OS EFEITOS SUCESSÓRIOS DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA DE FATO NO ATUAL CENÁRIO JURÍDICO BRASILEIRO

Resumo

O presente artigo foi baseado na necessidade de abordar a questão do direito à sucessão do
filho socioafetivo na relação de parentalidade socioafetiva. Para isso foi realizada uma pesquisa
bibliográfica a fim de embasar as ideias relacionadas ao tema, através do método dedutivo,
comparando os entendimentos já existentes. Busca-se com essa pesquisa demonstrar a
importância do direito pertinente aos filhos socioafetivos de fato (em estado de posse de filho),
abordando também os principais julgados sobre o assunto, buscando compreender os
entendimentos jurisprudenciais e doutrinários. Deseja-se apresentar uma reflexão acerca dessa
realidade atual, onde há diversas novas formações familiares, pautadas principalmente pelo
laço de afeto.

Artigo

OS EFEITOS SUCESSÓRIOS DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA DE FATO NO ATUAL CENÁRIO JURÍDICO BRASILEIRO

                                                                                                         Angélica de Gouveia.

RESUMO

O presente artigo foi baseado na necessidade de abordar a questão do direito à sucessão do filho socioafetivo na relação de parentalidade socioafetiva. Para isso foi realizada uma pesquisa bibliográfica a fim de embasar as ideias relacionadas ao tema, através do método dedutivo, comparando os entendimentos já existentes. Busca-se com essa pesquisa demonstrar a importância do direito pertinente aos filhos socioafetivos de fato (em estado de posse de filho), abordando também os principais julgados sobre o assunto, buscando compreender os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários. Deseja-se apresentar uma reflexão acerca dessa realidade atual, onde há diversas novas formações familiares, pautadas principalmente pelo laço de afeto.

Palavras-chave: filho socioafetivo, parentalidade socioafetiva, formações familiares, filiação, sucessão.

Sumário – Introdução. 1. Fundamentação Teórica. 1.1. Relato Histórico. 1.2. Da Filiação. 1.3. Da Parentalidade socioafetiva. 1.4. Da Natureza Jurídica. 1.5. Dos Princípios Norteadores. 1.6. Os Pressupostos Processuais para o reconhecimento da Filiação socioafetiva. 1.7. Efeitos Sucessórios na Parentalidade Socioafetiva. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO:

O surgimento de novos arranjos familiares promoveu um redimensionamento do conceito de Família e contribuiu para novas percepções de Parentesco.

O Código civil de 1916, vigente no século passado, regulava a Família como Matrimonializada, Patriarcal, Hierarquizada e se preocupava apenas com as questões patrimoniais, não havia a preocupação de hoje com o afeto nas relações familiares. Com a promulgação da constituição federal de 1988, houve a inserção de diversos princípios norteadores que asseguram as mudanças da atualidade e os direitos pertinentes às novas relações parentais. (CORREIA, 2017, [Internet]).

No passado, o instituto da Família era limitado apenas a questões genéticas e biológicas, decorrentes do casamento. Entretanto, nos dias atuais, essa definição mudou completamente, pois a entidade familiar passou a ser considerada sobre as mais variadas formas e padrões, inclusive, passou a ter um fator primordial, a presença do vínculo de afeto.

A parentalidade socioafetiva é uma relação filiativa que parte do pressuposto afetivo, é uma nova modalidade de parentesco, norteada pelos princípios da afetividade, dignidade da pessoa humana, melhor interesse da criança, dentre outros. Caracteriza-se quando pessoas que não possuem vínculo biológico passam a ter um vínculo de afeto, inclusive perante a sociedade, o que a torna uma parentalidade de fato, ou seja, não há necessidade obrigatória de registro. (CASTRO, 2017, [Internet]).

A filiação gera diversos direitos e deveres, dentre eles o direito à sucessão, contudo, esse direito nem sempre vem sendo assegurado aos filhos socioafetivos em decorrência da existência de diversos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários.

A Constituição Federal de 1988, prevê em seu artigo 227, parágrafo 6º, que não poderá haver nenhum tipo de distinção ou discriminação entre os filhos. Porém, em relação à sucessão dos filhos socioafetivos, esse entendimento não é totalmente pacificado pela doutrina e jurisprudência, sendo este assunto motivo de grandes discussões no ordenamento jurídico, tendo em vista que quando observado o interesse apenas material, o reconhecimento da filiação socioafetiva é negado, pois é necessário que o filho esteja dentro dos requisitos para a configuração da parentalidade socioafetiva, quais sejam o Trato – quando a pessoa é tratada como se filho fosse perante a família e a terceiros; o Nome – Quando o filho afetivo usa o sobrenome da família e Fama – Quando há o reconhecimento da filiação socioafetiva pela sociedade. Quanto ao nome não é um item completamente obrigatório, tendo em vista a posse de estado de filho, não o registro de adoção. (BASTOS E BONELLI, 2016, [Internet])

Para contextualizar melhor o assunto, descrevo abaixo alguns julgados:

No Julgamento realizado pelo TJDF em 16/09/2015, os apelantes que propuseram apelação civil no âmbito de direito de família, tinham como objetivo que o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva e, por consequência a legalidade da partilha de bens, fossem considerados improcedentes, contudo, a caracterização dos pressupostos para a filiação Socioafetiva, ou seja, o vínculo afetivo e o tratamento mútuo como pai e filho publicamente reconhecido por livre e espontânea vontade de ambos, foram fundamentais para que os direitos patrimoniais do filho fossem assegurados em juízo, no qual permaneceu o entendimento firmado na sentença quanto à declaração do vínculo paterno-filial, resguardando-se os direitos sucessórios decorrentes deste estado de filiação, e respectiva anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha anteriormente lavrada. Recursos conhecidos e não providos. Sentença mantida integralmente. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF – Apelação Cível: APC 20110210037040. Órgão Julgador: 1ª Turma Cível. Julgamento: 16/09/2015. Publicação: 06/10/2015. Relator: Rômulo de Araújo Mendes.)

