PERFIS PARALELOS DA DEMOCRACIA: PETRÔNIO PORTELLA NUNES E WILSON DO EGITO COELHO

Resumo

O tempo e o momento histórico, na saga de dois alunos na antiga Faculdade Nacional de Direito (FND), que se tornaram juristas de nomeada: Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho. Nesse sentido, este artigo pretende apontar para os seus perfis paralelos no campo democrático político e jurídico, com várias outras interseções: ambos oriundos do Piauí; fizeram o mesmo curso universitário, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e se casaram com duas irmãs. Ambos tiveram importante significado histórico, especialmente no momento crítico de abertura que redundou no processo de redemocratização pós-ditadura militar, como nos processos de anistia, constituinte e criação institucional do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da Constituição Federal).

Artigo

PERFIS PARALELOS DA DEMOCRACIA:

PETRÔNIO PORTELLA NUNES E WILSON DO EGITO COELHO

 

                    Leonardo do Egito Coelho[1]

José Carlos Buzanello[2]

 

Resumo

O tempo e o momento histórico, na saga de dois alunos na antiga Faculdade Nacional de Direito (FND), que se tornaram juristas de nomeada: Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho. Nesse sentido, este artigo pretende apontar para os seus perfis paralelos no campo democrático político e jurídico, com várias outras interseções:  ambos oriundos do Piauí; fizeram o mesmo curso universitário, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e se casaram com duas irmãs. Ambos tiveram importante significado histórico, especialmente no momento crítico de abertura que redundou no processo de redemocratização pós-ditadura militar, como nos processos de anistia, constituinte e criação institucional do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da Constituição Federal).

 

Palavras-Chaves: Petrônio Portella Nunes. Wilson do Egito Coelho. Faculdade Nacional de Direito. Fernando Arruda. Raymundo Faoro. Redemocratização.

                                      INTRODUÇÃO

O tempo quase apaga à presença notável de dois alunos na antiga Faculdade Nacional de Direito (FND), que se tornaram juristas de nomeada: Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho. Nesse sentido, este artigo pretende apontar para os dois personagens que tiveram perfis assemelhados nos campos do direito e da política em prol da democratização do país. Tiveram várias outras interseções: ambos oriundos do Piauí; que fizeram o mesmo curso universitário, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, ainda, se casaram com irmãs, criando elos parentais de cunhados, estreitando ainda mais a relação entre as célebres personagens.

Ambos tiveram importante significado jurídico e político na história brasileira, mormente no momento crítico de abertura política, que redundou no processo de redemocratização pós-ditadura militar, como nos processos de anistia, constituinte e criação institucional do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da Constituição Federal).

Decorridos mais de 30 anos de experiência democrática, essa entra em fadiga pelos erros na condução dos seus processos, principalmente por não se realizar a democracia material da distribuição igualitária da república e ficar restrita a um jogo de elites sem compromisso com o mundo real. Presencia-se, no contexto político, um “déficit democrático”. A importância da história se apresenta fundamental para que não se repitam os erros do passado, principalmente no regime de ditadura. Com todos os problemas dela decorrentes como um jogo de interesse de elites, a Democracia ainda é o melhor regime político.

Por esta e outras razões, que estamos a recordar a memória daqueles que participaram de fatos pela democracia e que marcaram a história pela luta por um Estado Democrático de Direito e por um desenvolvimento socialmente mais justo para o Brasil.

  1. TEMPOS DE ESTUDANTES NA FND

Iniciaremos o texto recorrendo à narrativa quase integral de Fernando Arruda[3], Procurador do Estado do Rio de Janeiro, contemporâneo de Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho, para contar a saga destes nordestinos de origem piauiense, que frequentaram a FND dos anos de 1950.

 “A Faculdade Nacional de Direito reunia naquela época a nata dos mestres do Direito no país. Nomes e personalidades eminentes do magistério jurídico, professores do melhor nível intelectual e do mais elevado conceito moral; também assíduos, cumpridores dos seus deveres. Lembro, no primeiro ano, Homero Pires, substituto de Hermes Lima na cátedra de Introdução à Ciência do Direito, compilador dos comentários de Ruy Barbosa à Constituição de 1891, e admirador apaixonado do baiano ilustre; Leônidas de Rezende, professor de Economia Política. Figura humana admirável. Marxista convicto e cardiopata grave, avisou na primeira aula: – “Se, por acaso eu tombar aqui e morrer, não se assustem, telefonem para minhas irmãs que elas mandarão recolher o corpo.” Disse isto com naturalidade e sem propósito de quixotismo. Durante a aula sorvia dois a três vidrinhos de atropina – creio – estimulante cardíaco. Como se hoje sorvesse quatro ou cinco comprimidos de isordil, por hora – tal era a fragilidade do seu coração”[4].

“Leônidas, de voz mansa e paternal, paciência larga e temperos de ironia, deu-nos o primeiro choque, a nós quase todos de formação cristã e eclesiástica, desenvolvendo um trabalho de destruição dos velhos conceitos e iniciando-nos no marxismo. Começou mostrando o papel revolucionário de Jesus Cristo, insurgindo-se contra as estruturas judias e romanas de seu tempo. A burguesia rica, dona do poder, e o imperialismo colonizador da época. Comparava-o aos novos revolucionários. E um dia chegou a propor-nos: – Cristo disse que voltaria ao mundo na consumação dos tempos e não seria reconhecido. Talvez seja Lênine o novo Cristo não reconhecido pela humanidade. E assim, ternamente, quase,  foi nos inserindo nas doutrinas do materialismo histórico, do materialismo dialético, da mais valia e das transformações da propriedade, comum ou coletiva nos primórdios da civilização, depois apropriada individualmente e concentrada nas mãos dos senhores feudais; mais tarde, com a formação dos estados nacionais, repassada ao patrimônio do rei e distribuída aos duques e barões, apropriada pela grande burguesia mercantilista após as revoluções Francesa  e Industrial;  e quanto mais os representantes das classes privilegiadas acumulavam riqueza, apropriando-se dos frutos do trabalho do proletariado, mais espalhavam a miséria no seio das classes trabalhadoras” [5].

