEITÃO, 2008).

E, justamente, as mudanças inseridas nas relações de trabalho são adaptativas e não mudanças transformadoras, ao ponto da intermediação de mão de obra, através de plataformas eletrônicas, mudar o conceito de subordinação jurídica, que se manifesta na sujeição do trabalho do empregado à vontade do empregador, que detém os poderes para dirigir, regulamentar, fiscalizar e aplicar penalidades ao trabalhador. Ou seja, é através da prática do poder empregatício que se operacionaliza a subordinação jurídica no âmbito da relação de emprego, que hoje também se dá através de algoritmos.

Registre-se, ainda, que o artigo 6º, parágrafo único da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) preconiza a possibilidade de subordinação jurídica através de meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão.

O que corrobora a tese da subordinação por algoritmo é a justificativa apresentada ao Congresso Nacional pelo autor do Projeto de Lei 3.129/2004, cuja finalidade era a de acrescer, e de fato acresceu, o parágrafo único ao artigo 6º da norma legal supramencionada, que tem a seguinte dicção:

Justificativa.

A revolução tecnológica e as transformações do mundo do trabalho exigem permanentes transformações da ordem jurídica com o intuito de apreender a realidade mutável. O tradicional comando direto entre o empregador ou seu preposto e o empregado, hoje cede lugar ao comando a distância, mediante o uso de meios telemáticos, em que o empregado sequer sabe quem é o emissor da ordem de comando e controle. O Teletrabalho é realidade para muitos trabalhadores, sem que a distância e o desconhecimento do emissor da ordem de comando e supervisão, retire ou   diminua a subordinação jurídica da relação de trabalho. (gn)

Questiona-se, neste momento, se há possiblidade de a empresa de aplicativo denominada UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. subordinar seus “motoristas parceiros” através do sistema de algoritmos,  como autorizado na norma jurídica, ou se está de fato diante de motoristas autônomos.

  

  1. CONHECENDO O CONCEITO DE ALGORITMO

 Um algoritmo, segundo o professor André Luiz Nasserala Pires, é um procedimento computacional que aceita um valor ou conjunto de valores como input (entrada de dados) e produz um valor ou conjunto de valores como output (saída de dados).

Ele, também, apresenta de forma bem didática diversos conceitos do termo algoritmo, tais como: a) um algoritmo é uma sequência de instruções ordenadas de forma lógica para a resolução de uma determinada tarefa ou problema; b) algoritmo é a sequência de passos que visam atingir um objetivo bem definido; c) algoritmo é a descrição de um conjunto de ações que, obedecidas, resultam numa sucessão finita de passos, atingindo um objetivo esperado.

Das definições acima propostas pelo professor chega-se a conclusão que o que mais importa no algoritmo é o feito das instruções (entrada de dados) para obtenção dos resultados pretendidos pelo criador da ferramenta (dados de saída).

Nessa toada, há de se fazer uma distinção entre os dados de entrada, que são informações objetivas, e os dados de saída que são informações subjetivas que não podem ser quantificadas. Esses dados de saída é que podem trazer resposta a essa averiguação.

É necessário que se faça uma distinção entre a informação objetiva, que é aquela resultante dos mecanismos de processamento utilizados para transmissão do conhecimento impessoal, podendo ser quantificada em bits. E a subjetiva, que corresponde aos significados, valores, perspectivas, história pessoal e herança intelectual daquele que a utiliza, e que não pode ser quantificada nem transmitida eletronicamente (PITASSI e LEITÃO, 2008).

Assim, conclui-se que o resultado final da gerência dos “motoristas parceiros” da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA., para qualificá-la como empresa de aplicativo e não empresa de transporte coletivo, depende dos dados de entrada, se direcionados ou não, para qualificação da empresa e “motoristas parceiros” como, respectivamente, empregador e empregado e, ainda, da interpretação dos dados de saída.