Já no Julgado do TJRS realizado em 13/09/2006, sobre investigação de paternidade socioafetiva cumulada com petição de herança e anulação de partilha, não obteve êxito, foi negado o provimento do recurso, tendo em vista a ausência da tríade Nome, Trato e Fama, havendo apenas a intenção de obter vantagem patrimonial. Com isso, observa-se a importância da comprovação da existência de um real vínculo de afeto existente entre ambas as partes. (Apelação Cível Nº 70016362469, Sétima Câmara Cível, Tribunal de justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 13/9/2006).

A desigualdade entre os filhos biológicos e adotivos foi afastada pelos seguintes dispositivos: Estatuto da Criança e do Adolescente (Art. 20) e Código Civil de 2002 (Arts. 1593 e 1596), dando margem à mesma interpretação em relação aos filhos socioafetivos de fato, quando usada a expressão filhos de “outra origem”.

A grande questão norteadora deste artigo é a análise do direito sucessório do filho socioafetivo de fato, se realmente há legitimidade do mesmo para pleitear em juízo.

Logo, o presente artigo tem por objetivo geral o intuito de analisar o direito à sucessão do filho socioafetivo de fato, ou seja, aquele que não possui registro em cartório, apenas a demonstração perante a sociedade da relação filiativa de afeto.

Como objetivos específicos pretende-se demonstrar um breve relato histórico sobre o tema, a natureza jurídica e a importância da afetividade nas relações atuais; abordar os princípios que norteiam esse direito, bem como os pressupostos para o reconhecimento da filiação socioafetiva e consequentemente os direitos e deveres inerentes a essa relação, inclusive o direito à herança; construir uma análise crítica do tema, com o intuito de elucidar a posição dos filhos socioafetivos no momento da abertura da sucessão e o entendimento dos tribunais e juristas de Direito em relação a sua legitimidade.

Atualmente, os filhos Socioafetivos, aqueles em estado de posse de filho, vêm buscando perante os tribunais o reconhecimento da filiação para efeitos sucessórios, já que não são contemplados pela lei. Ocorre que há falta de normas aplicáveis em relação ao caso concreto do direito à sucessão da filiação socioafetiva de fato.

Este assunto é bastante polêmico no contexto social atual, devido às mudanças sociais do século XX e a formação de diversos núcleos familiares e novas concepções de parentesco, onde, atualmente, o afeto é o ponto principal dessas relações. Gera muitas discussões, inclusive não há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais pacificados quanto à sucessão hereditária, apenas em relação ao reconhecimento da filiação socioafetiva.

A relevância desta pesquisa encontra-se nos seguintes princípios:

Tendo em vista a importância de um pai presente na vida de uma criança, independente se biológico ou não, pois como dito popularmente “pai é quem cria” e o afeto é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, sendo por isso é assegurado o Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (Art. 227, Caput da CF, ART 4º Caput e 5º do ECA).

Já na Constituição Federal de 1988 foi extinta toda e qualquer discriminação entre os filhos, portanto os filhos em estado de posse de filho (filiação socioafetiva de fato) têm tanto direito quanto os biológicos e adotivos aos direitos pessoais e patrimoniais decorrentes da filiação, conforme o Princípio da igualdade absoluta entre os filhos (Art. 227, parágrafo 6º da CF).

Todo e qualquer ser humano possui direitos morais e materiais. Portanto, um filho jamais será excluído ou deixará de possuir direito ao seu reconhecimento como filho e de seus direitos em relação à filiação comprovada, haja vista a garantia de sua dignidade, assegurada pelo Princípio da Dignidade da pessoa Humana (Art. 1º, III da CF).

Ao final deste trabalho, será possivelmente verificado que o filho socioafetivo de fato terá direito à sucessão, mesmo sem a manifestação expressa do pai ou mãe afetivos, tendo em vista a publicidade da relação filiativa de fato, onde exista o vínculo de afeto e o tratamento perante terceiros como se filho fosse.

Supõe-se chegar à conclusão de que uma vez provada a filiação socioafetiva de fato, os filhos socioafetivos deverão ter os mesmos direitos e deveres dos biológicos e/ou registrados em cartório, em razão da igualdade prevista em nossa Constituição.

A metodologia aplicada na elaboração do projeto de pesquisa consistiu em buscar através de estudos científicos o entendimento e a aplicação ou não, na prática sobre o tema abordado. Quanto aos objetivos, foi feita uma pesquisa descritiva retratando as características do objeto de estudo e expondo fatos e interpretações em relação ao problema em questão.

O método da pesquisa foi o dedutivo, com o intuito de comparar os entendimentos já existentes sobre o direito de herança aos filhos e tratar de forma específica sobre a questão do estado de posse de filho quanto aos direitos sucessórios.

Por fim, o procedimento a ser utilizado foi o da pesquisa bibliográfica, realizado através de fontes como livros, artigos, textos de caráter científico já publicados etc. Tem o objetivo de buscar a comparação de vários entendimentos sobre o assunto, para com os resultados construir a conclusão e o resultado final do estudo.

1.            FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Inicialmente será narrado um breve relato histórico para demonstrar a evolução dos núcleos familiares do século XX até os dias atuais, conforme o item abaixo descrito.