“Pedro Calmon, professor de Teoria Geral do Estado: brilhante, sibilando ou chilreando esses e xis, dir-se-ia que era o extremo oposto. Em suas aulas, de agradável retórica, repassava a evolução do Estado desde a antiguidade grega até os tempos modernos; a queda da realeza absolutista, o Iluminismo, a revolução. Montesquieu e a doutrina do contrato social de Rousseau, o Estado liberal, o Estado social-democrata. Era também o Magnífico reitor da Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Diziam as línguas sempre ferinas dos alunos que seu maior desejo seria ter uma universidade frequentada por jovens da nobreza imperial, bem apessoados e bem vestidos, filhos de duques, condes e marqueses egressos do tempo de Pedro II. Bisbilhotavam que, no fundo, Pedro Calmon ainda alimentava convicções monarquistas e ansiava por voltar aos elegantes salões do império. Na verdade, era um grande historiador. E finalmente, tivemos Matos Peixoto, professor de Direito Romano, um sábio que não demonstrava a cultura jurídica que possuía. Com ele conhecemos as origens do nosso direito privado dos principais institutos do Direito Civil, a estrutura e o funcionamento da justiça romana nos períodos dos primeiros reis, da república e do império; o senado. Ouvimo-lo falar com justa reverência, do Corpus Iuris Civilis, ou Código Justiniâneo, a primeira grande compilação de princípios e normas do Direito Civil, fonte, durante séculos afora, de saber e inspiração desse fundamental ramo da ciência jurídica[6].

“E assim fomos perlustrando os becos e vielas do bacharelado. Tivemos a ventura ímpar em ter como mestre de Direito Civil, o professor Arnoldo Medeiros da Fonseca. Arnoldo ensinou-nos verdadeiramente o Direito Civil. Não só nos ensinou; incutiu-nos o gosto e o respeito por esse capítulo vital do direito, no fundo o mais importante conjunto de regras do bem viver e conviver em sociedade. Não deixou sem aula e exposição minuciosa todos e cada um dos institutos regulados nos cinco livros do código civil. Desde a Lei de Introdução e a Parte Geral, das Pessoas, Bens e Atos Jurídicos, até o inventário e a partilha do livro V. Pontual, didático, sistemático, organizado, foi completo”[7].

“Demósthenes Madureira de Pinho, baiano fulgurante, catedrático de Direito Penal. Pena que nos tenha abandonado no meio do caminho, vertido aos negócios bancários. Muitos outros marcaram nossas lembranças de acadêmicos: Olinda de Andrada (não resistiria a um exame de sanidade mental, bufão, ignorante dentro dos limites entre o seno e o ridículo, coitado, deslustrara o sobrenome, apesar de conhecer razoavelmente a ciência das finanças; Sampaio Lacerda no Direito Comercial, enfadonho, mas responsável e assíduo, conquistou o afeto dos alunos; Lineu de Albuquerque, no Direito Internacional Público, brilhante, apelidado de Francisco de Vitória, em homenagem ao internacionalista espanhol de quem tanto falava; Joaquim Pimenta e Evaristo de Moraes, no Direito do Trabalho, duas figuras respeitáveis, o segundo  também sociólogo, e ambos com notável contribuição para o desenvolvimento da proteção jurídica ao antes despojado trabalhador brasileiro; Helio Tornaghi, professor de Processo Penal, que nos ensinou os primeiros (e poucos) princípios da teoria do processo,  autonomia do direito público de ação, os pressupostos processuais, as condições da ação, jurisdição e limites da sentença”[8].

“Houve também Rodrigues Valle, que mais nos ilustrou com sua Teoria do Retorno (a civilização tende a voltar para a idade das cavernas para de novo evoluir) do que com o Direito Administrativo, que era sua cátedra. E, finalmente, Haroldo Valadão, de estirpe nobre, senhor, dono e proprietário exclusivo do Direito Internacional Privado, no Brasil. Por isto, em um tempo foi consultor do Ministério das Relações Exteriores e, em outro, Consultor Geral da República. Daí porque deve ter-lhe ferido a alma como os punhais de Brutus e Cassius na carne de Cesar, o deboche de Gondim Neto, um ridicularizador por natureza. (Apregoava que só três pessoas conheciam Direito Civil, no mundo: Savigny, seu pai Gondin Filho e ele). Em um desentendimento que tiveram na Faculdade, quando Valadão exigiu – “Respeite-me, que sou tão catedrático como Você”. Gondim respondeu-lhe sarcástico: “Catedrático como eu não, nem pensar. Sou catedrático de 1800 artigos de um Código Civil, e você é professor de apenas 3 artigos de uma leizinha de introdução. Não somos iguais”. Valadão, que, realmente era profundo na sua matéria, era exigentíssimo. Reprovava aluno mesmo no final do curso. Mas, por causa de sua rotina extremamente inalterável, foi ludibriado, durante muitos anos, pelos alunos, no sorteio do ponto das provas. Algum Direito não aprendeu na FND, quem não quis, ou era burro” [9].

“Em turma numerosa, de mais de 130 alunos, era natural que alguns, por empatias ou maiores afinidades pessoais, intelectuais e até regionais, se reunissem em grupos de amizade mais estreita. Os “grupinhos” formados em toda coletividade. Assim foi na Nacional. Os piauienses Petrônio Portella e Wilson do Egito Coelho, o sergipano Raymundo Menezes Diniz, eu cearense, Sylvio e José Florêncio, Darcy Guimarães e Chico Décio formávamos com Lygia Macedo, Vera Conrado, Maria Julia Campinho Pereira, Comary Caldas Batista, Selva e Maria Adelia do Couto Truda, esta já casada, um grupo de encontros e reuniões frequentes, na Faculdade e fora dela. Para estudar juntos, trocar idéias, falar de filmes e peças teatrais, dos últimos sucessos musicais, falar mal dos outros e dos professores, principalmente, ou para comentar aulas e livros que alguém sugeria e muitos liam. Livros de direito, política e assuntos técnicos ligados ao curso, ou simplesmente Literatura.”[10]

Assim prossegue Fernando Arruda em sua deliciosa narrativa, já publicada em periódicos, descrevendo fatos relacionados àquela época de Guerra Fria, que dividiu o mundo ideologicamente  – de um lado, os países na órbita da antiga União Soviética (URSS) e,de outro, os chamados países capitalistas (EUA) – . Essa divisão permeou todos os quadrantes do mundo, das nações, às sociedades, não podendo ser diferente entre os alunos da FND, onde movimentos político-acadêmicos disputavam o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO). Registra-se que inclusive Petrônio chegou a ser seu presidente nas fileiras da Reforma, em que se alinhavam comunistas e socialistas e, do outro, a Aliança Libertadora Acadêmica (ALA), havendo ainda um Grupo Independente (GI), com a sigla Virtus in Medio, que terminava apanhando de ambos os lados. A União Metropolitana de Estudantes (UME), ramo carioca da famosa UNE e as efervescentes faculdades eram grandes escolas de política e, apesar da aparente cordialidade entre seus representantes, não foram poucas as vezes que assembléias e reuniões de conselhos acabavam em pancadaria. Os moços daquela época também tinham mais tempo para o amor, o lirismo e a poesia, cultivavam sentimentos românticos, além dos livros históricos e políticos, ao contrário da juventude atual, mais preocupada, com justas razões, com a construção da vida material. Assim, então, era possível, com tempo e tranquilidade, ler além do obrigatório da profissão, aquilo que se chamava de cultura de “humanidades”. Foi também época vibrante do existencialismo, precursor do movimento hippie, guardadas as devidas proporções.