  1. ANALISANDO OS DADOS DE ENTRADA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NOS DADOS DE SAÍDA

 Analisando os dados de entrada do algoritmo da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA., denominados também de instruções, há: a) imposição dos motoristas para aceitarem as viagens e não efetuarem cancelamentos de viagens; b) determinação de rota padrão aos motoristas; c) tarifa fixada pela empresa, afastando o motorista de negociar o valor diretamente com o passageiro; d) imposição no momento da filiação à plataforma, como escolha do veículo a ser usado e instrução aos motoristas para atuação; e) utilização de sistema de rating (pontuação); f) concessão de descontos diretamente pelo UBER sem interferência do motorista e, g) reclamação, por parte dos passageiros, diretamente à UBER.

Em razão dos dados de entrada do algoritmo da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. se tem consequências objetivas bem definidas, que serão analisadas nos subitens abaixo.

3.1 CONSEQUÊNCIAS DOS DADOS DE ENTRADA

 A relação entre os dados de entrada e de saída irá informar se a UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. atua como empregadora com poder diretivo sobre seus “motoristas parceiros” através de modelo de  “gestão por algoritmos”.

É nítido o poder diretivo da empresa de aplicativo em relação aos seus “motoristas parceiros”, pois o sistema, através de algoritmos, é que controla os motoristas informando onde e quando pegar passageiros, o caminho a ser percorrido e sua remuneração (FÁBIO, 2019).

No Inquérito Civil Público aberto pelo Ministério Público do Trabalho da Primeira Região (nº 001417. 2016.01.000/6), restou evidente a subordinação jurídica através de algoritmo, como permitido o controlo do empregado a distância nos termos do parágrafo único do artigo 6º da CLT, ratificado pelo depoimento do Sr. Saadi Alves de Aquino, ex-coordenador de operações da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.:

[..] que uma vez  caracterizada  essas condutas antiéticas  ou fraudes, o motorista  era simplesmente  desativado; que a investigação  da conduta  era feita pelo setor de operações, na qual  o depoente  trabalhava, junto com o de marketing;  que a investigação  consistia  em ligar  para o cliente  e ouvir  sua versão  e ligar  para o motorista  e ouvir a versão do motorista; que, feito isso , sentido o preposto da UBER  que o “motorista já se acusou”  era feita a desativação; que antes de ligar já era verificado o histórico do motorista e, na hipótese de reincidência, mesmo não tendo o motorista “se acusado”, era feita a desativação; que também havia a hipótese de um bloqueio temporário (“gancho”) que ocorria quando o motorista não aceitava mais do que 80% das viagens e esses ganchos  eram progressivos, ou seja, 10 minutos, 2 horas e até 12 horas off line, ou seja, bloqueado. Que esse gancho era automático do sistema e não passava por qualquer avaliação humana; se o motorista ficasse com média abaixo de 4,6 (antes de 50 viagens não havia avaliação de qualidade de atendimento para fins de bloqueio), ficava dois dias off line, era chamada para comparecer aos centro de ativação, instruído no que deveria melhorar e teria um período para melhorar a nota; que, se mantivesse a média inferior a 4,6, continuaria sendo bloqueado até três vezes; que, não conseguindo aumentar a nota, era desativado; que se o motorista ficava mais de um mês sem pegar qualquer viagem, o motorista seria inativado [..] (gn)

O depoimento deixa claro que se os “motoristas parceiros” não cumprissem as sequências de instruções ordenadas (dados de entrada – input), a resolução da  tarefa imposta ao aplicativo (dados de saída – output) seriam graduações de punições programadas, cuja pena maior seria a desativação definitiva dos “motoristas parceiros”, o que corresponde à demissão no Direito do Trabalho.

Convém notar que os atos praticados pela UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. expostos no depoimento supramencionado se enquadram na direção  da prestação  dos  serviços laborados pelos “motoristas parceiros”, corroborando o preceituado no artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que tem a seguinte dicção: “ Considera-se empregadora a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. (gn)

O eminente professor e ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado, muito bem assinala o poder diretivo do empregador como uma consequência da subordinação do empregado em relação ao empregador:

Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços. (DELGADO, 2012, p. 658)

O certo é que a suposta inteligência artificial é capaz de: dirigir a prestação pessoal de serviço dos “motoristas parceiros”;  precificar o serviço; controlar jornada; estabelecer metas e aproximar as pontas dessa relação através de plataformas digitais, como um verdadeiro poder diretivo, típico de empregador.