  • RELATO HISTÓRICO

 

 

No século XX, foram implementadas pelo Direito Romano normas bastante rígidas, onde a família tornou-se uma instituição patriarcal. Esse modelo de família era caracterizado pelo pátrio poder, ou seja, o pai era o centro da família, o chefe de todos. Não havia divisão de responsabilidades com a mãe, pois a mulher era inferiorizada pelo homem, somente obedecia a ordens passadas pelo chefe do lar.

A sociedade romana nesse período era completamente machista, os poderes do Pater eram transferidos ao filho homem primogênito e, na ausência deste, poderia ser passado a qualquer membro da família, desde que fosse do sexo masculino.

Silvio Meira, apud Christiano Cassetari (2017, p. 5 e 6), ensina que o parentesco romano, para efeitos civis, não se baseava nos laços de sangue, mas no poder (potestas). Seriam parentes as pessoas que estivessem sob o poder do mesmo Pater, ligadas pelo parentesco masculino. Essas pessoas eram chamadas agnadas e o parentesco daí resultante denominava-se agnatio. O Pater e seus descendentes eram agnados entre si.

Já o parentesco pelo sangue, com relação à família materna ou paterna, chamava-se cognatio e não produzia efeitos civis. Era um parentesco natural. Essa a diferença profunda entre o parentesco romano antigo e o moderno. O direito pretoriano, os senatus consultos e as constituições imperiais abrandam esses conceitos rígidos.

José Carlos Moreira apud Christiano Cassetari (2017, p.6) aponta três categorias de filhos que havia no direito romano. As duas primeiras existem no direito pós-clássico:

  1. Os iusti (ou legitimi), isto é, os procriados em iustae nuptiae, os adotivos e, no direito pós-clássico, os legitimados. São filhos que seguem a condição do pai, e há relações que independem da pátria potestas entre eles e seus pais. Pais e filhos que são ligados pelo parentesco consanguíneo (cognatio) têm entre si direitos e deveres.
  2. Os uulgoquaesiti (também denominados uulgoconcepti ou spurii) são os filhos gerados de união ilegítima, e por esse motivo não possuíam, juridicamente, um pai. Não há no Direito Romano a possibilidade de o pai natural reconhecê-los ou legitimá-los, e, por esse motivo, não há direitos ou deveres entre eles. Já com relação à mãe, de quem eles seguem a condição, possuem os mesmos direitos dos filhos legítimos.
  3. Os naturalesliberi, no direito pós-clássico são os filhos nascidos de concubinato. Além de, pela legitimatio (legitimação), poderem tornar-se filhos legítimos, estavam sujeitos a regime especial. Entre pai e naturalesliberi há, reciprocamente, direitos a alimentos, e o direito restrito de sucessão ab intestato, isso além da capacidade, de ambos, de dar ou receber, um do outro, liberalidade inter vivos ou mortis causa sofrer restrições.

Completa Fernando Campos Scaff apud Christiano Cassetari (2017, p.7), ensinando-nos:

“Sob a égide de tal potestas, cabia ao pai – e não aos pais, note-se – resolver quais bens deveriam ser atribuídos a cada um dos seus filhos, que educação e profissão deveriam ter, com quem iriam se casar. Chegava-se enfim até o extremo de se permitir, no universo desse poder, a tomada de decisões acerca da vida e da morte dos descendentes.”

Durante muito tempo, nas questões de filiação no direito de família, os filhos eram alvo de discriminação, destacando-se principalmente a desigualdade entre os filhos perante a sociedade.

De acordo com Maria Berenice Dias (2007):

A necessidade de preservação do núcleo familiar – leia-se, preservação do patrimônio da família – autorizava que os filhos fossem catalogados de forma absolutamente cruel, fazendo uso de uma terminologia plena de discriminação, os filhos se classificavam em legítimos, legitimados e ilegítimos. (DIAS, 2007, p. 318).

No Código Civil de 1916, filho legítimo era aquele oriundo do casamento civil, já o filho ilegítimo era derivado de uma relação extraconjugal. “Legítimo era o filho biológico, nascido de pais unidos pelo matrimônio; os demais seriam ilegítimos.” (LOBO, 2004, P. 48).

Os filhos legítimos eram resguardados pela presunção pater is est quem nuptiae demonstrant. Tal presunção aduz que os filhos nascidos na constância do casamento têm por pai o marido de sua mãe.

Vejamos:

A maternidade do filho gerado por meio de relação sexual entre marido e mulher era certa, de vez que ela se manifesta por sinais físicos inequívocos. A paternidade era incerta e a presunção se atribuía diante do fundamento da fidelidade conjugal por parte da mulher. (ZENI, 2009, p. 63).

Devido a essas questões, torna-se cada vez mais difícil conceituar o instituto da família, tendo em vista os acontecimentos históricos advindos do Direito Romano. Por sua vez, gerou desdobramentos no direito brasileiro e, com o passar do tempo, percebeu-se a necessidade do ordenamento jurídico analisar as situações atuais e os anseios da sociedade para chegar a um denominador comum sobre as relações familiares e a inserção de previsões legais específicas por parte do legislador, conforme o cenário atual brasileiro, tendo em vista os diversos arranjos familiares existentes.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ocorreram mudanças relevantes no direito de família, pois o legislador passa a priorizar as relações familiares baseadas no afeto (princípio da afetividade). Neste sentido, Renata Nepomuceno e Cysne (2008, p.200) enfatiza que:

A constituição de 1988 trouxe, para o foco das preocupações, a proteção da pessoa humana, abandonando a prioridade antes dedicada ao patrimônio, e assim, a família deixou de ser baseada unicamente no casamento, e como consequência [sic], a filiação adquiriu novas perspectivas.