E assim seguiu-se todo curso entre livros, pessoas, fatos políticos marcantes, até seu o final, como Fernando Arruda fez questão de concluir sua narrativa:

“Aos 18 de dezembro de 1951 (…) à noite, entrega solene dos diplomas no Teatro Municipal. Discursos de Pedro Calmon, brilhante como sempre, do nosso paraninfo Arnoldo Medeiros, inteligente e objetivo e do orador, perdoe, decepcionante (…) concluída a solenidade, recebidos diplomas e cumprimentos, sem pouso nem destino. Petrônio, Wilson, Raymundo, Délio Aloísio e eu fomos para o Balalaika, cabaré de segunda classe em Copacabana.  Permitimo-nos tomar uísques e oferecer às prostitutas, ávidas por apanhar os cinco rapazes bem vestidos, bem aparentados e, supostamente, bem providos. Ledo engano. Da noite recordo o vibrante diálogo de Wilson, em italiano fluente, com uma prostituta italiana (e dizem que o álcool não cria virtudes). Daí à pouco, enfarados, retiramo-nos todos para casa. Melancólico fim do bacharelado”.[11]

  1. BIOGRAFIAS E ORIGENS EM COMUM NO PIAUÍ

Petrônio Portella Nunes nasceu em 12 de dezembro de 1925, em Valença do Piauí.  Foi considerado o piauiense do século, tendo exercido mandatos de deputado estadual, prefeito de Teresina, governador do Piauí, senador da República, presidente do Congresso Nacional e, por último, Ministro da Justiça. Faleceu em 6 de janeiro de 1980, deixando esposa e três filhos, interrompendo sua trajetória natural à presidência da República.  Ingressou na política pela UDN, antes mesmo de haver concluído seu curso universitário, tendo saído como candidato derrotado em sua primeira eleição que concorreu, ficando apenas com uma terceira suplência como deputado estadual.   Voltou para o Rio e concluiu seu curso de Direito na FND. Formado em 1951, instala uma banca de advocacia, logo adquirindo conceito, fama e clientela, sendo que remuneração material não o empolgava, tornando-se advogado da UDN, o que marcou sua passagem definitiva para a política.

Posteriormente, quando retornou definitivamente para o Piauí, Petrônio assumiu como seu primeiro emprego a delegacia estadual do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes de Cargas (IAPETEC), articulado por João Cândido Ferraz, deputado federal por três mandatos, destacado líder udenista, abrindo as portas para sua vocação política. Na queda de braço entre UDN e PSD, Petrônio acabou sem emprego, mas através de um sistema de licença de seus colegas deputados de bancada na Assembléia, foi ficando permanentemente no mandato, o que lhe garantiu uma posição de liderança incontestável, não obstante ser suplente.

Nessa época Petrônio enveredou pelo jornalismo, caminho natural para quem queria fazer política e não tinha uma legenda; assim, ao mesmo tempo em que escrevia para jornais, oferecia total assistência jurídica ao seu partido, que apesar da pouca idade, fazia de Petrônio uma de suas figuras mais importantes.

Um dos casos marcantes de Petrônio como advogado foi na acusação de um conhecido valentão do PSD, partido de oposição, pessoa de nome Zezé Leão, que em um júri de grande repercussão na cidade, resultou na condenação deste em 15 anos de prisão. Esse ato foi muito bom para suas pretensões políticas, tornando-se um nome popular em Teresina. Uma curiosidade neste caso, é que o então condenado Zezé Leão fora assassinado covardemente em 1956, no município de Água Branca, provavelmente por um acerto de contas para vingar a morte de um capitão da polícia militar, levando a viúva daquele, impressionada com a atuação do Petrônio no julgamento, a procurá-lo, só desta vez, para fazer a denúncia contra os assassinos de seu marido.

Outra curiosidade digna de destaque na trajetória política do Petrônio, foi que, apesar de líder da oposição no Piauí, este viria a se casar com a filha do então governador Pedro de Almendra Freitas, Iracema, amor de sua vida. Contudo, mesmo após o casamento, continuava a disparar da tribuna contra a administração de seu sogro no governo, sabendo separar as ternuras do amor das lutas políticas, conforme nos conta o jornalista Zózimo Tavares em seu livro Grandes Vultos que honraram o Senado. Registra, ainda, que o então governador Pedro Freitas, próspero comerciante de espírito conciliador e administração austera, enfrentava a oposição de Petrônio, que a considerava mais por arroubos da sua juventude e seu propósito de se firmar como uma liderança política no Piauí. Por outro lado,  este se justificava dizendo  que não combatia a pessoa respeitável do governador,  mas os atos do governo, de modo que o fato é  que ao final tudo acabou se resolvendo e  transcorrendo sem mágoas e com bastante praticidade.

Decidido a prosseguir na carreira política, Petrônio aprendeu com a derrota de 1950 e, nas eleições de 1954, conseguiu eleger-se com facilidade para a Assembléia Legislativa, pela coligação oposicionista Aliança Democrática Progressista, formada pela UDN (União Democrática Nacional) e pelo PSP (Partido Social Progressista). Apesar de vitorioso, renunciou a liderança da oposição, pois havia se casado com a filha do governador Pedro Freitas e o PSD mais uma vez ganhara as eleições, desta vez com a vitória do General Gayoso e Almendra, cunhado e primo do sogro de Petrônio, mas mesmo entregando formalmente a liderança do partido, este não mudou o seu tom na Assembléia Legislativa, reassumindo a liderança da UDN na Assembléia Legislativa em 1957.