No termo de privacidade da UBER em seu item III.B.9 se depreende vários atos típicos de empregador, como ativação do preço dinâmico, que corresponde ao valor de uma viagem ou preço de entrega dos pedidos do Uber Eats, que variam de acordo com a fluidez do tráfego, o trajeto pensado, o tempo calculado, a distância e o número de passageiros num dado momento; avaliações, que quando baixas, descredenciam automaticamente os motoristas e entregadores; desativação de usuários identificados em fraudes ou práticas que possam prejudicar a UBER e a utilização de informações de localização de motoristas e sua comunicação com passageiros com o intuito de verificar se as taxas de cancelamento recebidas são devidas ou foram induzidas fraudulentamente. UBER, Brasil, 18 de jul. de 2020. Disponível em: <https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?name=privacy-notice&country=brazil&lang=pt-br>. Acesso em: 18 de jul. de 2020.

O controle do preço das viagens dos passageiros dos “motoristas parceiros autônomos” é de responsabilidade da UBER, o que denota o controle do negócio pela empresa e não pelos motoristas.

A UBER terceiriza a avaliação dos “motoristas  parceiros” através dos usuários do serviço e, com acesso amplo a tais avaliações, promove a desativação dos motoristas com avaliação baixa. A avaliação dos motoristas, ainda que terceirizada, é típica de conduta de empregador e a desativação dos motoristas com baixa avaliação corresponde à demissão do Direito do Trabalho.

Outro ato típico de empregador é o controle que a UBER faz para saber se o motorista atrasa ou não o embarque de passageiras para provocar cancelamento de viagem indesejada.

O depoimento a seguir do Sr. Saadi Alves de Aquino já citado, também reforça haver controle da jornada e estabelecimento de metas dos “motoristas parceiros”:

[…] que a medição era individual, ou seja, a plataforma tem conhecimento de quanto tempo cada motorista  dirige, mas não importa  quem está trabalhando, mas que existe  carro disponível no local da demanda; portanto, para lidar com dificuldades, fazia-se uma análise geral  e não individual e chamava-se miss  motorista para o sistema  para atender a demanda, independente de quanto cada um trabalhe […]; (gn)

[…] que a empresa não fazia nada contra os motoristas que trabalha pouco mais o contrário, ou seja, incentivar quem trabalhasse muito; que esse controle (desativar que trabalhasse pouco) era feito para que a empresa possa ter controle de quem não está mais interessado em dirigir para a UBER; que o incentivo para trabalhar mais e agregar mais motorista ao sistema são as formas de garantir o atendimento à demanda […]; (gn)

[…] que os relatórios da performance do motorista feita pelos clientes eram encaminhadas para os motoristas com recomendações pessoais para que os motoristas melhorassem […]; (gn)

[…] que essas recordações pessoais são semanais e encaminhadas por e-mail  ou pelo próprio aplicativo; que a avaliação do cliente tem campos pré-definidos com os casos mais normais e o computador já encaminhava para os motoristas o que estava de ruim sendo reportado pelo cliente; que quase tudo é automático, mas encaminhado semanalmente para o motorista para que ele melhore o padrão de atendimento; que o cálculo da média é diária; que a média é histórica e pode ser alterada a cada 500 viagens ou que começava a mudar […] (gn)

Os depoimentos expostos denotam que a programação da plataforma da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA é feita com o intento de coordenar, fiscalizar e punir os que descumprem o seu modelo de negócio, não havendo que se falar em autonomia dos “motoristas parceiros”.

Através das ferramentas tecnológicas utilizadas, a real empregadora dos “motoristas parceiros” de aplicativos tenta obter a despersonalização da figura do empregador, com o objetivo de afastar os trabalhadores do manto das normas protetivas contidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sem preocupações com os direitos trabalhistas historicamente conquistados pela classe trabalhadora, como pagamento de horas extras, férias, 13º salário, contribuição fundiária e previdenciária, que efetivamente oneram os custos do contrato, caso o vínculo de emprego venha a ser normatizado.