A Constituição de 1988 aboliu completamente a discriminação entre todas as espécies de filiação, independentemente de sua origem, conforme disposição do artigo 227, parágrafo 6º do referido diploma: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

Porém, o Código Civil de 2002 não recepcionou totalmente o disposto na Constituição, no que tange ao Direito de Família, tendo em vista que não tratou da posse de estado de filho como um meio fundamental de prova para a configuração de um laço de filiação.

Nos artigos do Código Civil de 2002 não há previsão legal expressa em relação aos filhos socioafetivos, mas a expressão “filhos de outra origem” disposta no artigo 1.593 do referido Código, dá margem interpretativa em favor da relação socioafetiva.

Abaixo falaremos de forma mais específica sobre a filiação como forma de parentesco, é uma relação traduzida pela ligação entre pais e filhos, decorrente não só do vínculo consanguíneo, como também de outra origem.

  • DA FILIAÇÃO

Paulo Lôbo (2011, p. 216) explica filiação como um conceito relacional:

[…] é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. Quando a relação é considerada em face do pai, chama-se paternidade, quando em face da mãe, maternidade. Filiação procede do latim filiatio, que significa procedência, laço de parentesco dos filhos com os pais, dependência, enlace. (LÔBO, 2011, p. 216).

Já Heloisa Helena Barboza apud Maria Berenice Dias, diz que “A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os três pilares constitucionais fixados: a plena igualdade entre os filhos, a desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina de proteção integral.” (DIAS, 2013, p. 364).

A filiação pode então ser entendida como uma relação de parentesco que se estabelece entre pais e filhos. Essa relação pode ser decorrente de vínculo consanguíneo ou de outra origem (adoção, inseminação artificial heteróloga ou as filiações socioafetivas), conforme artigo 1.593 do Código Civil de 2002.

No próximo item será tratado de maneira peculiar o instituto da parentalidade socioafetiva, para melhor compreensão do estado de posse de filho, tema abordado no presente artigo.

  • DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Para que se possa compreender melhor a filiação socioafetiva, se faz necessário conceituar a posse de estado de filho.

De acordo com José Bernardo Ramos Boeira:

A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. (BOEIRA, 1999, p.60).

A filiação socioafetiva se consagrou através do princípio da afetividade, que foi reconhecido constitucionalmente como direito fundamental pela constituição Federal de 1988, modificando as relações familiares e trazendo novos modelos de paternidade, como a paternidade socioafetiva, onde o afeto é o ponto principal da relação.

Euclides de Oliveira apud Christiano Cassetari aponta a importância do afeto nos relacionamentos familiares:

Típica manifestação do afeto, a aproximação física e espiritual das pessoas constitui o primeiro passo na escalada do relacionamento familiar humano. Da mútua apresentação ao conhecimento desejado dá-se o approach natural, às vezes manso, suave, outras tantas num arroubo sem medida, misto de incontrolável paixão ou de desenfreada amostra de luxúria. (CASSETARI, 2017, p. 12).

Através do conceito de afetividade, é possível observar a ligação com a ideia de parentesco.

O artigo 1.593 do Código Civil de 2002, dispõe que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

Carlos Roberto Gonçalves apud Christiano Cassetari explica que, no dispositivo em apreço, a doutrina tem, efetivamente, identificado elementos para que a jurisprudência possa interpretá-lo de forma mais ampla, abrangendo, também, as relações de parentesco socioafetivo. (CASSETARI, 2017, p. 14).

O Enunciado 256 do CJF, dispõe que a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.

Nota-se, então, que o parentesco biológico não é a única forma admitida em nosso ordenamento jurídico.

Belmiro Pedro Welter apud Christiano Cassetari, ao discorrer acerca do tema, ensina:

Filiação afetiva pode também ocorrer naqueles casos em que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, (des)velando-lhe todo o cuidado, amor, ternura, enfim, uma família, “cuja mola mestra é o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto.” (CASSETARI, 2017, p.15).

Já Luiz Edson Fachin apud Christiano Cassetari, em linguagem poética e precisa sobre o tema, com muita propriedade e sensibilidade, afirma que:

A verdade socioafetiva pode até nascer de indícios, mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento. Revela o pai que ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no ambiente social, o pai que ao dar de comer expõe o foro íntimo da paternidade proclamada visceralmente em todos os momentos, inclusive naqueles em que toma conta do boletim e da lição de casa. É o pai de emoções e sentimentos, e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos. Outro pai, nova família. (CASSETARI, 2017, p. 15).

Christiano Cassetari (2017, p.17), com base em tudo o que foi visto anteriormente, entende que:

A parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas. (CASSETARI, 2017, p.17).

Nas palavras de Jacqueline Filgueiras Nogueira (2001, p. 84 e 85):

O verdadeiro sentido nas relações pai-mãe-filho transcende a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são mais sólidos e mais profundos, são “invisíveis” aos olhos científicos, mas, são visíveis para aqueles que não têm os olhos limitados, que podem enxergar os verdadeiros laços que fazem de alguém um “pai”. Os laços afetivos, de tal forma que os verdadeiros pais são os que amam e dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e de dispor a dá-lo. Pois, onde a criança busca carinho, atenção e conforto, sendo estes para os sentidos dela o seu ‘porto seguro’. […] (NOGUEIRA, 2001, p.84 e 85).

