Lawfare, um mal a ser combatido

Resumo

Neste artigo abordo o conceito de lawfare, bem como o seu desdobramento nos seguintes eixos: a utilização do Sistema de Justiça para a prática do lawfare, o papel da mídia hegemônica e a motivação geopolítica.

Artigo

Lawfare, um mal a ser combatido.

Valéria Teixeira Pinheiro

Advogada Trabalhista – Conselheira Efetiva da OAB/RJ – Presidente da Comissão Especial de Estudo e Combate ao Lawfare e Secretária Geral da Comissão da Justiça do Trabalho da OAB/RJ.

Palavras chaves para indexação: O que é Lawfare? Sistema de Justiça. Mídia. Geopolítica.

Resumo: Neste artigo abordo o conceito de lawfare, bem como o seu desdobramento nos seguintes eixos: a utilização do Sistema de Justiça para a prática do lawfare, o papel da mídia hegemônica e a motivação geopolítica.

Desafiada a escrever um artigo a ser publicado na Edição Especial do Mês da Mulher da Revista Eletrônica da OAB/RJ, destinada apenas a textos elaborados por mulheres advogadas, logo me veio uma dúvida cruel, escrevo sobre um amor antigo, duradouro e que ainda me emociona, dia após dia, ou escrevo sobre uma nova paixão? Explico, me graduei em Direito em dezembro de 1989, pela UFRJ, e desde início de 1990 advogo na área trabalhista, exclusivamente. E, recentemente, em fevereiro de 2023, fui nomeada presidente da Comissão Especial de Estudo e Combate ao Lawfare da OAB/RJ, logo eu, trabalhista na veia, na alma e no coração.

Na realidade, essa minha guinada para criminologia não se deu por motivação profissional, mas sim por uma necessidade de entender todos os acontecimentos ocorridos no Brasil, pós jornadas de 2013. O clima pré-eleitoral de 2014, todo o caminho para o golpe misógino, midiático e político desferido contra a presidenta Dilma Rousseff e a prisão injusta e ilegal do Presidente Lula, me obrigaram a sair do direito convencional, aquele ensinado na Faculdade de Direito, para me lançar em busca de novos estudos, onde poderia construir um olhar crítico do Direito e do Sistema de Justiça.

Dessa forma, ingressei na Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), foi, então, que tive a oportunidade de entender melhor o fenômeno Lawfare e suas entranhas, inclusive pude me certificar o que, de fato, ocorreu com Dilma e Lula. Ela que foi retirada da presidência, abrindo caminho para implementação das Reformas liberalizantes Trabalhista e Previdenciária. E ele, Lula, retirado da disputa presidencial de 2018, quando liderava as pesquisas presidenciais, sob falsas acusações de crimes, preso injustamente, carregando, eternamente, a pecha de ladrão por seus adversários políticos.

Explicada como surgiu a minha nova paixão, me cabe dizer que o Direito do Trabalho é um Amor eterno e a criminologia um caso recente, e por ela escolho escrever, na missão de participar dessa edição especial da Revista Eletrônica da OAB/RJ e faço na esperança de conquistar novas mentes brilhantes dispostas a entender o fenômeno Lawfare, para que não caiam em armadilhas constantemente lançadas pela mídia hegemônica, quando tenta construir um inimigo político a ser combatido.

Neste artigo, vou me ater nas graves consequências do uso indevido do Direito como arma não convencional, para eliminar um inimigo político, tendo como alvo a destruição de políticas públicas, as quais não interessam as grandes corporações, as verdadeiras donas do mundo.

Inicialmente, é preciso deixar claro o significado da palavra Lawfare, que por ser uma palavra de origem estrangeira causa um certo distanciamento de boa parte das pessoas, por isso vale explicar que law se traduz como lei e warfare significa guerra, logo, temos como resultado guerra jurídica. Importante aqui trazer o conceito de lawfare atribuído por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim (1), a saber: “lawfare é uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”.

Logo, temos o lawfare como uma estratégia para alcançar um alvo, através de um ataque sistemático, bem planejado e eficaz contra um projeto político e ou políticas públicas de determinado governo, sem, sequer, disparar um tiro.

Entretando, para que seja a alcançada a estratégia montada, se faz necessário que a prática de lawfare conte com um ambiente acolhedor e fértil para eliminação do inimigo. Sem rodeios e indo direto ao ponto, o Poder Judiciário é esse ambiente. E para o imaginário popular o Juiz é uma figura isenta e dono de grande saber jurídico, diante disso nada melhor como a utilização do Sistema de Justiça na perseguição de um adversário, já que traz contornos de legalidade, o que, por óbvio, basta para o julgar culpado, mesmo sem uma sentença penal condenatória transitada em julgado.