  1. REPRODUZINDO O DISCURSO

 Todas as tentativas de regulamentar o serviço de aplicativo desenvolvido pela UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. para, dentre outros pontos,  formalizar o vínculo  entre os “motoristas parceiros” e a empresa de aplicativo (concessão de direitos trabalhistas, por exemplo) esbarram no discurso que a regulamentação tornaria inviável as atividades da empresa no Brasil, pelo vil argumento da oneração da folha de pagamento, devido à sobrecarga de impostos advindos daqueles direitos.

Seguindo no discurso dos defensores da não regulamentação, afirma-se que esta implicaria na redução de milhares de postos de trabalho no Brasil, prejudicando ainda mais a economia brasileira.

Esse discurso converge com o do  romancista, dramaturgo, jornalista, advogado e político ALENCAR (2009), contrário a Lei de 1871 (Lei do Ventre Livre) que preceituava em seu artigo 1º que os filhos de mulher escrava que nasceram no Império desde a data desta lei eram considerados de condição livre. Em seu discurso no parlamento brasileiro, em  julho de 1871, contra a supramencionada lei, afirmava que o mesmo filantropo europeu que contra o Brasil desfechava um turbilhão de injúrias por manter o trabalho escravo, se regozijava com um bom tabaco cubano e o excelente café do Brasil. Esse falso moralista não repelia os frutos desse trabalho escravo, mas tão somente alardeava sua irresignação pelo Brasil ainda utilizar mão de obra escrava. Um verdadeiro dissenso.

Na concepção de Alencar, o Brasil, um país à época recém-independente, agrário e dependente de mão de obra escrava, não podia se dar ao luxo de  abrir mão de sua principal força de trabalho e abolir os escravos a duras penas para a indústria, já que teriam de ter trabalhadores assalariados tanto na área da indústria quanto da lavoura, ainda incipiente, sob pena de gerar uma revolta social.

Embora, o discurso de Alencar tenha  sido pronunciado há cerca de um século e meio,  a força do capital continua utilizando-se da mesma retórica para impor à população o completo aniquilamento dos direitos sociais do trabalhador, seja nacional ou estrangeiro, já que o sistema capitalista não reconhece o conceito de pátria e nação.

Para avançar na construção de um bom futuro, as empresas que manejam os aparatos tecnológicos têm que atuar dentro do limite de  um acordo social saudável, mas ao que tudo parece o capital não vê o contrato social como algo importante (SLEE, 2019).

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O controle do trabalhador empregado que antes se realizava através de um superior hierárquico, hoje se realiza através de uma gestão por algoritmo  inserido em um software, ou seja, a subordinação e o controle efetivo dos “motoristas parceiros” se dão através  da figura da pessoa jurídica intermediada pela plataforma de aplicativo.

Ora, para que ocorresse, de fato, uma mudança de paradigmas, o sistema de Tecnologia de Informação e Comunicação deveria ter alterado o conceito de empregado, empregador e subordinação jurídica.

Não houve tais mudanças de paradigmas porque os motoristas continuam exercendo as mesmas atividades que sempre exerceram sem nenhuma alteração estrutural no modo de prestarem os seus serviços. O que se tem de novo é o método de contato entre cliente e motorista, ou seja, houve tão somente uma adaptação do modo de comunicação entre eles.

Assim, as novas regras de “gestão por algoritmo” servem como instrumento de aumento de produtividade e competitividade das organizações, porém jamais para mudar os paradigmas do Direito do Trabalho. Trata-se de mudanças apenas adaptativas com a manutenção do status quo, ainda que embalado por um discurso revolucionário nas relações do trabalho (PITASSI e LEITÃO, 2008).