As eleições de 1958 foram marcadas por surpresas e improvisos, segundo reporta o jornalista e escritor Zózimo Tavares, cuja permanência no governo pelo PSD era dada como certa, mas um acidente automobilístico fatal e impedimentos legais na candidatura da oposição levaram a mudanças de última hora na escolha dos candidatos à prefeitura de Teresina, mudando também os rumos da história. Desta feita, a UDN, escolheu Petrônio como candidato, que resistiu alegando que era vocação parlamentar que possuía e não para chefiar um Poder Executivo, mas terminou aceitando o desafio e em pleito cercado por muitas dificuldades, conseguiu sair vitorioso, elegendo-se Prefeito de Teresina, capital do Piauí. No Executivo Petrônio teve a oportunidade de exercitar ainda mais sua capacidade de articulador político, exercendo com parcos recursos da época, uma política voltada para habitação de famílias carentes, pavimentação de estradas, construção de escolas, sempre atacando problemas de frente, dando mostras de onde sua meteórica carreira política poderia lhe levar.[12]

Em 1962, em meio à administração do governador de então Chagas Rodrigues, rompida a coligação entre UDN e PTB, o prefeito Petrônio Portella passa  a despontar como candidato da oposição  ao governo do Piauí, sabendo conquistar o eleitorado de Teresina, ganhando preferência  de correligionários do interior, com base na segurança de suas ações, confiabilidade de sua palavra, obras administrativas realizadas e inquestionável liderança, que atraiu, inclusive, significativa parcela de seu principal adversário o PSD. Em plena campanha ao governo do estado do Piauí, Petrônio é acometido de câncer em um dos pulmões, tendo sido operado no Rio de Janeiro e, contrariando todas as prescrições médicas, superando as adversidades da luta política em condições extremamente precárias, Petrônio se consagra vitorioso na eleição para governador do Piauí. Enfrentou seus muitos novos desafios com um governo austero, que lhe renderia certa impopularidade em seu início de mandato, para tirar o estado do imobilismo em que se encontrava, afundado em dívidas com o funcionalismo público, precariedade no fornecimento de energia elétrica e sem perspectivas de uma universidade pública. Entre as obras e fatos que marcaram a sua gestão, destacam-se a elaboração do I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Piauí, criação do Banco do Estado do Piauí (BEP) –  hoje inexistente – estabeleceu o Conselho Estadual de Educação e o Conselho Estadual de Cultura, instalou a Faculdade de Medicina, entre diversas intervenções administrativas, visando melhorar a condição econômica e social do estado.

Nesse período, chegou ensaiar uma aproximação com o presidente João Goulart, quando às vésperas do Golpe Militar de 1964, o governador Petrônio Portella fazia discursos de protesto, afirmando que o Piauí marcharia armado a seu lado, contra os adversários do regime. Zózimo Tavares destaca que, reconhecendo as ligações de Petrônio com a “bossa nova” da UDN, o jornalista Carlos Castello Branco escreveu não haver estranhado a notícia do envio de Mensagem  a 31 de março de 1964 para o governador de Pernambuco Miguel Arraes, nota esta bastante distorcida pelos adversários políticos, declarando-se  solidário  com a legalidade  ameaçada e afirmando que o Piauí só não se levantara em armas por não dispor de armas. O que levou Petrônio a excusar-se a assinar manifesto endereçado aos governadores do nordeste pelo governador Arraes, mas é certo que pertenciam todos naquele momento a uma mesma vertente, embora nela  já não estivesse o governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, que transferiu suas responsabilidades para tarefas que exigiam dele  a clássica atitude conspiratória.

Em paralelo, Wilson do Egito Coelho, nascido em 29 de abril de 1925, em Loreto Maranhão, se transferindo muito cedo para o Piauí, adotando Teresina como sua cidade do coração. Foi   aluno do curso de doutorado em direito público na FND até 1955, onde também realizou curso de extensão universitária ministrado na Universidade do Brasil pelo Professor Pedro Calmon. Iniciou sua carreira na administração pública em 1953 como diretor do Instituto de Criminalística do Departamento de Polícia Civil do Estado do Piauí. Em 1956 tornou-se procurador da república do Piauí e procurador junto ao Tribunal Regional Eleitoral. Posteriormente, integrou o Gabinete Civil do presidente Juscelino Kubitschek, trabalhando ao lado do Ministro Victor Nunes Leal.

Ingressaria então, Wilson, no departamento jurídico da antiga SUMOC, transferindo-se, depois, para o Banco Central do Brasil, onde fez fulgurante carreira até se aposentar em 1983. Foi assessor da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados; professor  de instituições  de Direito Público da Faculdade de Economia do Rio de Janeiro; Delegado substituto do Brasil junto ao Comitê Legal sobre Acordos para a solução de Disputas Relativas  a Investimentos, patrocinado pelo Banco Internacional de Reconstrução  e Desenvolvimento nos EUA;  Delegado do Brasil na XIV Reunião da Comissão Assessora de Assuntos  Monetários da ALALC no Peru; Delegado do Brasil à XV Reunião  da Comissão Assessora de Assuntos Monetários da ALALC no Uruguai; Integrante da missão do Banco Central  do Brasil junto ao Banco Central do Paraguai para prestar colaboração ao Grupo de Trabalho encarregado de preparar e redigir  a Lei de Mercado de Capitais daquele país.

Foram inúmeras conferências e palestras realizadas sobre a Estrutura Jurídica das Instituições Financeiras; Instituições Financeiras Brasileiras; Mercado de Capitais; Operações passivas de bancos comerciais; Nova lei das Sociedades Anônimas entre outras. Teve trabalhos publicados, como A Norma Jurídica e a Evolução social; Razões de Defesa; o Processo Judicial e as Imunidades Parlamentares; Mandato das Mesas Diretoras das Câmaras Municipais de São Paulo; Empréstimo de dinheiro por particulares – Descaracterização de operação privativa de Bancos; S/A para Empresários – da responsabilidade dos administradores das sociedades por ações; entre outros. Wilson faleceu precocemente no dia 02/08/86, deixando esposa e cinco filhos.

Em homenagem póstuma, realizada em sessão do Tribunal Federal de Recursos no dia 7/08/1986, o Ministro Carlos Velloso relembra que desde os tempos universitários Wilson revelava o seu espírito liberal e o seu amor pelo regime democrático e que ao lado de Petrônio, seu amigo de infância e mais tarde seu concunhado, participou ativamente da política universitária. Enquanto Advogado, nele não arrefeceu o ideal da sua juventude. Lembrou de uma conversa com o então Ministro Petrônio Portella em 1979, quando este confessou-lhe que considerava Wilson o melhor de sua geração e que lamentava o fato dele jamais ter-se candidatado ao Congresso Nacional, acrescentando que no parlamento ele seria dos maiores. [13]

Um dia antes de sua morte, fora ele escolhido no Piauí, candidato escolhido a suplente de senador pelo PFL, quando certamente, a partir daí, passaria a participar ativamente da política partidária, havendo de realizar, estamos certos, a profecia de Petrônio Portella, no sentido de que Wilson do Egito Coelho seria, no Parlamento, um de seus maiores.