Foi assim com as conduções coercitivas utilizadas na Operação Lava Jato. O mundo jurídico clamava pela ilegalidade de tais conduções, mas como eram advindas do Poder Judiciário foram bem recebidas pela população.

E como se não bastasse a figura heroica de determinado juiz condutor da referida operação, toda ilegalidade praticada pelo mesmo era de difícil explicação para as pessoas, que ao fim e ao cabo imaginavam que o Brasil se livraria da chaga da corrupção, através das práticas não convencionais perpetradas pelo Sistema de Persecução Penal.

A utilização das instituições de Direito para fins de se destruir um alvo não é privilégio do Brasil, há notícias de diversos casos em toda América Latina, Eugênio Raul Zaffaroni, Cristina Caamaño e Valéria Vegh Weis, assim nos alertam (2):

“Diante desses desordeiros, os tribunais se tornam lugares para resolver disputas de poder que não podem ser vencidas nas urnas, no Congresso ou na Casa Rosada. Não é curioso que os líderes políticos que encabeçam as próximas eleições sejam envolvidos em acusações de grande impacto mediático em momentos oportunos (para alguns)? Cristina Fernandez de Kirchner acusada em dez casos criminais na Argentina em momentos decisivos; impeachment Dilma Rousseff no Brasil e prisão provisória de Lula pouco antes das eleições presenciais; persecução penal de Rafael Correa assim que ele deixou o governo, acusações contra o filho da ex-presidenta do Chile Michelle Bachelet por tráfico de influência; golpe de Estado e desencadeamento de processos criminais contra Evo Morales e seus ministros no momento de ganhar a reeleição; destituição e acusações de nepotismo e de superfaturamentos contra Fernando Lugo no Paraguai; ataques pelo caso Odebrecht que terminaram na renúncia do presidente do Peru Pedro Pablo Kuczynski; ataques incessantes e acusações de corrupção contra o presidente da Venezuela Nicolás Maduro. É que a corrupção surgiu e se espalhou na América Latina no mesmo momento e justamente quando governos social-democratas ou progressistas estavam no poder, terminando seus mandatos ou liderando pesquisas eleitorais? É que, de repente, um compromisso militante contra a corrupção se espalhou pela América Latina?”

Nesse mesmo contexto, nos ensina Fabrício Gaspar Rodrigues (3):

“É neste sentido que o lawfare se propagou na América Latina com o uso abusivo das leis, normas e processos judiciais, sob uma aparente legalidade, mas como meio de perseguição e aniquilação de um inimigo político, desprezando as garantias constitucionais básicas. Não se questiona, em geral, a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, em razão da conjugação de fatores como a homogeneização da opinião pública pela participação massiva da grande mídia, aparência de legalidade que a presença de membros do Poder Judiciário confere ao (pseudo) julgamento, bem como a existência e o reconhecimento por parte da população da figura do inimigo que precisa ser combatido. A utilização do ordenamento jurídico como forma de eliminação do inimigo do Estado precisa ser legitimada e o principal discurso é o de garantia e proteção da sociedade, da coletividade e do bem comum.”

A pergunta feita ao final do texto do Zaffaroni, Cristina Caamaño e Valéria Vegh, nos remete ao período que antecedeu a condenação injusta do Presidente Lula, quando havia um clima no país de que a corrupção deveria ser combatida de qualquer forma e contra quem quer que seja, inclusive um ex-presidente da República, e que, para tanto, o princípio constitucional da presunção de inocência poderia sim ser desrespeitado, sem qualquer pudor.

Mas o alvo não era o Lula, no caso ele foi vítima de prática de lawfare, assim como foi com a ex-presidente Dilma, já que o que, realmente, se intencionava atingir eram as políticas públicas praticadas em seus governos, que se destinavam ao bem-estar social da população mais vulnerável e que, por isso, não agradavam boa parte da elite e da classe média.

Com o golpe sofrido pela Presidente Dilma Rousseff, Michel Temer implementou no país um projeto de governo que não passou pelo crivo das urnas, o denominado Ponte para o Futuro, e que culminou com a aprovação da Reforma Trabalhista, alterando, profundamente, a Consolidação das Leis do Trabalho, com modificação de mais de cem artigos, mexendo na espinha dorsal do sistema protetivo do Direito do Trabalho, diminuindo o custo do emprego e favorecendo as grandes corporações.

Como se vê, o alvo não era Dilma e nem o combate as pedaladas fiscais, o objetivo era implementar projetos neoliberalizantes, como a Reforma Trabalhista e Previdenciária, sendo que essa última não foi alcançada pelo Governo Temer, mas sim pelo Governo Bolsonaro, que venceu o pleito presidencial de 2018, estando Lula impedido de concorrer, quando liderava as pesquisas eleitorais para presidente.