Uma nova política de marketing interno organizacional trouxe novos vocabulários para substituição da figura do empregado como “colaboradores”, “parceiros” e “empreendedores”. Tais substituições têm como finalidade falsear o conceito de empregado e, ao mesmo tempo, de má fé, inserir na mente dos empregados que eles  são partes importantes na entidade organizacional. Porém, ao assumir esses novos rótulos, os verdadeiros empregados abrem mão de seus direitos sociais consignados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

As estratégias de propaganda da UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA., metamorfoseando o conceito de empregados em “motoristas parceiros” e o conceito de empregadores em “plataformas de aplicativos”, contribuem para incutir na mente dos motoristas empregados que eles são de fato empreendedores, afastando-os  das garantias sociais que o Direito do Trabalho alberga aos empregados.

A qualidade de vida dos alegados “motoristas parceiros” tem sido  negligenciada pelas empresas de aplicativos,  em favor do avanço tecnológico, da produtividade e do crescimento econômico. Os “colaboradores em rede compartilhada de transporte individual” não podem ficar totalmente desassistidos da proteção trabalhista, como pretende a UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.

A conclusão que se pode apurar é que as inovações tecnológicas não operaram na mudança do conceito de relação de trabalho com vínculo de subordinação, já que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) permite a subordinação  jurídica de empregados através de meios telemáticos e informatizados de controle e supervisão (art. 2º, c/c. art.6º, parágrafo único, ambos  da CLT). Logo, havendo subordinação não há que se falar em parceria, mas sim em vínculo empregatício.

As empresas de aplicativos, para abrirem novos mercados em países distintos de sua sede e atuarem em rede global, necessitam de completa desregulamentação das relações trabalhistas para maior mobilidade e produtividade. É inegável a contribuição da tecnologia para o desenvolvimento econômico, mas não se pode ignorar os seres humanos, a natureza e um futuro melhor para a humanidade. Neste contexto, BAZZO (2014) reconhece a contribuição da ciência e da tecnologia para a sociedade. No entanto, pondera, não se pode confiar sem limites nelas a ponto de as pessoas se submeterem sem restrições ao conforto que seus aparatos e dispositivos técnicos proporcionam a elas no dia a dia. Isto porque é perigosa essa entrega cega ao fascínio da modernidade tecnológica, olvidando que questões sociais, éticas e políticas estão englobadas pela ciência e tecnologia.

A tecnologia representada pelas plataformas de aplicativos não teve como finalidade o aumento da produtividade para melhorar a vida dos trabalhadores, assegurando-lhes maiores salários e garantias sociais. Ao contrário, sua motivação foi o aumento da lucratividade e, consequentemente, o aumento das ações das empresas cuja tecnologia serve de instrumento para o alcance de tais objetivos.

O sociólogo espanhol CASTELLS (2002) define que “capitalismo informacional” não se importa com a tecnologia por ela mesma nem com o aumento de produtividade para melhorar a humanidade, mas, sim, em atuar de acordo com as normas de um sistema econômico num certo momento histórico, que ao final (re)aprovará sua atitude. Dessa forma, o que motiva as empresas não é a produtividade, mas sim a lucratividade e o aumento do valor de suas ações, podendo a produtividade e a tecnologia serem meios importantes, mas, definitivamente, não os únicos.

Analisar se há ou não subordinação jurídica dos motoristas parceiros apenas com o velho conceito de subordinação – onde empregados e seus superiores hierárquicos laboravam no mesmo espeço físico sem ater-se às novas hipóteses de comando através das novas ordens de tecnologias-, é praticar uma inteligência cega. E isso destrói o conjunto dos objetos a serem pesquisados, afastando-os do meio ambiente laboral e, por consequência, aponta resultados imprecisos e equivocados.  É preciso introduzir no estudo cientifico o pensamento complexo e multidisciplinar, como bem salientado por MORIN (2005, p.12):

A inteligência cega destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio ambiente. Ela não pode conceber o elo inseparável entre o observador e a coisa observada. As realidades-chaves são desintegradas. Elas passam por entre as fendas que separam as disciplinas.

Assim, em conclusão, a subordinação dos “motoristas parceiros” deve ser analisada à luz do conceito cientifico de algoritmo, sua finalidade e se há poder de controle dos “motoristas parceiros” com este novo aparato tecnológico.  Após tais investigações, em caráter multidisciplinar, analisar o conceito jurídico de subordinação desenvolvido no Direito do Trabalho.  Pois, uma análise sobre o prisma apenas da ciência jurídica nos induzirá, fatalmente, em erro.

