O ESTADO DE INCERTEZA GERADO PELA DECISÃO DE IMPRONÚNCIA

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo propor uma reflexão acerca do Tribunal do Júri e as consequências trazidas pelo estado de incerteza que a decisão de impronúncia gera ao Réu. Num primeiro momento foi estabelecida uma breve análise sobre a natureza jurídica do Tribunal do Júri, sua competência e seu procedimento bifásico. Em seguida fez-se uma exposição sobre as possíveis decisões a serem tomadas pelo Magistrado quando do fim da primeira fase procedimental do Júri. Por fim, fora elucidado no que consiste a decisão de impronúncia, bem como foram expostos os prejuízos gerados ao Réu advindos desta decisão. Desta forma, o proposto estudo visa, através de uma análise bibliográfica, estabelecer um debate sobre os questionamentos no tocante a uma decisão que, dada suas peculiaridades, não põe fim à relação processual e nem absolve o Réu. Ao final da pesquisa, considera-se que a melhor solução para não ensejar o estado de incerteza gerado pela decisão de impronúncia é a aplicação da absolvição por falta de elementos suficientes para a pronúncia ou desclassificação do Réu, conforme previsto no art. 386, CPP, sem prejuízo da absolvição sumária, expressa no art. 415, CPP.

Artigo

O ESTADO DE INCERTEZA GERADO PELA DECISÃO DE IMPRONÚNCIA

 

José Carlos De Oliveira Benites[1]

Resumo – O presente trabalho tem como objetivo propor uma reflexão acerca do Tribunal do Júri e as consequências trazidas pelo estado de incerteza que a decisão de impronúncia gera ao Réu. Num primeiro momento foi estabelecida uma breve análise sobre a natureza jurídica do Tribunal do Júri, sua competência e seu procedimento bifásico. Em seguida fez-se uma exposição sobre as possíveis decisões a serem tomadas pelo Magistrado quando do fim da primeira fase procedimental do Júri. Por fim, fora elucidado no que consiste a decisão de impronúncia, bem como foram expostos os prejuízos gerados ao Réu advindos desta decisão. Desta forma, o proposto estudo visa, através de uma análise bibliográfica, estabelecer um debate sobre os questionamentos no tocante a uma decisão que, dada suas peculiaridades, não põe fim à relação processual e nem absolve o Réu. Ao final da pesquisa, considera-se que a melhor solução para não ensejar o estado de incerteza gerado pela decisão de impronúncia é a aplicação da absolvição por falta de elementos suficientes para a pronúncia ou desclassificação do Réu, conforme previsto no art. 386, CPP, sem prejuízo da absolvição sumária, expressa no art. 415, CPP.

Palavras-chave: Direito Processual Penal; Júri; Impronúncia.

Sumário – Introdução. 1. Considerações sobre o Tribunal do Júri. 1.1. Da Natureza Jurídica e da Competência. 1.2. Do Procedimento Bifásico. 2. As possíveis Decisões que podem ser proferidas durante a Primeira Fase. 2.1. Pronúncia. 2.2. Absolvição Sumária. 2.3. Desclassificação. 3. A Decisão de Impronúncia e sua Natureza Jurídica. 4. As Consequências geradas pela Decisão de Impronúncia dada sua Natureza Jurídica. 4.1. Do Estado de Incerteza e da Violação da Presunção de Inocência. 4.2. Das Provas Novas. 4.3. Da Violação à Garantia do Julgamento em Prazo Razoável. 4.4. Da Violação ao Ne Bis In Idem. 5. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O tribunal do júri surge como representação da sociedade no sistema de justiça em que a própria comunidade afetada pelo crime possui a competência de aplicar a solução judicial, posicionando-se sobre o delito dentro dos parâmetros de seus valores.

No ano de 2022 o tribunal do júri completa 200 anos de sua existência, eis que instituído por D. Pedro I em 1822, cuja competência era tão somente para o julgamento dos crimes de imprensa.

Anos se passaram e o tribunal do júri, assim como toda a legislação brasileira, sofreu alterações, às vezes benéficas, às vezes nem tanto. Ainda assim, o estudo acerca do tema contribuiu para sua evolução e, como resultado, a mais correta e justa aplicação da lei penal.

Apesar de diversas alterações sofridas e muito estudo sobre a temática do tribunal do júri, alguns pontos se mantiveram sem se adequar ao cenário jurídico atual. Temos como exemplo a decisão de impronúncia que, ao invés de assegurar a presunção da inocência do acusado, a afasta, uma vez que tal decisão não põe fim à acusação por definitivo, mas sim mantém o acusado em um estado de incerteza, podendo ser novamente denunciado e julgado pelo mesmo fato caso haja novas provas.

Dentro de um Estado Democrático de Direito, regido por uma Constituição Federal que é incisiva ao prever que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, é inadmissível a manutenção de uma decisão que viola diretamente seus valores.

Por tal motivo, o estudo acerca das consequências oriundas da decisão de impronúncia se faz necessário eis que o estado de incerteza que tal decisão promove atualmente é inviável, indo de encontro, inclusive, aos ditames constitucionais, mais precisamente acerca da presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII, Constituição Federal, conforme já mencionada.

Evidente, portanto, a relevância do presente estudo de modo que objetiva elencar e ressaltar possíveis soluções já defendidas por doutrinadores, porém não observadas, contribuindo na formação de um sistema jurídico mais fiel possível ao previsto em nossa Carta Magna.