E prossegue dizendo que Wilson, estudioso do Direito Comercial, era considerado no meio jurídico nacional, dos maiores especialistas em Direito Bancário, disciplina que lecionou, durante muitos anos, no Departamento de Direito da Universidade de Brasília – UNB. Era um expositor brilhante, raciocínio lógico, esplêndida cultura humanística, claro, postura impecável, tendo dignificado e abrilhantado, não poucas vezes, a tribuna reservada aos advogados, quer na defesa de seus constituintes, quer em sessões solenes da Corte, falando em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que integrou por mais de vinte anos, participando nessa condição por mais de uma vez, de banca examinadora de concurso de Juiz Federal. [14]

E assim, completa o Ministro Carlos Velloso, nessa condição relembra quando conheceu Wilson em 1975, quando integraram, naquela época sob a presidência do Ministro José Neri da Fonseca, que depois veio a integrar o STF, e na companhia do professor Roberto Rosas, banca examinadora de concurso de Juiz Federal, podendo conhecer então o examinador meticuloso, o professor culto, o homem criterioso, justo, bom, que não o deixou esquecer de um gesto de Wilson durante os exames: “um dos candidatos, já não um jovem, mas um advogado de nome feito, parecia embaraçado, nervoso, diante do peso da responsabilidade, mas Wilson, então, falou-lhe docemente, mencionou trabalhos jurídicos do candidato, que ele lera e de que gostara. O examinando tornou-se então calmo, desembaraçou-se e respondeu, com desenvoltura, às indagações que lhe foram feitas pelos membros da banca. Ao cabo do exame disse o ministro Carlos Velloso que apreciara o seu gesto de bondade e compreensão, lembrada com saudade daquela conversa “- ah! Carlos, não há Justiça sem bondade, sem compreensão do homem.” [15]

Finalizou com palavras em tom de muita emoção o Ministro Carlos Velloso em memória  ao advogado eminente, jurista de escola, professor universitário,  conferencista afamado, orador brilhante, bom pai, chefe de família exemplar, amigo dos amigos,  homem justo, homem bom, um Homem,  que deixou sua viúva Matilde de Almendra Freitas do Egito Coelho, a quem muito amou,  para continuar a sua obra, associando-se nesta sessão aos votos de pesar e homenagem o sub-procurador da República Paulo Sollberger e o presidente do Tribunal, Ministro Lauro Leitão. [16]

Também vale recordar a sessão da Câmara Federal  de 27 de agosto deste fatídico ano de 1986, quando o Deputado Celso Barros Coelho, falando como líder do Partido da Frente Liberal prestou homenagem ao amigo e,  sobretudo, à figura humana roubada do convívio dos seus, numa hora em que a sua participação na vida pública era de todos desejada, era visível a intenção de servir ao Piauí, sua terra de coração, sempre dizendo, que embora atraído pela política, que não se engajaria nela senão depois de varrido do país o autoritarismo, que tanto o incomodava Wilson, aclamado como um semeador de alegria, de confiança e de felicidade.[17]

  • REGIME MILITAR, OAB E PROCESSO DE ABERTURA POLÍTICA

No começo do governo militar, o governador Petrônio Portella passou por uma quarentena e só saiu dela depois que, sentindo-se desprestigiado, procurou diretamente o Presidente Castello Branco e colocou o cargo à disposição, dizendo com firmeza não querer que sua presença à frente do governo do Piauí prejudicasse seu estado, depois de provar, pelos constantes cortes de verbas, que o Piauí estava sendo discriminado pelo governo federal. O gesto de Petrônio impressionou Castello Branco que, a partir daí, mudou seu comportamento em relação a ele, prestigiando-o mais ao ponto de render ao Piauí, naquela ocasião seu último empreendimento federal de grande porte, a usina hidrelétrica de Guadalupe. Assim Petrônio, com muita habilidade, conseguiu levar seu mandato até o final em 12 de agosto de 1966, quando renunciou ao cargo para sair candidato a senador, quando foi eleito e também presidente do Congresso Nacional em duas ocasiões.

Petrônio Portella continuou sua carreira em ascensão, como líder da ARENA, um dos partidos ao lado do MDB instalados pelo bipartidarismo que havia sido consolidado pelo regime militar, quando  em um dos momentos mais tristes da história recente do Brasil,  aconteceu  a decretação do Ato Institucional nº 5, em 1968, com cassação de direitos políticos e perseguição daqueles que se voltavam contra o governo, implementação de censura e outras atrocidades, como foi a aposentadoria compulsória de três dos mais atuantes ministros do Supremo Tribunal Federal de então, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, este, inclusive,  que em carta descoberta recentemente, já apontava para esta intenção e risco ainda em 1964.

Petrônio conseguiu a façanha de seguir com o apoio e destaque junto ao governo militar, começando a dialogar com instituições da sociedade civil, como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com o emergente líder sindical Luiz Inácio “Lula” da Silva, a quem o considerava muito talentoso e, principalmente,  a Ordem dos Advogados do Brasil  (OAB), preparando o país para a redemocratização. O presidente da OAB, Raymundo Faoro, diria mais tarde de Petrônio que foi, o referido, o único político que teve talento para eliminar o arbítrio e iniciar o caminho para  a construção democrática da nação, pedra angular para viabilizar  o processo  de transição  do regime autoritário para a normalidade democrática. O senador Marco Maciel, que exercia a presidência da Câmara dos Deputados em 1978 destaca o empenho de Petrônio para a aprovação da Emenda Constitucional nº 11, que permitiu o país voltar ao Estado de Direito pela revogação dos atos de exceção, os atos institucionais e complementares, pelo fim do bipartidarismo, pela volta da liberdade de organização sindical, pela possibilidade de concessão de anistia ampla, geral e irrestrita, entre outros instrumentos fundamentais.