  

REFERÊNCIAS

 BARBOSA JR, Francisco de Assis. GIG economy e contrato de emprego: aplicabilidade da legislação trabalhista aos vínculos de trabalho da nova Economia. Rio de Janeiro: LTr, 2019, p.53 e 124.

BAZZO, Walter Antonio. Ciência, tecnologia e sociedade: e o contexto da educação tecnológica.  Santa Catarina: UFSC, 2014, p.129.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede, 6ª. Ed., São Paulo: Paz e Terra S/A, 2002, p.136.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012.

______. Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2004.

LEME, Ana Carolina Reis Paes.  Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas de uber. Rio de Janeiro: LTr, 2019, p.17.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Ed. Sulinas, 2005, p.12.

SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de plataforma: contestando a economia do compartilhamento corporativo. São Paulo: Elefante,  2016.

 

SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, 4.ed, São Paulo: Elefante,  2019, p.143/145.

ALENCAR, José de. Reforma servil: sessão de 10 de jul. de 1871. In: Discursos proferidos na sessão de 1871 na Câmara de Deputados. Rio de Janeiro: Perseverança, 1871, p. 59-73. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/351885198/Jose-de-Alencar-Discursos-Proferidos-Na-Sessao-de-1871>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

Aviso de privacidade. UBER, Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?name=privacy-notice&country=brazil&lang=pt-br>. Acesso em: 18 de jul. de 2020.

BRASIL. Presidência da República.  Projeto de Lei 3.129/2004 de 13 de julho de 2017. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=155964>. Acesso em: 14 de jun de 2020.

FÁBIO, André Cabette. Como é ter um algoritmo como chefe, segundo esse estudo. Nexo, 18 de set. de 2010. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/09/18/Como-%C3%A9-ter-um-algoritmo-como-chefe-segundo-este-estudo>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

PIRES, André Luiz Nasserala. Apostila de algoritmos. FIRB/FAAO, 2007. Disponível em: <http://licitacao.ac.gov.br/cpl/sie/fotos/ALGORITMO.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

PITASSI, Claudio; LEITÃO, Sérgio Proença. Tecnologia de informação e mudança: uma abordagem crítica. Scielo, RAE – Revista de Administração de Empresas, 2002, pp. 78 e 80. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rae/v42n2/v42n2a07.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

BIOGRAFIA RESUMIDA DO AUTOR

 

Rosildo da Luz Bomfim

Mestre em Gestão do Trabalho pela Universidade Santa Úrsula – USU, Doutorando em Desenvolvimento Sustentável e Trabalho, atualmente é professor convidado da Pós graduação da PUC-RIO, professor efetivo do Curso Toga Estudos Jurídicos (preparatório para os concursos de Juiz do Trabalho e Ministério Público do Trabalho), do Ius Premium, do Instituto Direito Social América Latina e da Escola Superior de Advocacia OAB-RJ. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil, Direito Processual do Trabalho e Direito do Trabalho. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Presidente da Comissão de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estudo Jurídico – IBRAPEJ, Membro da Comissão de Direito e Processo do Trabalho da OAB-RJ. Coautor dos Projetos de Leis 9.466/2018 e 9.467/2018, protocolado pelo Deputado Federal Alexandre Molon, cujo escopo é minimizar os prejuízos ocorridos aos trabalhadores com a Lei 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista). Participante efetivo, na qualidade de representante do Movimento dos Advogados Trabalhista Independente – MATI, da comissão para a elaboração do Estatuto do Trabalhador, em trâmite no Congresso Nacional, e de audiências públicas na Comissão de Direitos Humanos – CDH – para discussão e debate sobre a Lei 13.467/2017. Autor de obras jurídicas. 

(http://lattes.cnpq.br/9682519799593477, email: [email protected])

 

Palavras Chaves

Mudanças transformadoras. Mudanças adaptativas. Subordinação jurídica. Algoritmo.