Para fazer emergir a problemática causada pela decisão de impronúncia, o proposto trabalho navega pela instituição do Tribunal do Júri e as possíveis decisões a serem prolatadas quando do final de sua primeira fase, visando explicitar a decisão de impronúncia e o estado de incerteza que promove ao investigado da suposta prática de infração penal dolosa contra a vida.

Assim, busca-se contribuir com possíveis soluções de modo a erradicar o atual e inconstitucional estado de incerteza gerado pela decisão de impronúncia com base nas sugestões de doutrinadores, inclusive no âmbito da atual elaboração do novo Código de Processo Penal em trâmite.

A estrutura do trabalho é baseado nos capítulos sobre considerações acerca do Tribunal do Júri, destacando sua natureza jurídica, competência e procedimento bifásico; possíveis decisões que podem ser proferidas durante a primeira fase, tais quais Pronúncia, Absolvição Sumária e Desclassificação; da coisa julgada; do ne bis in idem; a decisão de Impronúncia e sua natureza jurídica; e, por fim, as consequências geradas pela decisão de Impronúncia dada sua natureza jurídica, evidenciando o estado de incerteza e a violação da presunção de inocência, a violação à garantia do julgamento em prazo razoável, bem como a violação ao ne bis in idem.

Quanto a metodologia empregada, foram utilizadas as modalidades de pesquisa descritiva e explicativa, uma vez que foram descritas as características da decisão de Impronúncia, suas consequências, bem como evidenciar uma possível solução para sanar tais consequências. O presente trabalho visou a realização de um estudo almejando expor as consequências oriundas da decisão de impronúncia, mais precisamente o estado de incerteza imposto ao acusado.

Ao final, o trabalho responde a seguinte pergunta de pesquisa: qual solução cabível para impedir o estado de incerteza gerado pela decisão de Impronúncia?

  1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRIBUNAL DO JÚRI

1.1. DA NATUREZA JURÍDICA E DA COMPETÊNCIA

Primeiramente, necessário se faz evidenciar que o Tribunal do Júri consiste no Órgão do Poder Judiciário competente para processar e julgar os Crimes Dolosos contra a Vida, consumados ou tentados, conforme prevê o artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal (CPP), in verbis:

Art. 74, Caput, CPP – A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.

A competência do Júri é muito bem definida no art. 74, §1, CPP, de forma taxativa, não admitindo o emprego de analogias ou interpretações extensivas. Dessa forma, não são da competência do Tribunal do Júri crimes como latrocínio, extorsão mediante sequestro e estupro com resultado morte, bem como os demais crimes nos quais se produz o resultado morte, mas que não estão inseridos no Código Penal como “Crimes contra a Vida”.

Quando de sua origem, o Tribunal do Júri julgava apenas os denominados “crimes de imprensa”. Após, passou a julgar todo tipo de crime. Mais adiante, foi estabelecido que somente seria competente para julgar somente crimes dolosos contra a vida (tentados ou consumados), que são homicídio, aborto, infanticídio e induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, por serem considerados os crimes mais graves a serem cometidos.

Importante mencionar que tal competência originária não impede que o Tribunal do Júri julgue outros delitos não previstos no art. 74, §1º, CPP, desde que estes sejam conexos com um crime doloso contra a vida.

O Tribunal do Júri está previsto no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal (CF), assegurando-se a Plenitude de Defesa, o Sigilo das Votações, a Soberania dos Veredictos, e a Competência para o Julgamento dos Crimes Dolosos contra a Vida, bem como sua disciplina legal é extraída dos artigos 406 a 497, CPP.

Aduz Rodrigo Faucz que o júri constitui importante instrumento de participação cidadã na administração da justiça, sendo que seus avanços e retrocessos acompanham simetricamente os avanços e retrocessos da própria democracia (AVELAR e FAUCZ, 2022, p. 95).

1.2. DO PROCEDIMENTO BIFÁSICO

Quanto à estrutura do Procedimento do Tribunal do Júri, este é dividido em duas fases, motivo pelo qual por muitos chamado de Procedimento Bifásico, a saber: Primeira Fase, que consiste na Instrução Preliminar, e Segunda Fase, que consiste no Julgamento em Plenário.

A Primeira Fase se inicia com o recebimento da Denúncia ou Queixa, nascendo-se o processo, e termina com a Pronúncia, que consiste em uma das possíveis Decisões a serem tomadas pelo Magistrado após os Debates Orais, previstos no art. 411, §4º, CPP.

Sobre o recebimento da Denúncia ou queixa, leciona Rodrigo Faucz que tal recebimento possui caráter híbrido ao produzir efeitos no âmbito do processo penal e do direito penal – visto que é marco interruptivo da prescrição (AVELAR e FAUCZ, 2022, p. 167).

Sobre a Primeira Fase, aduz André Nicolitt que:

Durante a Primeira Fase compete ao juiz togado somente uma análise de admissibilidade de acusação, decidindo se o réu será ou não encaminhado para o julgamento pelo tribunal popular, que é o seu juiz natural. Com efeito, nada mais há do que um exame para saber se a justa causa sobrevive ao debate contraditório, isto é, se mesmo diante de um procedimento contraditório subsistem indícios de autoria e materialidade para justificar o julgamento pelo Tribunal do Júri (NICOLITT, 2018, p. 555).

