PREFÁCIO – COLETANÊA CVENB – 57º SUBSEÇÃO OAB – BARRA – RJ COMISSÃO DA VERDADE DA ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL

PREFÁCIO


A generosidade da Drª Elisabeth Baraúna ao me convidar para este Prefácio, só não é maior que sua entrega às causas que abraça no fazer profissional e político, aqui entendido na mais larga acepção, ante sua ativa participação em diversos coletivos, destaque à Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, da Subseção da Barra da Tijuca, da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Seção do Rio de Janeiro.

Ao assumir encargo por demais honroso, impossível não me voltar ao tempo em que integrei a primeira composição da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, no âmbito do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, sendo certo que tal proposição gerou a criação de comissões com igual propósito por todo o sistema da OAB, e o livro organizado pela Drª Elisabeth é um bem-acabado produto dessa empreitada, a partir da unidade entre integrantes da CVENB Barra da Tijuca/RJ.

Sobre o trabalho, talvez pioneiro entre as Comissões CVENB, sobressaem a qualidade das pesquisas, amplitude das abordagens, e mais, as referências bibliográficas permitem o aprofundamento e a busca de mais elementos sobre múltiplos aspectos e enfoques trazidos sobre as complexas relações raciais de um país que se fez à custa da escravização negra, por cerca de quatro séculos!

A persistência das desigualdades econômicas, culturais, sociais e de poder do país, se assenta na organização racial da sociedade, que sustenta um Estado gestado para manter privilégios em favor da branquitude dominante, e o faz à margem do estatuto constitucional firmado pela Assembleia Nacional Constituinte, com a chamada Constituição Cidadã de 1988.

De fato, em que pese a consagração da dignidade humana como princípio fundante da República Federativa do Brasil, nossa realidade demonstra, à exaustão, que não há qualquer compromisso político em imprimir efetividade às promessas de cidadania, bem-estar, para 56% de sua população, salvo recentes políticas afirmativas arrancadas pela mobilização do movimento negro!

A obra coletiva que a CVENB Barra da Tijuca/RJ nos apresenta, faz um sólido apanhado dessa realidade que revela a sistemática ação de uma sociedade radicalmente racista, apegada aos privilégios sustentados por uma ordem pública, estatal, dominada por representação minoritária de uma elite intrinsecamente autoritária.

Desse modo, o projeto substantivo, inclusivo, apregoado pela Constituição Federal, não passa de uma promessa com a qual os Poderes da República não se comprometeram em conferir tradução objetiva, na partilha das riquezas e exercício do poder, distante, portanto, da gestão da vida nacional com as presenças de todas e todos, mulheres e homens, “…sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, como assentado no inciso IV do artigo 3º da Carta Magna, ao erigir os objetivos fundamentais do país.

Ao esquadrinhar o Brasil real, a obra da CVENB Barra da Tijuca/RJ transita por densa análise de corte marxista para apreciar algumas nuances sobre o mundo do trabalho, com os cruéis impactos das reformas trabalhistas que precarizaram enormemente relações de trabalho que não se marcavam pela dignidade de trabalhadoras e trabalhadores, notadamente negros. Não por acaso, o país convive com elevados índices de trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, sendo certo que é, majoritariamente negra, esta força de trabalho que experimente as modernas formas de escravização humana.

Noutra faceta, de igual relevância, temos uma provocativa discussão hermenêutica que legitimamente confronta marcos interpretativos do direito marcadamente excludentes, e como tal, a serviço de uma modelagem jurídica incriminadora da existência negra.

Ante o referencial de que o racismo no Brasil é estrutural, o trabalho envereda pela gênese da organização escravocrata, para também trazer luzes sobre o racismo ambiental, que crescentemente vítima populações quilombolas e mesmo grandes contingentes humanos periféricos das cidades de todo porte, numa crônica anunciada de desastres sociais que os extremos climáticos somente farão mais recorrentes e graves.

Essa percepção mais recente de manifestação do racismo ganha cada vez mais ressonância social e o vanguardismo do projeto expressa bem sua atualização com o debate emergente; os textos dão bem a dimensão do problema.

Paralelamente, interessante sistematização do iter normativo da escravidão desde o Império, oferece rico panorama sobre as lutas sociais que permearam a resistência à opressão em todo o período escravagista, mais as disputas econômicas sobre o tráfico negro para o regime, numa síntese pedagógica, bastante ilustrativa.

Sendo certo que o patriarcalismo, aliado ao racismo, impõe sobre as mulheres negras recortes especialmente sofridos de elevação dos níveis de exploração, naturalmente a reflexão que parte do conceito da necropolítica, encontra espaço próprio, e até pelo projeto genocida que estraçalha famílias negras, não raras vezes chefiadas por mulheres, há que ser realçada também a violência direta contra os corpos negros femininos – o feminicídio nos alcança com maior voracidade.

Em plena sintonia com o debate essencialmente feminista que traz à cena a questão tributária como fato indutor, fortalecedor de desigualdades de gênero,  também aqui o entrelaçamento patriarcal com a crueza operada pelo racismo, gera inevitáveis distorções e injustiças tributárias e o inovador estudo traz importante releitura histórica sobre ramo do direito que é verdadeiro nicho branco – o direito tributário.

Ante a essencialidade da presença negra na construção do Brasil, em que pese a conjugação das forças políticas dominantes para nos oprimir, excluir, subjugar, fato é que a República Federativa do Brasil não possui identidade nacional que não se confronte com a marca da negritude, quer na produção da economia, quer nas artes e na estética forjada pelas mulheres negras que jamais se furtaram à insurgência, à assertividade dos ideais libertários de Dandara, Luiza Mahin, Maria Felipa e tantas outras que seguem nos iluminando, nos inspirando.

E não por acaso, certamente, esse livro que nos oferece uma multiplicidade de olhares, saberes, com acurada sensibilidade nas escritas firmes e tão reveladoras da intelectualidade negra que desponta numa articulação sólida entre a pesquisa acadêmica e o fazer político ativo, teve a coordenação de uma mulher.

Sem pretensão de exaurimento sobre qualquer um dos temas que compõe a obra, só posso renovar o sentimento de gratidão por saudar o lançamento de tão relevante trabalho!

Vera Lúcia Santana Araújo, Ministra Substituta do Tribunal Superior Eleitoral