         A análise dos elementos fundamentais do instituto da parentalidade socioafetiva é essencial para o entendimento do mesmo, portanto no item a seguir será abordada a natureza jurídica dessa espécie de filiação, que por sua vez parte do pressuposto afetivo.

  • DA NATUREZA JURÍDICA

A natureza jurídica da parentalidade socioafetiva, nada mais é que o vínculo afetivo, onde o afeto é o elemento crucial da relação.

Pereira define a “Paternidade socioafetiva” como aquela que se funda na construção e aprofundamento dos vínculos afetivos entre o pai e o filho, entendendo-se que a real legitimação dessa relação se dá não pelo biológico, nem pelo jurídico. Dá-se pelo amor vivido e construído por pais e filhos. (PEREIRA, 2006, p. 413).

Além da importância em conhecer e entender a natureza jurídica dessa espécie de filiação, faz-se necessário um aprofundamento maior sobre o assunto. Desse modo, o próximo tópico terá enfoque nos princípios norteadores prevalecentes nessa relação.

  • DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES

O primeiro princípio faz parte das garantias básicas do ser humano, principalmente nas relações filiativas, onde envolve afeto, convivência familiar alicerçada no amor e no respeito recíproco, merecedora de total proteção do Estado, principalmente por ser uma garantia e um direito constitucional.

 

 

  1. Princípio da dignidade da pessoa humana: Previsto no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88

 

Maria Berenice Dias destaca que:

Nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no Inc. III do art. 1º, consagra em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana. (DIAS, 2009, p. 32).

Logo abaixo, observa-se a importância da garantia da proteção da criança e do adolescente nas relações familiares para o seu desenvolvimento psicomotor.

  1. Princípio da proteção da criança e do adolescente: Previsto no artigo 227, caput da CF e artigo 3º da lei 8.069/90 (ECA)

 

Maricruz Gómez De la Torre Vargas apud Christiano Cassetari(2017) cita trecho de um estudo de desenvolvimento infantil da UNICEF, denominado “Documento de Trabajo nº 04 sobre Infância”, realizado no Chile em maio de 2004, em que se verifica que um pai emocionalmente próximo e disponível é um fator protetor e promotor da autoestima e autoconfiança para as crianças, e com isso favorece o seu desenvolvimento psicomotor. Sua inserção em mundos extrafamiliares representa uma figura de apego e modelo de comportamento. (CASSETARI, 2017, p. 16).

O próximo item trata do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que prevê sempre o que for melhor para o menor dentro de uma relação filiativa, sempre preservando a sua dignidade e o seu direito de personalidade.

  1. Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente: Previsto no artigo 227, caput da CF e artigo 4º, caput e 5º do ECA

Na IV Jornada de Direito Civil, de 2006, foram aprovados enunciados relevantes ao tema.

Destaca-se o enunciado de número 339 que prevê que: “A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho.”

Maria Helena Diniz faz a seguinte observação:

O importante, para o filho, é a comunhão material e espiritual; o respeito aos seus direitos da personalidade e à sua dignidade como ser humano, o afeto; a solidariedade; e a convivência familiar, para que possa atingir seu pleno desenvolvimento físico e psíquico, sua segurança emocional e sua realização pessoal. (DINIZ, 2009, p. 515).

         Abaixo citamos um princípio constitucional totalmente voltado para a igualdade de todos os filhos, independentemente de sua origem, com intenção de assegurar a todos eles seus direitos sem qualquer tipo de discriminação em relação à filiação.

  1. Princípio da igualdade absoluta entre os filhos: Previsto no artigo 227, §6º da CRFB/88

Por mais que a filiação não mantenha ligação com o vínculo biológico, todos os filhos gozarão de proteção integral e terão os mesmos direitos e qualificações, independentemente de sua origem, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, conforme disposto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 227, §6º.

         O Princípio da afetividade que veremos a seguir, é o princípio determinante para que seja assegurado o reconhecimento da parentalidade socioafetiva de fato, ou seja, o estado de posse de filho e seus efeitos.

  1. Princípio da Afetividade: Previsto no artigo 226, § 4º e 227, caput, §5º c/c §6º da CRFB/88

O princípio da afetividade norteia o instituto da família, colocando o afeto como elemento essencial para a base familiar.

A relevância em questão não é a mera filiação, mas os sentimentos e a relação que decorrem dela, é deste modo que a afetividade se tornou o princípio básico que constitui a família.

Neste sentido a jurisprudência:

DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INTERESSE PROCESSUAL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO AFASTADA. Se a pretensão inicial é a do reconhecimento da paternidade socioafetiva, é evidente o interesse processual.” O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem “(art. 1.593CC). Em que pese não haver dispositivo a reconhecer a filiação socioafetiva, é inegável o seu acolhimento baseado na posse do estado de filho, já admitida na doutrina e na jurisprudência, e que é, sem dúvida, um dos pilares da constitucionalização do direito de família, na medida em que alcança novas relações familiares com fundamento no afeto e no rompimento do vínculo biológico. Pedido juridicamente impossível é aquele que a lei, mesmo em tese, não prevê, como o divórcio de pessoa solteira; ou o inventário de pessoa viva. (TJ-MG, Relator: Wander Marotta, Data de Julgamento: 28/01/2014, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL).

 

         A seguir veremos alguns julgados, doutrinas e disposições do Código Civil de 2002 sobre os pressupostos processuais pertinentes à filiação socioafetiva, elementos fundamentais que embasam o direito arguido nos tribunais.

1.6      OS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS PARA O RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

 

 

Segundo Christiano Cassetari, o primeiro requisito para a configuração da parentalidade socioafetiva é o laço de afetividade (CASSETARI, 2017, p. 31).