Na OAB, Wilson foi Conselheiro Federal pelo Estado do Piauí por dez gestões (1964/1965, 1969/1971, 1971/1973, 1975/1977, 1977/1979, 1979/1981, 1981/1983, 1983/1985, 1985/1987), últimos destes ao lado do ministro Evandro Lins e Silva, a quem convidou por este ter nascido em Parnaíba, embora não tivesse família piauiense.  Foi vice-Presidente eleito do Conselho Federal da OAB na gestão de José Ribeiro de Castro Filho entre 1973 e 1975. Foi membro da Comissão de Temário da VI Conferência Nacional dos Advogados (Salvador, 1976) e membro da Comissão de finanças das seguintes Conferências: VII (Curitiba, 1978); VIII (Manaus, 1980); IX (Florianópolis 1982).  Fez parte da Comissão especial da Ordem designada para contestar o Decreto 74.000/74 que tentou vincular a Ordem ao Ministério do Trabalho (CP 1530/74) e da Comissão especial para analisar o Projeto de Lei no 633/77 do Poder Executivo que tratava do Código de Processo Penal (CP 2000/77).

Como Vice-Presidente do Conselho Federal, Wilson do Egito Coelho enfrentou um dos episódios mais dramáticos da Ordem, o assassinato do advogado Henrique Cintra Ornellas. No dia 16 de agosto de 1973, Henrique Cintra foi detido arbitrariamente em um quartel do Exército na cidade de Apucarana-PR junto com mais três outros advogados: Confúcio Barbalho, Márquez Hudson Cores e Abis Evaristo Doce. Três dias depois da prisão, todos foram transferidos para Brasília, fato que teve forte repercussão na Conferência Inter-Americana de Advogados reunida na capital. Logo após a transferência, as autoridades militares enviaram telegrama à família de Henrique Cintra Ferreira de Ornellas noticiando o suposto suicídio do advogado na prisão. Ao tomar ciência do ocorrido, Wilson do Egito e o presidente da Secional do Distrito Federal, Sigmaringa Seixas, trataram de tomar as providências cabíveis e tentaram, inutilmente, visitar o corpo da vítima no necrotério, a fim de verificar a veracidade da versão militar.

Como principal representante do Conselho Federal que se encontrava em Brasília naquela ocasião (pois a sede do Conselho funcionou no Rio até 1986), Wilson do Egito encontrou- se com o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, e pediu para que fosse realizada uma autópsia sob a assistência de um legista indicado pela Ordem, além de reivindicar a quebra de incomunicabilidade dos demais advogados presos. Wilson participou de reunião do CDDPH em que relatou os graves acontecimentos e “manifestou estranheza ante a pauta de julgamento daquele Conselho, inexpressiva e refarta de assuntos estranhos às magnas funções legais do órgão”. Após a liberação do corpo, um avião foi especialmente fretado para levar os conselheiros federais ao enterro ocorrido em Arapongas-PR, como forma de solidariedade e protesto. Na ocasião, o Conselheiro Carlos Araújo Lima fez discurso emocionado em homenagem ao colega advogado. A Ordem também reagiu contra a tentativa de difamação da imagem da vítima por parte do Jornal do Brasil que havia publicado uma reportagem a 24 de agosto na qual afirmava que a população de Arapongas recebera jubilosamente a notícia da morte de Ornellas. A OAB convocou a imprensa em ato de desagravo ao advogado morto e, atendendo aos apelos do conselheiro Serrano Neves, cuidou para que a família da vítima fosse amparada pela Caixa de Assistência, da sub-seção de Londrina. Após muito insistir, Wilson do Egito conseguiu visitar rapidamente os advogados presos sob a vigília constante de militares armados com metralhadoras e constatou as condições precárias em que estavam encarcerados no 8º Grupo de Artilharia Anti-Aérea da capital. Seu depoimento deu subsídios para que o Presidente José Ribeiro de Castro Filho impetrasse habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal em favor dos colegas detidos. Depois de inúmeros esforços da OAB, o caso foi encaminhado para o CDDPH e os advogados foram libertos em setembro de 1973.

Os advogados Marcelo Cerqueira, Gisálio Cerqueira Filho, Alberto Venâncio Filho, Sônia Portella Nunes, ao lado de outros eminentes advogados  no documentário produzido pelo Centro de Memória da OAB,  em homenagem ao seu ex-presidente Raymundo Faoro, nos relatam em diálogos gravados, que em 1977/79  que ninguém naquele momento difícil para a democracia brasileira poderia imaginar o que fosse acontecer, simplesmente porque eram dois blocos que não se comunicavam: de um lado, o governo da ditadura militar e de outro, a sociedade civil.

Raymundo Faoro se destacaria então no mundo jurídico, como um intelectual, profissional de proa, de liderança capaz de articular a questão jurídica com a questão política. Um momento muito importante nesse processo foi a Conferência de Curitiba, voltada para a retomada de um Estado de Direito, com as monografias todas seguindo esta linha, onde o governo federal se fez representar pelo Consultor Geral da República Rafael Mayer, em torno de parecer dado por ele nesta condição quando se quis colocar a Ordem sob a égide do Tribunal de Contas e quando lhe fora mostrado que a Ordem tinha um status, especial, diferente, que não poderia ser enquadrada em nenhum outro tipo de organização.

Nas palavras do próprio Raymundo Faoro, ele diz que no ano de 1978, na Conferência  Nacional da OAB em Curitiba,  havia recebido um recado transmitido pelo convidado amigo ministro Rafael Mayer, que o Presidente da República o havia chamado para dizer-lhe que estava falando seriamente, que não havia reserva mental nenhuma, que estaria disposto a realizar a abertura. E foi nessa ocasião também que Petrônio Portella mostrou o esboço da revogação dos atos institucionais.[18]

A Missão Portella foi exatamente uma sinalização do governo, de que de fato havia um projeto de redemocratização, a despeito do pacote de abril, que sinalizava em direção contrária e era necessário efetivamente buscar apoio político para este projeto. A solução foi ir atrás, rumo à sociedade civil e das instituições representativas desta sociedade. A OAB era a instituição que mais despontava, porque na ausência de um Ministério Público independente, a OAB fazia o papel de Ministério Público, era uma instituição que era muito representativa em um regime de exceção, e através do contato de um jornalista amigo comum do Petrônio e do Raymundo Faoro, este se dispôs à conversa.