Importante destacar que, somente foi possível a aceitação popular da narrativa de que Dilma cometeu crime de responsabilidade e que Lula era culpado de vários crimes, com o apoio massivo da mídia hegemônica, que não mediu esforços em cobrir todas as ações persecutórias contra os referidos políticos.

No entanto, essa mesma mídia que serviu para aniquilar inimigos políticos e os retirar de cena, não fez um contraponto no que tange a violação sistemática dos princípios e garantias constitucionais, o que colocava em risco a nossa democracia.

Vale lembrar o episódio da divulgação do diálogo entre Lula e Dilma, em pleno Jornal Nacional, na TV Globo, advindo de uma escuta telefônica autorizada pelo então juiz Sérgio Moro e que repercutiu de forma extremamente negativa para ambos. Assim, é seguro afirmar que podemos ter com elemento constitutivo do conceito de lawfare a mídia, que sempre é muito feliz em criar no imaginário popular a figura do inimigo a ser combatido e eliminado.

Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, assim destacam (1):

“A tática da desilusão popular consiste em uma junção de forças entre os envolvidos na prática do lawfare para provocar a desilusão da população em relação ao inimigo eleito. Recentemente, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por permitir a divulgação de gravações secretas de natureza pessoal. Em Escher et al. v. Brazil, a decisão do Tribunal enfatizou a regra de que um juiz que autoriza a interceptação secreta do telefone de um indivíduo não pode, para fins políticos ou quaisquer outros, “autorizar” a divulgação das transcrições para a mídia.

O antropólogo John Gledhill argumenta que a tática de promover a desilusão popular utilizada no Brasil de forma seletiva foi determinante no processo que culminou com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Anteriormente a votação do impeachment, Gledehill afirmou: “o que estamos vendo no Brasil é a forma como a aplicação seletiva do que pode ser descrito como lawfare está promovendo um clima de desilusão popular em que um governo democraticamente eleito pode ser removido do poder”

Logo, através da artificial criação de desilusão popular, os praticantes do lawfare passam a contar com o apoio da população, facilitando o ataque ao adversário.

Recentemente, Cristina Kirchner ao falar sobre os múltiplos processos que enfrenta na Argentina, afirma que sem mídia não há lawfare. Com razão, o conceito de lawfare deve abranger a ação combinada entre agentes do Sistema de Justiça e a mídia hegemônica, com o fim precípuo de desmoralizar e eliminar o inimigo comum e suas ações políticas.

Há de ressaltar, ainda, nesse contexto, o papel das redes sociais, nada melhor que o despejo de conteúdos negativos nas redes, para ampliar e multiplicar as mensagens com exposição de imagens chamativas do inimigo em atitudes suspeitas. Evidentemente, quanto mais oportuno o momento para dita exposição melhor, assim quanto maior o barulho no período pré-eleitoral mais competente a tática de guerra ao opositor.

Impressiona o ódio inserido nas pessoas pela mídia, levando ao desejo de punição, antes mesmo de qualquer julgamento. O nível de manipulação é alarmante e causa indignação na medida em que não há nenhuma preocupação com o impacto da notícia, como também se ela é falsa ou verdadeira, sem qualquer compromisso com os princípios democráticos.

O mundo tem assistido o aumento de números de casos de lawfare, que não se limitam apenas a América Latina.  Esse fenômeno teve atenção do Papa Francisco, em 2019, Francisco concedeu entrevista à TV Argentina C5N onde chama atenção para o fato de o lawfare colocar em risco as democracias, destaca a importância de “detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial imprópria, combinadas com operações multimidiáticas paralelas.”

Nesse mesmo sentido, Rubens Casara alerta para o crescente número de casos de lawfare afirmando o seguinte (4):

“Nos últimos anos, o número de casos de lawfare tem apresentado notável crescimento em todo mundo. Isso se deve, basicamente, às tentativas de manter as aparências de normalidade democrática, mesmo diante de práticas e finalidades típicas de regimes autoritários. Assim, por exemplo:  no lugar de impedir as eleições ou promover um “golpe” duro de Estado, é mais eficaz, e politicamente menos traumático, eliminar, através do Sistema de Justiça e com aparência de legalidade, os candidatos indesejáveis ou destituir um presidente eleito através de um procedimento aparentemente legal.

Por tudo isso, compreender o fenômeno do lawfare e desvelar o mito da neutralidade do Sistema de Justiça são fundamentais para qualquer projeto democrático de sociedade”

Mas, o conceito de lawfare deve ser desmembrado, também, para inserção dos objetivos geopolíticos que atende, a guerra jurídica tem motivações e se dedica a interesses econômicos. Assim, temos o uso do Direito como braço possível do jogo geopolítico.