Os laços de afetividade devem ser considerados indispensáveis para a caracterização da parentalidade socioafetiva, no entendimento do TJ-MG:

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PEDIDO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO E DE EXTINÇÃO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. PATERNIDADE RECONHECIDA EM AÇÃO ANTERIOR DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. PATERNIDADE AFASTADA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. NÃO COMPROVAÇÃO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. RECURSO PROVIDO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Embora a paternidade que se pretende desconstituir tenha sido reconhecida e homologada em ação de investigação de paternidade anterior, in casu, impõe-se a relativização da coisa julgada, considerando que àquela época não se realizou o exame de DNA, o que somente veio a ser feito nestes autos, anos depois, concluindo-se pela inexistência de vínculo biológico entre o apelante e o apelado. Na situação específica destes autos, não se pode concluir pela existência da paternidade afetiva, já que não comprovada  a existência de laços emocionais e afetivos entre o apelante e o apelado (TJMG; APCV 0317690-67.2008.8.13.0319; Itabirito; Sétima Câmara Cível; Rel. Des. André Leite Praça; j. 22.3.2011; DJEMG 08.04.2011.

Diante da decisão tomada no julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nota-se que a parentalidade socioafetiva não foi reconhecida justamente pela falta de laços de afeto. Por isso, percebe-se a importância de tal comprovação para garantir o reconhecimento.

Por conta disso, outro elemento indispensável é o tempo de convivência. A convivência é o que faz nascer o carinho, o afeto e a cumplicidade nas relações humanas, motivo pelo qual há que se ter a prova de que o afeto existe com algum tempo de convivência. (CASSETARI, 2017, p. 33).

Vejamos o que pensam os nossos tribunais:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. JUSTIÇA GRATUITA DEFERIDA. DESCONSTITUIÇÃO DA FILIAÇÃO PELA NULIDADE DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO E CONSCIENTE DA PATERNIDADE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO INEXISTENTE. REALIZAÇÃO DE TESTE DE PATERNIDADE POR ANÁLISE DE DNA. EXCLUSÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. IRRELEVÂNCIA. EXISTÊNCIA DE SÓLIDO VÍNCULO AFETIVO POR MAIS DE 23 ANOS. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA. DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE VEDADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. É irrevogável e irretratável a paternidade espontaneamente reconhecida por aquele que tinha plena consciência de que poderia não ser  o pai biológico da criança, mormente quando não comprova, estreme de dúvidas, vício de consentimento capaz de macular a vontade no momento da lavratura do assento de nascimento. A filiação socioafetiva, fundada na posse do estado de filho e consolidada no afeto e na convivência familiar, prevalece sobre a verdade biológica (TJSC; AC 2011.005050-4; Lages; Rel. Des. Fernando Carioni; j. 26.04.2011; DJSC 10.05.2011; P. 433).

Segundo José Bernardo Ramos Boeira apud Christiano Cassetari, a posse do estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação diante de terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. (CASSETARI, 2017, p.37).

Por mais que não tenha previsão expressa em nosso ordenamento jurídico, pode ser considerada como uma condição para a parentalidade socioafetiva, tendo em vista o artigo 1.605, II, do Código Civil de 2002, que dispõe que “Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito, quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”.

Finalmente entraremos no ponto principal do tema deste artigo, que são os efeitos sucessórios na parentalidade socioafetiva de fato, tendo em vista a igualdade absoluta entre os filhos assegurada pela Constituição Federal. Portando, todos os efeitos pessoais e patrimoniais devem ser garantidos também ao filho em estado de posse de filho.

1.7      EFEITOS SUCESSÓRIOS NA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Ao estudar sobre os direitos sucessórios da filiação socioafetiva de fato, devem ser analisados alguns posicionamentos pertinentes ao tema, conforme abaixo:

Segundo Rizzardo:

No mundo nada é eterno, duradouro ou definitivo. É o homem perseguido pelo estigma de sua finitude, que o acompanha em sua consciência e limita os anseios no futuro. Porém de algum modo a sucessão dá a pessoa uma sensação de eternidade, pois as obras realizadas que refletem o ser, ficarão sempre vivas nas memórias da sua prole (RIZZARDO, 2006, p.1).

O enunciado de n.º 6 do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) dispõe que: “Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”.

Já o enunciado de n.º 519 do CJF (Conselho da Justiça Federal) – Art. 1.593 do Código Civil de 2002 dispõe que: “O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais”.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já proferiu decisão no sentido de reconhecer o direito sucessório decorrente da parentalidade socioafetiva, vejamos:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE MATERNIDADE, CUMULADA COM RETIFICAÇÃO DE REGISTRO E DECLARAÇÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS – IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – ART. 267, INC. VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. Dá-se a impossibilidade jurídica do pedido, quando o ordenamento jurídico abstratamente vedar a tutela jurisdicional pretendida, tanto em relação ao pedido mediato quanto à causa de pedir. Direito Civil – apelação – maternidade afetiva – atos inequívocos de reconhecimento mútuo – testamento – depoimento de outros filhos – parentesco reconhecido – recurso desprovido. A partir do momento em que se admite no Direito pátrio a figura do parentesco socioafetivo, não há como negar, no caso em exame, que a relação ocorrida durante quase dezenove anos entre a autora e a alegada mãe afetiva se revestiu de contornos nítidos de parentesco, maior, mesmo, do que o sanguíneo, o que se confirma pelo conteúdo dos depoimentos dos filhos da alegada mãe afetiva, e do testamento público que esta lavrou, três anos antes de sua morte, reconhecendo a autora como sua filha adotiva (TJMG; Ap. Cível 1.0024.03.186.459-8/001-4ª C.C; Rel.Des. Moreira Diniz; publicado em 23.3.2007).