Raymundo Faoro era um intelectual, jurista, homem correto e corajoso, por isto é que ele conseguiu talvez ajudar tanto, pois ele era tão respeitado ao ponto que um ditador do porte do Ernesto Geisel o recebeu e ele falou o que tinha que falar, ele cobrou o que tinha que cobrar e deve ter tido um peso enorme. É importante perceber, que tanto Petrônio Portella como Raymundo Faoro, expressavam a voz das ruas; o senador Petrônio Portella falava em nome dos eleitores e Raymundo Faoro, presidente da OAB, falava em nome da sociedade civil.

Coincidiu também com a vontade do governo então vigente de começar um diálogo para a possível liberdade ou abertura política. Quando o Petrônio Portella, então Ministro da Justiça, procurou o diálogo com a oposição, a quem ele iria procurar? Ele não iria procurar os políticos da oposição, logo ele procurou a Ordem dos Advogados e teve a sorte de encontrar do outro lado Raymundo Faoro, a ponte que lhe leva ao diálogo e, a partir desse diálogo, é que nasce a possibilidade da Lei de Anistia, que era negociada com Petrônio e este negociava com a ditadura.

Wilson do Egito Coelho foi quem convenceu o Petrônio Portella a aproximar o Raymundo Faoro, presidente do Conselho federal da Ordem dos Advogados do Brasil, do presidente Ernesto Geisel. Aparentemente parece uma coisa fácil, talvez hoje isto fosse uma coisa fácil dentro desta interlocução dentro dos interesses políticos e democráticos, mas naquela época isto era uma coisa intransponível. Houve uma conjuntura política, organizada, para que o presidente da Ordem chegasse lá, porque senão ele não recebia, nem com audiência, nem com pedido, nem nada, teria que haver um trabalho político como o que foi feito.

Raymundo nunca pretendeu ser nada além daquilo que ele era, então isto fez com que ele fosse o melhor interlocutor. O ministro Petrônio Portella era um homem bastante realista, mas apesar desse realismo, lutou contra a maré algumas vezes, inclusive neste episódio da abertura. Ele queria mudar a realidade. Ele estava certo que com a compressão mesmo depois da abertura, poderia levar o país a um impasse e, eventualmente, a uma catástrofe. A luta e o intercâmbio entre interesses, o intercambiar desses interesses e também a contraposição desses interesses, tudo faz parte do jogo democrático, que marca e caracteriza uma sociedade livre e plural.

Havia também depois de 1964 a prisão que não admitia habeas corpus também, que fora suprimido por matéria política e quem derrubou isso permitia a tortura nos quartéis, nas prisões. Foi o Presidente da Ordem, Raymundo Faoro, advogado notável, quem acabou com a tortura no país. Enquanto todos os advogados pediam pela Anistia e por uma Assembleia Nacional Constituinte, ele dizia que antes de qualquer coisa, se não fosse restabelecido o habeas corpus, não haveria conversa, afinal a Ordem precisa de um sinal concreto para continuar essas negociações para a anistia e, ao final, a Assembleia Constituinte. Dir-se-ia que ele foi determinante para o projeto de habeas corpus. Em relação ao projeto de anistia, o processo foi mais introvertido, porque era necessário convencer os diversos setores fora do Palácio do Planalto, que sabia o que queria, mas que seria necessário de fato convencer os setores das forças armadas e também alguns setores da Arena, que eram bastante linha dura.[19]

Certamente, a forma como ele dirigiu-se ao Presidente Geisel, de forma contundente, firme, como dois gaúchos se entendendo, uma pergunta firme com outra resposta mais firme ainda, deve ter calado fundo o presidente, porque de fato, a suspensão do habeas corpus não pode ter acolhida em um Estado de Direito.

Comentava-se, entre os advogados, que felizmente se tinha Faoro como presidente certo, na hora certa. Como dizia Ortega y Gasset, foi o homem e sua circunstância, que foi favorável para o esforço no início de abertura do regime, com o presidente Geisel uma figura mais aberta e figura chave nesse processo que foi o senador Petrônio Portella. Mas aqui o homem e a hora é uma só, quando a história é feita e o homem a faz, e o Faoro fez a história.

Aldo Arantes acrescenta nesses  diálogos sobre a democracia, produzido pelo Centro de Memória da OAB, que quando houve julgamento na segunda auditoria militar em São Paulo,  aqueles presos no massacre da Lapa, foram prestados depoimentos e ele, juntamente Haroldo Lima, como parte do depoimento, apresentaram cartas de denúncia da tortura e  posteriormente, sua esposa, Maria Auxiliadora e seu advogado Luis Eduardo Greenhalgh estiveram com o presidente da OAB Raymundo Faoro, sendo recebidos exatamente pela dona Lyda Monteiro, que um ano depois fora assassinada com uma bomba por terroristas que representavam os interesses repressivos e a ação política da ditadura militar, e  Raymundo Faoro decidiu encaminhar a carta para publicar no jornal o Globo, que publicou, sendo certamente a primeira carta de denúncia de tortura publicada na imprensa, porque havia ali um início de abertura. Posteriormente, Rogério Marinho se dirige por telefonema a Raymundo Faoro dizendo que os militares estavam com a disposição de emitir uma nota de protesto contra a publicação e ele então perguntava-se quanto ao que fazer, foi quando o presidente da OAB  falou  para dizer que ele era o responsável, dizendo novamente para fazer, que ele queria ser julgado por aquilo. Então isto demonstra uma atitude corajosa, uma atitude combativa de Raymundo Faoro, em  não temer as consequências da repressão.[20]

Nesses diálogos entre juristas, editados pela OAB, destaca-se a figura de Raymundo Faoro como uma pessoa que honrou muito a advocacia brasileira, gente do bem, um protagonista da história, um lutador pela democracia, juridicamente se mostrou um homem preparado, um homem de ação rápida, lúcido e visionário, um grande brasileiro, ou como ele mesmo costumava dizer de si: “meramente um advogado, tolamente um advogado e talvez do velho estilo.”[21]

VITÓRIA DA RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA

A sociedade começou a pressionar o Estado Autoritário para promover eleições diretas para presidente da república, ao longo de 1983, no movimento conhecido como Diretas Já! Em 1985 o Congresso Nacional aprovou que deputados federais e senadores da república eleitos, ou em curso de mandato, passariam a integrar a Assembléia Nacional Constituinte na eleição de 1986. Esta  funcionou de 1987 até quase ao final de 1988, com ampla discussão, que resultou no Texto Constitucional, mais democrático e mais voltado aos interesses dos menos favorecidos, sem desprezar a economia de mercado, sendo desta maneira que em 4 de outubro de 1988, foi aprovada a nova Constituição Federal, chamada Constituição Cidadã, que ainda previa um plebiscito em 1993 sobre a forma  de estado, se república ou monarquia, além da forma de governo, se presidencialista ou parlamentarista, quando se votou para se manter tudo igual.