No que tange ao prazo estabelecido para a primeira fase, o supracitado autor leciona que do oferecimento da denúncia até a sentença o prazo é de 90 dias. Não observado o prazo e estando o réu preso, será caso de relaxamento da prisão por excesso de prazo (NICOLITT, 2018, p. 555).

Nesta Fase, recebida a Denúncia ou Queixa Subsidiária, é ordenada a Citação do Acusado para que este apresente defesa escrita em até 10 dias. Após apresentação da defesa, é dada vista ao Ministério Público para que este se manifeste sobre eventuais exceções e preliminares alegadas pela Defesa. Manifestando-se o MP, é designada audiência de Instrução e Julgamento e, finalizada, o Magistrado profere a Decisão de Pronúncia, Impronúncia, Absolvição Sumária ou Desclassificação.

Observação importante é feita por André Nicolitt quando de sua manifestação de que a primeira parte do julgamento no júri é praticamente igual ao procedimento ordinário perante o juiz singular, tendo sofrido pequenas alterações (NICOLITT, 2018, p. 555).

Já a Segunda Fase se inicia com a confirmação da Pronúncia, indo até a Decisão proferida pelo julgamento realizado no Tribunal do Júri, este realizado por Membros da Sociedade, mais precisamente 07 jurados.

Confirmada a Pronúncia, os autos são encaminhados para o Juiz Presidente do Tribunal do Júri e este determina a intimação do Ministério Público ou Querelante, no caso de Queixa Subsidiária, e da Defesa para que, no prazo de 05 dias, apresentem o rol de Testemunhas a serem ouvidas no Plenário, podendo ser juntados documentos e postuladas diligências que devem ser realizadas antes da sessão de julgamento.

Após, forma-se o Conselho de Sentença através de sorteio, contando com 07 jurados, é realizada a oitiva da vítima, se viva, bem como das testemunhas de acusação e de defesa. Ato contínuo, é realizado o interrogatório do Réu, ocorrem os Debates Orais, a Quesitação e a Prolação da Sentença.

  1. AS POSSÍVEIS DECISÕES QUE PODEM SER PROFERIDAS DURANTE A PRIMEIRA FASE

Conforme já mencionado, após a audiência de instrução e julgamento, mais precisamente após os debates orais, cabe ao Magistrado prolatar algumas das possíveis decisões para o caso, tais como a Pronúncia, a impronúncia, a desclassificação ou a Absolvição Sumária.

Todas as mencionadas decisões possuem suas peculiaridades e requisitos para sua respectiva prolação pelo Magistrado. Neste capítulo abordaremos de modo genérico as decisões de Pronúncia, Desclassificação e Absolvição Sumária. No que toca a decisão de Impronúncia, por se tratar de objeto de maior importância para este trabalho, será tratada em capítulo específico para maior atenção e detalhamento da mesma.

2.1. DA PRONÚNCIA

Assim sendo, a primeira decisão possível a ser prolatada pelo Magistrado e que põe fim à primeira fase do procedimento do tribunal do júri é a pronúncia, que consiste em decisão interlocutória mista, não terminativa, que deve preencher os requisitos do art. 381, CPP, in verbis:

Art. 381, CPP – A sentença conterá:

I – os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

II – a exposição sucinta da acusação e da defesa;

III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

IV – a indicação dos artigos de lei aplicados;

V – o dispositivo;

VI – a data e a assinatura do juiz.

Para Aury Lopes Jr., a decisão de Pronúncia marca o acolhimento provisório, por parte do Juiz, da pretensão acusatória, determinando que o Réu seja submetido ao julgamento do Tribunal do Júri (LOPES JR, 2021, p. 878-879).

Sobre a perspectiva do referido autor a Pronúncia demarca o momento em que o Magistrado aceita, ainda que provisoriamente, a acusação feita pelo MP e encaminha o processo para o julgamento que será realizado pelos jurados.

No mesmo sentido, leciona Rodrigo Faucz que a decisão de Pronúncia é o ato que encerra, no procedimento escalonado, o judicium accusationis, enviando o acusado para julgamento perante Júri popular (AVELAR e FAUCZ, 2022, p. 229).

A pronúncia é a decisão que encerra a primeira fase do tribunal do júri e o Magistrado remete o Réu para que seja julgado pelos seus pares.

Tal qual toda decisão judicial, a pronúncia deve ser fundamentada. Nesse interim aduz Aury Lopes Jr. que:

Por se tratar de uma decisão provisória, em atípico procedimento bifásico, no qual o órgão competente para o julgamento é o Tribunal do Júri (e não o Juiz Presidente, que profere a Pronúncia), a decisão é bastante peculiar. Não pode o Juiz condenar previamente o Réu, pois não é ele o competente para o julgamento. Por outro lado, especial cuidado deve ter o julgador na fundamentação, para não contaminar os jurados, que são facilmente influenciáveis pelas decisões proferidas por um Juiz profissional e, mais ainda, por aquelas proferidas por Tribunais (LOPES JR, 2021, p. 879).

Nesse passo, deve o Magistrado ater-se a indicar a existência do delito (materialidade) e a existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, conforme previsto no art. 413, §1º, CPP, in verbis:

Art. 413, CPP – O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

  • 1o – A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.

Portanto, no que tange a pronúncia, conclui-se que se trata de um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente julgará são os jurados, ou seja, é outro julgamento a partir de outros elementos, essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário.

2.2. DA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA

Outra Decisão possível nesta fase é a Decisão de Absolvição Sumária. Esta é regulada pelo art. 415, CPP, in verbis:

Art. 415, CPP – O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

I – provada a inexistência do fato;

II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III – o fato não constituir infração penal;

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Parágrafo único.  Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.