Ensina Euclides de Oliveira apud Christiano Cassetari:

Como pano de fundo do estudo do direito sucessório aloca-se a principiologia constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988), de obrigatória observância pelo sistema normativo. Nesse contexto, a atribuição de bens da herança aos sucessores deve ser pautada de acordo com esse critério de valorização do ser humano, de modo que o patrimônio outorgado lhe transmita uma existência mais justa e digna dentro do contexto social. (CASSETARI, 2017, p.137).

Sendo assim, em razão dos argumentos apresentados nos julgados e posições doutrinárias, observando a aplicação dos direitos fundamentais nas relações familiares, podemos concluir que as normas previstas no direito sucessório podem ser perfeitamente aplicadas na parentalidade socioafetiva, equiparando os filhos biológicos e afetivos aos mesmos direitos de herança.

Vejamos um Julgado de reconhecimento Post Mortem:

O julgado em apreço trata-se de ação declaratória para o reconhecimento de vínculo de parentesco Post Mortem. Filiação socioafetiva. Possibilidade fundamentada no artigo 1.593 do Código Civil. Reexame de matéria fático-probatória em face da decisão que negou seguimento a recurso especial, interposto com fundamento no art. 105III, a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul. A filiação socioafetiva não se encontra lastreada no fator biológico/genético, mas em ato de vontade, que se constrói a partir de um respeito recíproco de tratamento afetivo paterno-filial, revelada pela convivência estreita e duradoura, que, no plano jurídico, recupera a noção de posse do estado de filho, há muito esquecida no limbo do Direito. O artigo 1.593, do Código Civil, ao prever a formação do estado filiativo advindo de outras espécies de parentesco civil que não necessariamente a consanguínea, permite a interpretação do alcance da expressão “outra origem” como sendo adoção, a filiação proveniente das técnicas de reprodução assistida, bem como a filiação socioafetiva, fundada na posse de estado de filho (e-STJ fl. 502). Nas razões do Especial, as partes agravantes sustentam, além da divergência jurisprudencial, violação do parágrafo 6º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, alegando, em suma, que “é importante ressaltar que o dispositivo declara expressamente no sentido de que, para se efetuar a adoção póstuma, é necessário que haja, no curso do procedimento, a inequívoca manifestação de vontade do candidato à adoção ou adotante” (e-STJ fl. 543). Foram apresentadas contrarrazões (e-STJ fls. 572-586). Foi negado seguimento ao recurso especial, tendo em vista o tratamento afetivo materno-filial ante a existência de relação afetiva duradoura, de tratamento afetivo materno-filial frente a terceiros, existentes entre a Embargante e a de cujus. A inexistência de vínculo afetivo entre a investigante e o investigado não afastam o direito indisponível e imprescritível de reconhecimento da paternidade biológica (Lei 8.069/90, art. 27). Assim, a pretensão recursal não merece ser acolhida. Brasília (DF), 15 de junho de 2015. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Relator.

         Em vista disso, fica evidenciada a garantia do direito ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva de fato, produzindo todos os seus efeitos legais, pessoais e patrimoniais, tendo em vista julgados favoráveis, doutrinas que positivam o direito e dispositivos que dão margem a essa interpretação, como o artigo 227, parágrafo 6º da CFRB/88 e o artigo 1.593 do Código Civil de 2002, além de todas as posições doutrinárias favoráveis e enunciados que reafirmam o direito, conforme foi demonstrado ao longo deste artigo, inclusive o provimento n.º 63 do CNJ, que passou a vigorar no dia 14 de novembro de 2017, assegurando em seu artigo 10 o reconhecimento voluntário e a averbação da parentalidade socioafetiva em cartório, no Registro Civil de Pessoas Naturais, possibilitando o registro extrajudicialmente, sem a necessidade de ingressar com o pedido pela via judicial para todos os efeitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho possibilitou o estudo sobre o Direito Sucessório do Filho Socioafetivo de fato, quando reconhecida a parentalidade socioafetiva. Devido a relevância do assunto, o legislador deveria observar a necessidade da inclusão dos filhos socioafetivos nas normas reguladoras de Direito, pois apenas são amparados os filhos expressamente declarados em registro.

Mas, a partir do momento em que a jurisprudência reconhece a filiação socioafetiva, todos os direitos e deveres pertinentes a esta deveriam ser assegurados, mas infelizmente quando se fala em Sucessão Hereditária os recursos são negados, pois fica caracterizado interesse apenas patrimonial.

O ser humano possui direitos existenciais e patrimoniais, portanto, ambos os direitos devem ser analisados quando houver o interesse de um filho na habilitação para receber a herança.

Para se atingir uma compreensão dessa realidade, definiram-se alguns objetivos, como a abordagem dos princípios que norteiam esse direito, quais sejam , o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da proteção da criança e do adolescente, princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio da igualdade absoluta entre os filhos e princípio da afetividade, além dos pressupostos para o reconhecimento da filiação socioafetiva de fato, que são o trato, o nome e a fama, além do afeto comprovado.

Este assunto é bastante polêmico no contexto social atual, devido a formação de diversos núcleos familiares e novas concepções de parentesco, onde o afeto se destaca nessas relações.

A Constituição de 1988 aboliu totalmente a discriminação entre todas as espécies de filiação, independentemente de sua origem, conforme descrito também no Código Civil.

A importância da questão em apreço não é a mera filiação, mas sim os sentimentos e a relação que dela decorrem, devido a isso a afetividade se tornou o princípio básico da constituição da família.