Nesse sentido, torna-se necessário entender que a guerra jurídica é uma espécie de um gênero: a Guerra Híbrida, que é uma guerra não tradicional, que não se utiliza apenas de armas militares, mas se vale de outras armas não convencionais, combinando estratégias, se utilizando do Sistema de Justiça, com o apoio do poder de alcance das redes sociais no convencimento da sociedade, no que tange a legalidade da perseguição ao inimigo, atingindo assim o seu principal alvo.

O objetivo da guerra híbrida é claro, trata-se de uma nova forma de imperialismo, uma estratégia para se apropriar de recursos de outros países, como por exemplo o desmonte da Petrobras no Governo Michel Temer.

André Korybko, nos explica como a guerra híbrida é sempre precedida pelas das revoluções coloridas (5):

“Este livro se detém na nova estratégia de guerra indireta que os EUA exibiram durante as crises na Síria e na Ucrânia. Ambas as situações deixaram muitos se perguntando se estavam observando uma exportação das revoluções coloridas para o Oriente Médio, a chegada da Primavera Árabe à Europa, ou, quem sabe, algum tipo de Frankenstein híbrido. Pode-se afirmar que, quando as ações dos EUA em ambos os países são comparadas de maneira objetiva, percebe-se claramente uma nova abordagem padronizada com vistas à troca de regime. Esse modelo inicia-se com a implementação de uma revolução colorida como tentativa de golpe brando, que é logo seguida por um golpe rígido, por intermédio de uma guerra não convencional, se o primeiro fracassar. A guerra não convencional é definida neste livro como qualquer tipo de força não convencional (isto é, grupos armados não oficiais), envolvida em combate largamente assimétrico contra um adversário tradicional. Se consideradas em conjunto em uma dupla abordagem, as revoluções coloridas e a guerra não convencional representam os dois componentes que dão origem à teoria da guerra híbrida, um novo método de guerra indireta sendo perpetrado pelo EUA.”

É preciso chamar atenção para o fato de que a América Latina há muito tempo, pelo menos desde a década de 70, sofre críticas no que tange a seus governantes e supostos casos de corrupção, criou-se uma atmosfera de que todo o continente latino-americano deveria sofrer um processo de transformação, a corrupção deveria ser banida da América Latina a qualquer custo.

Assim, vem sendo perpetuada a cultura de que tudo que vem dos Estados Unidos da América é correto e íntegro, mas a classe política dos países da América Latina não merece a mesma deferência e precisa ser afastada da direção dos governos dos respectivos países.

É nesse terreno fértil da América Latina, com ajuda da mídia hegemônica e utilização do Sistema de Justiça, que se cria um inimigo político e o retiram do poder, para implementação de um novo governo, mais adequado aos interesses geopolíticos e econômicos.

O lawfare é um mal a ser combatido, porque faz vítimas inocentes, que tem seus nomes destruídos pela mídia e por seus adversários. As vítimas não sofrem sozinhas, suas famílias e amigos desfrutam da mesma dor, que é infinita.

A prática do lawfare tem por escopo atingir a soberania nacional, com apropriação de riquezas e os meios de produção, atingindo as empresas públicas e privadas do país, atendendo a interesses geopolíticos, ao tornar a nação menos competitiva no cenário internacional.

Assim, é urgente e necessário detectarmos e criarmos mecanismos de combate ao lawfare.

Lawfare Nunca Mais!

Referências

  1. Zanin, Cristiano, Martins, Valeska e Valim, Rafael. Lawfare: uma introdução. s.l. : Contracorrente, 2020. p. 26.

  2. Zaffaroni, Eugênio Raul, Caamano, Cristina e Weis, Valéria Vegh. Bem-vinfos ao Lawfare – Manual de Passos Básicos para Demolir o Direito Penal. s.l. : Tirant Lo Balnch, 2021. p. 136.

  3. Rodrigues, Fabrício Gaspar. O Uso indevido da Ação Civil por ato de Improbidade Administrativa como Instrumento Anômalo de Lawfare. s.l. : Lumen Juris, 2023. p. 36.

  4. Casara, Rubens. A Arte Neoliberal de Perseguir Inimigos: Lawfare e o controle dos indesejáveis. Coleção Mulheres no Direito Internacional.

  5. Korybko, Andrew. Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes. São Paulo : Expressão Popular. p. 14.

 

Palavras Chaves

chaves para indexação: O que é Lawfare? Sistema de Justiça. Mídia. Geopolítica.