Acerca da Absolvição Sumária, Aury Lopes Jr. entende que:

A Absolvição Sumária não é apenas uma decisão interlocutória, mas sim uma verdadeira sentença, com análise de mérito e que passou (com o advento da Lei nº 11.689/2008), exatamente por ter essas características, a ser impugnada pela via do recurso de apelação. Também, outra inovação relevante da referida lei foi a acertada extinção do “recurso ex officio” da sentença de absolvição sumária, pois era uma teratologia processual completa um juiz decidir e recorrer da decisão que ele próprio proferiu, sendo evidente sua ilegitimidade (pois não parte interessada para recorrer) e também a violação do sistema acusatório (LOPES JR, 2021, p. 2021).

Em palavras diversas das do referido Autor, a Absolvição Sumária é considerada uma sentença eis que analisa o mérito da questão e, como resultado de tal análise, absolve-se o Réu, motivo pelo qual deve ser atacada pelo Recurso de Apelação, conforme disposto no art. 416, CPP, in verbis:

Art. 416, CPP – Contra a sentença de impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação.

Para a configuração dos Incisos I e II do art. 415, CPP, necessário se faz estar “provado” que o fato inexiste ou que o acusado não é autor ou partícipe do fato, respectivamente, ensejando, portanto, um pleno convencimento do Magistrado de tais situações, através de prova robusta.

Nessa esteira, menciona Aury Lopes Jr., que não se confunde, portanto, com “não haver prova suficiente da autoria ou materialidade”. A exigência é de convencimento e não de dúvida do magistrado (LOPES JR, 2021, p. 895).

Importante ressaltar que, conforme leciona Renato Brasileiro:

Tal hipótese de absolvição sumária não se confunde com a impronúncia. Na absolvição sumária, o juiz está plenamente convencido de que o acusado não é o autor do fato delituoso, ao passo que, na impronúncia, não há indícios suficientes de autoria ou de participação. (BRASILEIRO, 2022, p. 1264)

No que tange ao Inciso III, é permitida a Absolvição Sumária do Réu quando o fato narrado não constituir infração penal, ou seja, tratar-se de fato atípico.

Quanto ao Inciso IV, este dispositivo prevê que é cabível a Absolvição Sumária quando demonstrada a presença de quaisquer causas de exclusão de ilicitude ou da culpabilidade do agente.

Sobre o tema, André Nicolitt assevera que:

A Absolvição Sumária dar-se-á quando ficar provada a inexistência do fato, ou não ser o acusado autor ou partícipe do fato, ou não constituir o fato infração penal, ou ainda ficar provada causa de isenção de pena ou exclusão do crime, ou seja, as excludentes de culpabilidade e ilicitude (NICOLITT, 2018, p. 559).

Em conformidade, aduz Renato Brasileiro que:

O acusado deve ser absolvido sumariamente quando o juiz estiver convencido que o crime foi praticado sob o amparo de causa excludente de ilicitude, ou seja, em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito. Também será cabível a absolvição sumária do agente quando verificada a presença manifesta de causa excludente de culpabilidade. Como exemplos, podemos citar a coação moral irresistível, a obediência hierárquica ou a inexigibilidade de conduta diversa, esta como causa supralegal de exclusão da culpabilidade (BRASILEIRO, 2022, p. 1265).

Ponto que merece destaque é o previsto no parágrafo único do art. 415, CPP, eis que torna evidente a distinção entre inimputável com tese defensiva e inimputável sem tese defensiva.

Para o inimputável (devidamente comprovado pelo incidente do art. 149, CPP[2]) que alega as hipóteses autorizadoras da Absolvição Sumária (Incisos I, II, III ou IV, art. 415, CPP), o julgamento por parte do Magistrado deve se pautar nas regras normais, ou seja, como se o Réu fosse imputável, podendo contra ele ocorrer a Pronúncia, Impronúncia, Desclassificação e até mesmo a Absolvição Sumária, esta pautada nos incisos do art. 415, como já mencionado.

Como consequência, havendo a absolvição por estar abrigado por qualquer hipótese dos incisos do art. 415, CPP, não haverá aplicação de Medida de Segurança.

Nessa linha, leciona Aury Lopes Jr.:

Assim, acertadamente, assegura-se ao inimputável o direito ao processo e ao julgamento, pois pode ele ser absolvido sumariamente porque agiu ao abrigo da legítima defesa, bem como ser impronunciado ou, ainda, ser submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri para que os jurados decidam sobre sua tese defensiva. Finalmente, se submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri e for acolhida a tese acusatória, somente então deverá o juiz proferir uma sentença absolutória imprópria, absolvendo e aplicando a medida de segurança (art. 386, parágrafo único, inciso III, CPP) (LOPES JR, 2021, p. 895-896).

De modo contrário, caso o Réu alegue exclusivamente que praticou o ato em razão de determinada doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, de modo que ao tempo da ação ou omissão era inteiramente incapaz de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, deverá o magistrado absolver sumariamente o acusado e aplicar medida de segurança, tratando-se de absolvição sumária imprópria, de acordo com o ar. 386, parágrafo único, III, CPP.

Sobre tal hipótese, Aury Lopes Jr. defende que essa postura é censurável, pois não apenas subtrai o caso penal do julgamento do júri, como impõe uma medida de segurança (o que é, faticamente, até mais grave do que a pena privativa de liberdade) em evidente sentido de condenação (LOPES JR, 2021, p. 896).