O Brasil passou por muitas transformações na sua base social depois da Constituição de 1988, da mesma forma houve um ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal na busca de revelar a essência das normas constitucionais. Os princípios constitucionais edificam o Estado de Direito, isso quer dizer que, quando se aplicam, tais princípios visam ao ideal de justiça material. Esses princípios decorrem da razão do Estado democrático para realizar, segundo o direito, o seu ideal de justiça material.[22]

A democracia é uma construção de valores permanente, como a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a dignidade humana. Antes de tudo, os direitos humanos. Suporta a convivência dos contrários, do conflito, mas não admite o confronto, sem a eliminação à violência.

Dentro desse processo de mudança social, o Brasil está conhecendo novas formas de questionamento da democracia, seja negando, seja aprofundando. Se há, de um lado, maiores facilidades no acesso aos bens materiais e escassa melhoria na distribuição de renda à sociedade, de outro lado, fica evidente a crise cultural de valores da sociedade e crise na organização institucional do Estado.

Grassam conflitos entre os Poderes instituídos e agentes públicos, o alargamento da violência em todos os sentidos e os riscos a que está submetida cada pessoa ou grupo social. Parece-nos que perdemos a noção de “responsabilidade social” e a clareza dos valores morais, onde só há uma pauta forte de reivindicações de direitos e de poucos deveres, de pessimismo exagerado, que nos lembra se estamos diante de um problema político-cultural não resolvido: civilização.

A questão democrática no Brasil geralmente é analisada apenas quando aparece sua negação mediante discursos de ódio ou quando aparece o elemento “violência” e com incidentes gravosos contra pessoas e danos de bens públicos e privados. Estes protestos no interior dos movimentos sociais (direito de resistência), ao mesmo tempo, em que apresentam um revigoramento do sistema democrático plural, apresentam, em paralelo, outro problema insolúvel: o uso da democracia para a sua própria negação. Nenhum partido ou associação consegue garantir a democracia, mas sim, se essa se incorporar como valor social de todos e não apenas de jogo das elites.

Viver sem utopia é viver pela metade, como parece que estamos vivendo. Esta crise toda nos atinge em cheio, seja na mente ou no coração. Não existe caso conhecido de democracia pronta, pois se o desânimo triunfar, se desinteressarmos da política, a bandidagem vai triunfar, aliada à política demagógica, isto tudo representando um risco real. [23]

Nesses tempos em que a democracia liberal está sendo questionada pelos governantes de plantão e que se arvoram de suposta legitimidade de discurso autoritário como solução para as grandes questões nacionais, é justo recordar e homenagear quem no passado lutaram para a restauração democrática no Brasil, como os juristas de nomeada: Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho, lapidados nos bancos universitários da antiga Faculdade Nacional de Direito (FND), como bem relatado pelo colega de turma Fernando Arruda, que foi Procurador do Estado do Rio de Janeiro.

Por último, aproveitamos aqui para render homenagens não apenas para os protagonistas desta história,  mas a todos que de alguma forma lutaram ou ainda lutam por um Estado Democrático de Justiça, e, também, à Faculdade Nacional de Direito (FND) pelos seus 130 anos  e por ter produzido em seus bancos escolares advogados e políticos da altura de Petrônio Portella Nunes e Wilson do Egito Coelho, que tiveram perfis assemelhados nas carreiras profissionais e os mesmos sentimentos de amor pelo Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Fernando. Tempos de FND. (texto mimeografado e enviado por Raymundo Diniz

Filho à Tulio Freitas do Egito Coelho, filho de Wilson do Egito Coelho).

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ata de sessão do Supremo Tribunal Federal, 2 de agosto de 1986.

BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Ata de sessão da Câmara dos Deputados, 27 de agosto de 1986.

OAB/CF. Vídeo: Raymundo Faoro – Diálogo Pela Democracia. https://www.youtube.com/watch?v=gfgb4knxJXQ

BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional. 4ª. ed. Curitiba: Juruá, 2019.

COSTA, Nelson Nery. História piauiense: aventura, sonho e cultura. Teresina: editora Piauí Agora, 2020.

ROCHA, Cármem Lúcia A. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994,

ZOZIMO, Tavares. Petrônio Portella. Grandes Vultos que honraram o Senado. vol. 7. Brasília: Senado Federal, 2010.

Notas:

[1] Advogado do Escritório Bolgenhagen & Buzanello. Formado em Direito pela FND (Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

[2] Doutor em Direito e Advogado. Formado em Direito pela FND (Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da UNIRIO.

[3] ARRUDA, Fernando. Tempos de FND. (texto mimeografado, s/d, p.1).

[4] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.1.

[5] ARRUDA, Fernando.  Op.cit. p.2.

[6] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.2.

[7] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.3.

[8] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.3.

[9] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.4.

[10] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.4.

[11] ARRUDA, Fernando. Op.cit. p.6.

[12] ZÓZIMO, Tavares. Petrônio Portella. Grandes Vultos que honraram o Senado. vol. 7. Brasília: Senado Federal, 2010. p. 218.

[13]   BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ata de sessão do Supremo Tribunal Federal, 2 de agosto de 1986,  p. 342.

[14]   BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ata de sessão do Supremo Tribunal Federal, 2 de agosto de 1986,  p. 345.

[15]   BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ata de sessão do Supremo Tribunal Federal, 2 de agosto de 1986,  p. 345.

[16]   BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ata de sessão do Supremo Tribunal Federal, 2 de agosto de 1986,  p. 346.

[17]   BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Ata de sessão da Câmara dos Deputados, 27 de agosto de 1986, p.12.

[18]   OAB/CF. Vídeo: Raymundo Faoro – Diálogo Pela Democracia.

[19]   OAB/CF. Vídeo: Raymundo Faoro – Diálogo Pela Democracia.

[20]   OAB/CF. Vídeo: Raymundo Faoro – Diálogo Pela Democracia.

[21]   OAB/CF. Vídeo: Raymundo Faoro – Diálogo Pela Democracia.

[22]   ROCHA, Cármem Lúcia A. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 28.

[23]   BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional. 4ª. ed. Curitiba: Juruá, 2019, p. 366

Palavras Chaves

Petrônio Portella Nunes. Wilson do Egito Coelho. Faculdade Nacional de Direito. Fernando Arruda. Raymundo Faoro. Redemocratização.