Sendo assim, em razão dos argumentos apresentados nos julgados e posições doutrinárias, observando a aplicação dos direitos fundamentais nas relações familiares, podemos concluir que as normas previstas no direito sucessório podem ser perfeitamente aplicadas na parentalidade socioafetiva de fato, equiparando os filhos biológicos e afetivos aos mesmos direitos de sucessão.

REFERÊNCIAS

BASTOS, Diana Santos; Bonelli, Rita Simões. Filiação Socioafetiva e o Direito de Sucessão. Disponível em: <https://bastosesodre.jusbrasil.com.br/artigos/359784302/filiacao-socioafetiva-e-o-direito-de-sucessao>Acesso em: 19 de Maio de 2018

BMIKOSSISKI, Adriana Claudia. Filiação Socioafetiva e seus reflexos. 2017.54f.Monografia – Curso de Direito, Universidade Tuiuti do Paraná, Paraná, 2017.

CORREIA, Luana Alves. Efeitos Sucessórios da paternidade socioafetiva. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVIII, n. 143, dez 2015. Disponível em: <http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16645> Acesso em 10 de março de 2018.

BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação da paternidade – posse de estado de filho – paternidade socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 60.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/l10406.htm. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 13 de Junho de 2018.

BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 339 da IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/369>. Acesso em 13 de março de 2018.

BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 519 da V Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/588>. Acesso em 13 de Junho de 2018.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 63. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3380>. Acesso em 29 de novembro de 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 13 de Junho de 2018.

 

BRASIL. Instituto Brasileiro de Direito de Família. Enunciado nº 6. Disponível em:

<http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam>. Acesso em 13 de Junho de 2018.

BRASIL. STJ. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL: AREsp 660156 MT 2015/0034930-8. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Dj: 17/06/2015.JusBrasil, 2015. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/199612338/agravo-em-recurso-especial-aresp-660156-mt-2015-0034930-8>. Acesso em: 19 de maio de 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF – Apelação Cível: APC 20110210037040. Órgão Julgador: 1ª Turma Cível. Julgamento: 16/09/2015. Publicação: 06/10/2015. Relator: Rômulo de Araújo Mendes. Disponível em: <https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/240324998/apelacao-civel-apc-20110210037040> Acesso em: 20 de maio de 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS – Apelação Cível: APC 70016362469. Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível. Julgamento: 13/09/2006. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Disponível em: <https://tj-se.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4871616/apelacao-civel-ac-2007206103-se/inteiro-teor-1…> Acesso em: 20 de maio de 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG – Apelação Cível: APC 10433130275921001 Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível. Julgamento: 28/01/2014. Relator: Wander Marotta. Disponível em: <https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/7561/9/TJMG%20Apela%C3%A7%C3%A3o%2010433130275921001.pdf> Acesso em: 13 de Junho de 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG – Apelação Cível: APCV 03176906720088130319. Órgão Julgador: 7ª Câmara Cível. Julgamento: 28/01/2014. Relator Des.: André Leite Praça. j.22.3.2011. DJEMG 08.04.2011.

CASTRO, Luana. Conceito de Parentalidade socioafetiva e multiparentalidade.In: Sajadv, Piauí, 10 de Março de 2017 Disponível em: <https://blog.sajadv.com.br/multiparentalidade/> Acesso em: 10 de Março de 2018.

CASSETARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

CORREIA, Luana Alves. Efeitos Sucessórios da paternidade socioafetiva. In: Âmbito jurídico, Rio Grande, XVIII, n. 143, dez. 2015. Disponível em: <http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16645>

Acesso em 10 de março de 2018.

CYSNE, Renata Nepomuceno e. Os laços afetivos como valor jurídico: na questão da paternidade socioafetiva. Família e jurisdição II. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 200.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed., ver., atual e ampl. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2007.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo, SP: Revista Tribunais, 2013.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. vol. 5.

DINIZ, Maria Helena. Manual das Sucessões. São Paulo: RT, 2013.

GILDO, Nathália. Evolução histórica do conceito de filiação. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/46589/evolucao-historica-do-conceito-de-filiacao>Acesso em: 19 de Maio de 2018.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito a origem genética: uma distinção necessária. in Conselho da Justiça Federal. Brasília. out/dez. 2004 Disponível em:<https://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/633/813>. Acesso em: 19 de maio de 2018.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NOGUEIRA, Jaqueline Filgueiras. A Filiação que se costrói: O reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001, p.84 e 85.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Introdução ao direito civil: direito de família, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

PRADO, Ana Paula; Batista Soares, Isabela; de Souza, Regina Maria. Parentalidade Socioafetiva e Multiparentalidade: Demandas no âmbito familiar e desdobramentos no meio jurídico. Disponível em:<https://anapaulaprado.jusbrasil.com.br/artigos/195446862/parentalidade-socioafetiva-e-multiparentalidade-demandas-no-ambito-familiar-e-desdobramentos-no-meio-juridico>. Acesso em: 13 de Junho de 2018.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. 2. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 2006, v. 1.

RODRIGUES, Nathalia Andrade. Direito Sucessório na Paternidade Socioafetiva. Disponível em: <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/direito-sucessorio-na-paternidade-socioafetiva.htm>Acesso em: 19 de Maio de 2018.

ZENI, Bruna Schlindwein. A evolução histórico-legal da filiação no Brasil. Direito em Debate, 2009. Disponível em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso em: 28 de novembro de 2018.

 

Palavras Chaves

filho socioafetivo, parentalidade socioafetiva, formações familiares, filiação, sucessão.