2.3. DA DESCLASSIFICAÇÃO:

A Desclassificação é outra Decisão que pode o Magistrado proferir quando está convencido que o suposto crime cometido não se trata de crime doloso contra a vida. Tal fato enseja a incompetência do Tribunal do Júri para o julgamento daquele processo. Ocorrendo a desclassificação, o processo deve ser remetido ao Juiz que é competente para seu julgamento, na forma do art. 419, CPP, in verbis:

Art. 419, CPP – Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no §1o do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.

Sobre o tema, afirma André Nicolitt que:

A Desclassificação ocorre quando o juiz está convencido da inexistência de crime doloso contra a vida (art. 419, CPP), tornando o Tribunal do Júri incompetente para o julgamento e remetendo o processo ao juízo competente (NICOLITT, 2018, p. 2018).

A inexistência de crime doloso contra a vida não é a única possibilidade de desclassificação. Nesse caso, trata-se da desclassificação de um crime mais grave para um menos grave, Contudo, é possível que a desclassificação seja feita de modo inverso, ou seja, de um crime menos grave para um crime mais grave.

Nesse sentido, Aury Lopes Jr. leciona que:

Desclassificar é dar ao fato uma definição jurídica diversa, tanto de um crime mais grave para outro menos grave, mas também no sentido inverso, pois ‘desclassificar’, em termos processuais, não significa, necessariamente, sair de um crime mais grave para outro menos grave (LOPES JR, 2021, p. 897).

No mesmo sentido, aduz Renato Brasileiro que:

Se o juiz sumariante concluir que o fato narrado na peça acusatória não diz respeito a crime doloso contra a vida, deverá proceder à desclassificação da imputação. Perceba-se que é perfeitamente possível a desclassificação para imputação mais grave (BRASILEIRO, 2022, p. 1259).

Leciona, ainda, Aury Lopes Jr. que a desclassificação poderá ocorrer na primeira fase ou em plenário (LOPES JR, 2021, p. 898).

No que tange à desclassificação ocorrida na primeira fase, esta é feita pelo Juiz presidente, uma vez que o mesmo pode concordar ou não com a classificação jurídica feita pelo Ministério Público aos fatos narrados na denúncia. Havendo a concordância, o Magistrado profere a Decisão de Pronúncia e os autos seguem para o Plenário.

Quando não há concordância e o Magistrado entende que a classificação jurídica é incompatível com os fatos narrados, este deve realizar a desclassificação para outro crime. Havendo a desclassificação e a nova capitulação jurídica se mantiver de competência do Tribunal do Júri, como por exemplo a desclassificação do crime de infanticídio para o crime de homicídio, ambos dolosos contra a vida, opera-se a desclassificação imprópria.

De modo diverso, havendo a desclassificação para crime cuja competência não seja a do Tribunal do Júri, ocorrerá a desclassificação própria, como por exemplo o caso do Réu denunciado por tentativa de homicídio e pronunciado por lesão corporal.

No que tange aos crimes conexos, estes seguem o crime principal. Ocorrendo a desclassificação própria, os crimes conexos são remetidos juntamente com o crime principal para julgamento pelo Juiz singular, eis que o juiz presidente do Tribunal do Júri não possui competência para julgá-lo. De modo diverso, ocorrendo a desclassificação imprópria, os crimes conexos serão julgados pelo Tribunal do Júri.

Leciona Aury Lopes Jr. que, quanto ao recurso cabível para impugnar a desclassificação feita na primeira fase, deve-se utilizar o recurso em sentido estrito, previsto no art. 581, II, pois estamos diante de uma decisão que conclui pela incompetência do Tribunal do Júri para o julgamento (LOPES JR, 2021, p. 899).

Como já mencionado, a desclassificação também poderá ocorrer em Plenário. Tal desclassificação é feita por meio da resposta dada pelos jurados aos quesitos, ensejando uma desclassificação própria ou imprópria.

Podem os jurados alterar a competência para o julgamento quando, por exemplo, respondem aos quesitos propostos negando que o agente tenha agido com dolo (requisito obrigatório para o julgamento pelo Tribunal do Júri, eis que competente para julgar os crimes dolosos contra a vida). Tal situação enseja, portanto, uma desclassificação própria, de modo que afasta a competência do tribunal do júri.

Sobre a desclassificação imprópria, aduz Aury Lopes Jr. que fica restrita aos casos em que é reconhecido o excesso culposo na excludente ou admitida a participação dolosamente distinta (LOPES JR, 2021, p. 900).

Por último, mas não menos importante, temos a Decisão de Impronúncia, que será tratada em capítulo próprio, haja vista ser o objeto do presente trabalho.

 

  1. A DECISÃO DE IMPRONÚNCIA E SUA NATUREZA JURÍDICA

A Decisão de Impronúncia é prevista no art. 414, Caput, CPP, in verbis:

Art. 414, Caput, CPPNão se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.

A impronúncia consiste em Decisão Terminativa que encerra o processo sem julgamento de mérito, não havendo a produção de coisa julgada material, sendo proferida quando, apesar da instrução, não lograr o acusador êxito ao demonstrar e comprovar sua tese acusatória, não restando elementos suficientes de autoria e materialidade que ensejem a Pronúncia.

Nesse sentido, aduz Rodrigo Faucz que a Impronúncia é uma decisão diametralmente oposta à Pronúncia, visto que utiliza o mesmo texto legal, mas de forma antagônica[3] (AVELAR; FAUCZ, 2022, p. 264).

A Decisão de Impronúncia é totalmente aversa a Pronúncia, eis que, enquanto para esta o Magistrado deve estar convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 413, CPP)3, para aquela o Magistrado se encontra na posição de não convencido sobre tais elementos de admissibilidade.

Pontua Frederico Marques que a Impronúncia consiste em decisão declaratória de inadmissibilidade da acusação, expondo que:

Na impronúncia, há sentença declaratória da não procedência da denúncia, uma vez que não se provou ser o réu suspeito da prática do fato delituoso que lhe foi atribuído, ou porque não se demonstrou a existência de fato delituoso, ou porque se não firmou, de maneira convincente, a probabilidade de ser o réu o autor do crime. Sem que o fato típico fique provado, e a autoria imputada ao réu se tenha por provável, inadmissível a acusação contra este: daí a sentença de impronúncia, como decisão declaratória de inadmissibilidade da jus accusationis (MARQUES, 1963, p. 237).

Leciona André Nicolitt que a impronúncia nada mais é do que uma sentença que extingue o processo sem apreciação de mérito por entender faltar justa causa para a ação penal (NICOLITT, 2018, p. 558).

Aduz Aury Lopes Jr., que a Impronúncia é uma decisão terminativa, pois encerra o processo sem julgamento de mérito, sendo cabível o recurso de apelação, art. 593, II, CPP (LOPES JR, 2021, p. 891).

Sobre a natureza da Decisão de Impronúncia, expõe Rodrigo Faucz que se trata de uma sentença terminativa que, ao colocar fim ao processo, faz apenas coisa julgada formal (AVELAR; FAUCZ, 2022, p. 265).

A Decisão de Impronúncia é uma decisão que põe fim ao processo, não julgando o mérito do caso, pois o magistrado entende não haver justa causa para a ação, por tal motivo não faz coisa julgada material.

Em complemento, o Professor Renato Brasileiro leciona que:

Apesar de tratada equivocadamente como sentença no art. 416 do CPP, trata-se, a impronúncia, de decisão interlocutória mista terminativa: decisão interlocutória, porque não aprecia o mérito para dizer se o acusado é culpado ou inocente; mista, porque põe fim a uma fase procedimental; e terminativa, porquanto acarreta a extinção do processo antes do final do procedimento (BRASILEIRO, 2022, p. 1257).

Afirma ainda o referido Autor, que, se não há análise do mérito, forçoso é concluir que referida decisão só produz coisa julgada formal (BRASILEIRO, 2022, p. 1257).

Considerando que a Impronúncia não se trata de decisão que analisa o mérito do caso, mas tão somente atesta a inadmissibilidade da acusação por falta de justa causa, produz tão somente coisa julgada formal, finalizando o processo e dispensando o Réu do julgamento pelos jurados.

Sobre tal o fim do processo e a dispensa do Réu do julgamento pelo tribunal do júri sem que haja o julgamento de mérito, atesta Rodrigo Faucz que a Impronúncia é uma verdadeira “absolvição de instância”, pois o magistrado não condena ou absolve o acusado (AVELAR; FAUCZ, 2022, p. 265)

Não havendo o julgamento de mérito, mas tão somente a finalização do processo por não estar convencido o magistrado dos indícios de autoria e materialidade, o acusado, que não é nem absolvido nem condenado, não resta livre da imputação, podendo, inclusive ser processado novamente, desde que preenchidos os requisitos para tal.

O estado do réu quando impronunciado, diante da incerteza que o circunda, bem como a possibilidade de ser novamente acusado e, posteriormente, julgado, é o objeto do presente trabalho, motivo pelo qual será melhor abordado e detalhado no capítulo a seguir.

 

  1. CONSEQUÊNCIAS GERADAS PELA DECISÃO DE IMPRONÚNCIA DADA SUA NATUREZA JURÍDICA

4.1. DO ESTADO DE INCERTEZA GERADO AO RÉU E VIOLAÇÃO À GARANTIA DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Como já mencionado, a Impronúncia consiste em Decisão Terminativa que encerra o processo sem julgamento de mérito, não havendo a produção de coisa julgada material. Portanto, o processo pode ser reaberto a qualquer tempo, até a extinção da punibilidade, desde que surjam novas provas, conforme previsto no art. Art. 414, Parágrafo Único, CPP, in verbis:

Art. 414, Parágrafo Único, CPPEnquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova.

Apesar de ser o contrário da Decisão de Pronúncia, a Impronúncia não significa que o Réu esteja absolvido, eis que, mesmo não sendo submetido ao Tribunal do Júri, não está inteiramente livre da imputação, motivo pelo qual tal Decisão ocasiona um estado de incerteza.

Sobre o mencionado estado de incerteza, leciona Aury Lopes Jr., que:

Ao não decidir nada em favor do réu, a impronúncia gera um estado de pendência, de incerteza e insegurança processual. O processo pode ser a qualquer momento reaberto, desde que exista prova nova. A situação somente é definitivamente resolvida quando houver a extinção da punibilidade, ou seja, a prescrição pela (maior) pena em abstrato, o que pode representar 20 anos de espera (LOPES JR, 2021, p. 892).

Na forma que fora prevista do art. 414, parágrafo único, do CPP, a Impronúncia não resolve nada, gerando um angustiante e ilegal estado de pendência, de modo que o réu não resta absolvido, nem condenado, podendo ser novamente processado pelo mesmo fato a qualquer tempo.

Acerca da efetividade esperada das Decisões Judiciais, o Autor Paulo Rangel aduz que:

Tal decisão não espelha o que de efetivo se quer dentro de um Estado Democrático de Direito, ou seja, que as decisões judiciais ponham um fim aos litígios, decidindo-os de forma meritória, dando, aos acusados e à sociedade, segurança jurídica (RANGEL, 2005, p. 541).

É considerada uma decisão substancialmente inconstitucional, bem como violadora da presunção de inocência quando de sua aplicação, eis que na ausência de provas suficientes da existência do fato e/ou da autoria (elementos autorizadores para a Decisão de Pronúncia), a Decisão deveria ser Absolutória. Contudo, o que prevalece é a colocação do indivíduo em um “banco de reservas” aguardando novas provas ou a extinção da punibilidade, o que é inadmissível.

Sobre o tema, Aury Lopes Jr. complementa que:

Entendemos assim que o estado de pendência e de indefinição gerado pela impronúncia cria um terceiro gênero não recepcionado na pela Constituição, em que o réu não é nem inocente, nem está condenado definitivamente. É como se o Estado dissesse: ainda não tenho provas suficientes, mas um doa eu acho… (ou fabrico…); enquanto isso, fica esperando (LOPES JR, 2021, p. 893).

Evidente, portanto, que o estado de incerteza gerado ao acusado não segue os ditames constitucionais, eis que não há qualquer previsão para tal. De modo contrário, é previsto que o réu não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, assegura a todos a presunção de inocência.

4.2. DAS PROVAS NOVAS

Acerca das provas novas capazes de sujeitar o réu a um novo processo, adverte o Renato Brasileiro que:

Provas novas, capazes de autorizar o oferecimento de nova denúncia ou queixa, são aquelas que produzem alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebida a Decisão de Impronúncia (BRASILEIRO, 2022, p. 1258).

Nesse ínterim, a Doutrina reconhece duas espécies de provas novas, quais sejam, as substancialmente novas, sendo aquelas inéditas, desconhecidas até então, podendo estarem ocultas ou ainda inexistentes, bem como as formalmente novas, sendo aquelas que já são conhecidas e que já podem ter sido utilizadas, mas que ganham nova versão.

Também sobre provas novas, de forma mais específica, manifesta-se André Nicolitt no sentido de que:

Não custa repetir que a prova nova referida no parágrafo único do indigitado artigo deverá ser capaz de modificar substancialmente o quadro probatório da época em que ocorreu a impronúncia. Deve, assim, constituir verdadeiramente a justa causa para a ação, não bastando ser uma novidade formal; deve constituir o que se chama de prova substancialmente nova (NICOLITT, 2018, p. 558).

Não se trata, portanto, de uma nova avaliação da prova existente nos autos, mas sim algo que não existia no caderno processual e que possa, agora, ser elemento suficiente para o oferecimento da nova acusação e posterior pronúncia do acusado.

Acerca da possível aparição de uma prova nova, leciona Rodrigo Faucz:

A insuficiência do aparato do Estado em produzir a prova da existência de um crime (materialidade) e de indícios suficientes de autoria ou de participação, não pode gerar ao acusado a permanência em estado letárgico, até que, em nova oportunidade, possa a acusação obter êxito. Nova oportunidade que, como bem sabem os operadores do direito, (quase) nunca virá, diante da deficiência do sistema investigativo criminal, o qual sequer consegue dar vazão os casos em andamento. Seria demasiado conjecturar que um caso penal investigado, denunciado e, ao final, impronunciado, fosse reaberto diante da estrutura que temos hoje. Frente a esse quadro, não restará alternativa ao acusado senão aguardar, a partir da (eterna) dúvida, a ocorrência da prescrição (AVELAR; FAUCZ, 2022, p. 270).

Conforme exposto, pode o Réu ser novamente processado e julgado na aparição de provas novas, desde que suficientes para embasar uma nova acusação. Tal possibilidade não coaduna com a presunção de inocência prevista na Constituição Federal, afastando-a e mantendo o Réu na posição de ser sempre processado e julgado até na possibilidade de aparição de novas provas.

4.3. DA VIOLAÇÃO À GARANTIA DE JULGAMENTO EM PRAZO RAZOÁVEL

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o Acusado deve ser julgado em um prazo razoável, conforme disposto no art. 5º, LXXVIII, CF[4]. Tal situação de incerteza prolonga a pena-processo por um período extremamente dilatado, mantendo o réu angustiado e em grave estigmatização social e jurídica à disposição do Estado.

Sobre a manutenção do réu na pendência de julgamento, violando seu direito de ser julgado em tempo razoável, aduz Rodrigo Faucz:

Considerando uma situação hipotética de alguém injustamente acusado e que o MP não tenha conseguido arregimentar indícios suficientes de autoria (claro, eis que se trata de um inocente), além de todas as agruras derivadas do próprio processo penal, o acusado nunca poderá ostentar uma certidão afirmando que foi injustamente processado, vez que na certidão primeiramente constará como impronunciado e, posteriormente (após 20 anos), extinta a punibilidade (AVELAR; FAUCZ, 2022, p. 270).

Como observado, o referido autor nos alerta, inclusive, acerca do fato de que o acusado jamais poderá provar que foi investigado e denunciado injustamente por meio de sua Folha de Antecedentes Criminais (FAC), eis que, ao final do prazo prescricional, constará tão somente em sua FAC que ocorreu a extinção da punibilidade daquele agente.

Tal situação, como já visto, sujeita o Acusado à estigmatização social, trazendo inúmeros prejuízos, tais como a dificuldade de ser empregado formalmente, diante do nítido, embora mascarado, preconceito existente em nossa sociedade.

Por fim, no que tange ao crime conexo ao crime que fora impronunciado, não sendo da competência do Tribunal do Júri, deverá ser redistribuído para o Juiz Singular competente ou, quando se tratar de infração de menor potencial ofensivo, para o Juizado Especial Criminal.

4.4. DA VIOLAÇÃO AO NE BIS IN IDEM

O Princípio do Ne Bis in Idem aduz que nenhum indivíduo pode/deve ser punido pelo mesmo fato. Tal princípio visa limitar o poder-dever que o Estado tem de punir.

Mesmo não sendo previsto em nossa Constituição Federal, datada de 1988, o referido princípio pode ser considerado uma garantia fundamental diante da previsão do art. 5º, §2º, CF[5], que dispõe que os direitos e garantias fundamentais são aqueles que se encontram na Constituição, tem origem do regime ou dos princípios nela previstos, ou os que se encontram em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil faça parte.

O Ne Bis in Idem é previsto no art. 8.4, da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (CADH/69), prevendo que o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

No presente caso, a CADH/69 foi ratificada pelo Brasil em 1992, adquirindo, por tal fato, status de norma supralegal, motivo pelo qual é considerado garantia fundamental, ainda que não prevista em nossa CF.

A Decisão de Impronúncia, por outro lado, impõe ao Réu a possibilidade de ser novamente julgado e processado pelo mesmo fato na hipótese de novas provas, indo de encontro com os ditames do referido Princípio.

Evidente, portanto, que a Decisão de Impronúncia viola os ditames aduzidos pelo Princípio do Ne Bis in Idem, bem como os ditames constitucionais ao prever a possibilidade de um novo processo com base nos mesmos fatos.

CONCLUSÃO

Após navegar por todas as Decisões possíveis diante da parte final da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri a título de exposição, o presente trabalho almejou evidenciar a Decisão de Impronúncia e suas particularidades, principalmente as consequências que tal decisão provocam no Réu e seu estado de inocência.

Diante de toda a doutrina exposta sobre o tema, por força do parágrafo único do supracitado art. 414, CPP, a Decisão de Impronúncia gera ao Acusado um estado de incerteza acerca de sua inocência, eis que não resta absolvido e nem condenado, podendo ser processado novamente caso surjam novas provas.

Tal possibilidade, à luz da presunção de inocência, é inadmissível e considerada inconstitucional, posto que o Réu deve ser absolvido na impossibilidade de o Estado provar a existência do fato e/ou da autoria.

Ainda, sob a perspectiva do direito de ser julgado em tempo razoável, a Decisão de Impronúncia atesta que o poder de acusar não possui qualquer limite temporal, senão a extinção de punibilidade, eis que o Estado mantém o Réu “aguardando” o aparecimento de novas provas ou o decurso da prescrição, que, como já exposto, pode durar até 20 anos.

Portanto, sugere-se como solução para o inapropriado e inconstitucional estado de incerteza gerado pela decisão de impronúncia a aplicação do art. 386, CPP, eis que, não havendo prova suficiente para a pronúncia, ou desclassificação, o Réu deve ser absolvido, sem prejuízo da possibilidade de absolvição sumária conforme a prova produzida, nos termos do art. 415, CPP.

Com a devida aplicação do art. 386, CPP, a Sentença Absolutória prolatada, além de estar de acordo com os ditames constitucionais, fará coisa julgada material, impedindo que o Acusado seja investigado e processado pelo mesmo fato futuramente, proporcionando segurança jurídica a toda a sociedade.

Por fim, respondendo a pergunta de pesquisa proposta temos que a melhor solução para não ensejar o estado de incerteza gerado pela decisão de impronúncia é a aplicação da absolvição por falta de elementos suficientes para a pronúncia ou desclassificação do Réu, conforme previsto no art. 386, CPP, sem prejuízo da absolvição sumária, expressa no art. 415, CPP.

REFERÊNCIAS

AVELAR, Daniel; FAUCZ, Rodrigo. Manual do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2ª Tiragem, 2022.

BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal: Volume Único. São Paulo: JusPodivm, 11 ed. 2022.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 18 ed. 2021.

MARQUES, José Frederico. A instituição do júrivol. I. São Paulo: Saraiva, 1963.

NASSIF, Aramis. O Novo Júri Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 7 ed. 2018.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 10 ed, 2005.

Notas:

[1] Graduado em Direito pela Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO (2017). Pós-Graduado em Processo Penal Aplicado pela Faculdade Supremo (2022). Atua predominantemente na área do Direito Penal e Processual Penal. Delegado da Comissão da OAB JOVEM da 24ª Subseção (Nilópolis) da OAB/RJ. Delegado da Comissão de Prerrogativas da 24ª Subseção (Nilópolis) da OAB/RJ.

[2] Art. 149, CPP – Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.

[3]3 Art. 413, CPP – O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

[4] Art. 5º, LXXVIII, CF – A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

[5] Art. 5º, §2º, CF – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Palavras Chaves

Direito Processual Penal; Júri; Impronúncia.