ESPAÇO DE DISCUSSÃO 07: MUNDO DO TRABALHO, MOVIMENTO SINDICAL E DIREITOS

  

Artigo


 O papel do Judiciário na garantia do sofrimento e exploração da classe trabalhadora

The role of judiciary system in guaranteeing the suffering and exploitation of the working class

Janaína dos Santos Araújo

Resumo: O objetivo do presente trabalho está em apresentar a pesquisa que se encontra em curso no programa de pós-graduação em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Buscar-se-á verificar o papel exercido pelo sistema judicial na manutenção e/ou legitimação da precarização do trabalho nas ações trabalhistas tendo como parte ré as empresas de telemarketing. A opção por tal setor econômico deriva de diversos estudos que apontam para o alto grau de precarização, com relações marcadas pelo assédio e pelas diversas práticas abusivas que atingem e violam a integridade psíquica e física de seus trabalhadores, conforme demonstram os trabalhos de Dejours (1992), Antunes (2006), Dutra (2014) e Braga (2014). Objetiva-se verificar as narrativas do Poder Judiciário diante das ações em que o conflito se dá na tentativa de reconhecimento da prática abusiva no ambiente de trabalho por parte do setor patronal. Assim, este trabalho tem como proposta contribuir para a compreensão da atuação do judiciário trabalhista frente ao conflito capital versus trabalho, tendo como marco os avanços da gestão neoliberal no processo global de desregulamentação do trabalho, reconhecendo-se que o sistema de justiça possui uma limitada atuação no enfrentamento aos abusos do capital, exercendo uma “função corretiva” nos termos dados para a manutenção da satisfação do capital.

Palavras-Chave: capitalismo neoliberal; precarização do trabalho; sistema judicial.

Abstract: The aim of the present article is to share a research in progress at pos-graduation program of Law School of Juiz de Fora. The research attemps to show how the justice system works to mantain or legitimate the labor precarization situation in work class actions which telemarketing companies are suited. The option for the telemarketing sector justifies because this sector has a high level of precarization, relations based in harassment and various abusive manners that hit and violates the physical integritude and mental health of this works, which this following authors studies: Dejours (1992), Antunes(2006), Dutra (2014), and Braga(2014). The objective is to verify the narratives of the Judiciary Power in face of the cases in which the conflicts occurs in the attempt to recognize the abusive practices in work environment lead by the employers. Thus this paper proposes itself to contribute for the understanding of the activity of the labor judiciary system facing the conflict between labor and capital, taking as premise the advance of neoliberal management in the global process of labor deregulation, recognizing that the legal system has a limited activity in the struggle against capital abuses, performing a “corrective function” on the given terms for the conservation of capital satisfaction.

Keywords: neoliberal capitalism; precarization of labor; judicial system.

1. Introdução

O anseio em seguir com a precarização do trabalho humano move o desmantelamento da legislação trabalhista que acaba por conter em seus dispositivos normas que longe de serem capazes de “corrigir” os abusos do capital acabam por legitimar e chancelar a sua violência sobre a classe trabalhadora. E é no avanço da mundialização da gestão do capital neoliberal que a precarização do trabalho se amplia.
É o caso, por exemplo, da recém-aprovada legislação que intentou pôr fim à maior discussão trabalhista, no campo jurídico, dos últimos tempos: a terceirização de serviços na atividade-fim das empresas. Trata-se da efetivação de uma alteração na leitura judicial sobre a (i) licitude desse modelo de negócio que, de certa forma, pressupõe um “pacote” de abusos a serem praticados e é em decorrência dele que se constroem resultados positivos. Através do “combo” – precarização mais individualismo – nascem e se sustentam centros terceirizados de negócios rentáveis, como os de serviços de telemarketing/teleatendimento.

Reconhece-se que os desdobramentos da leitura judicial sobre determinadas práticas empresariais, como é o caso da terceirização de serviços, por vezes caminharam no sentido de se aumentar a proteção jurídica aos trabalhadores, muito embora a derrota recente de uma jurisprudência trabalhista consolidada nessa linha nos revele que a conjuntura em que estamos inseridos segue cada vez mais preocupante do ponto de vista da proteção ao trabalho.
Nesse sentido, intentamos ressaltar um dilema para o campo jurídico: os avanços na proteção do trabalho nos trouxeram a uma estranha realidade, aquela que, ainda que reconheça a ilicitude das práticas abusivas no trabalho, ao dar por solucionado um conflito, acaba por somente precificar o abuso. Isto é, no capitalismo, a dignidade de um trabalhador também possui um preço. E no discurso jurídico, quitado o preço, reparada está a ordem. Cabe indagar: devemos nós nos sentirmos também “reparados”? Ou a banalização do injusto apenas evidencia o desamparo popular numa sociedade marcada pelo individualismo exacerbado?

São nesses momentos de pressão contra o mínimo ainda assegurado aos trabalhadores que podemos enxergar nitidamente como “o conteúdo prático de uma lei é sempre resultado de uma luta simbólica” (BOURDIEU, 1989).
O alcance da interpretação judicial revela-se limitado e, apesar do vangloriado princípio da proteção, o Judiciário Trabalhista não é capaz de pacificar os conflitos entre capital e trabalho. Sua atuação está restrita pelo papel que verdadeiramente exerce diante da intensificação da exploração. As respostas obtidas “em Juízo” sequer tocam profundamente nos problemas sociais subjacentes às teorias e construção jurisprudencial. Em outras palavras, a despeito da atuação “reparatória” diante de condições consideradas inadequadas, não há possibilidade, dentro dessa lógica, de uma solução jurídica que satisfaça aos trabalhadores lesados pela reiterada exploração de sua força de trabalho.
A demonstração do porquê dessa impossibilidade logicamente precisa ser extraída dos resultados mapeados da leitura judicial sobre o tema. Mas o que é possível falar em termos de suposição é que a nossa sociedade está fundada sob alicerces de “compensação pelo mal sofrido”. Aceita-se o mal causado como eventualmente necessário e busca-se juridicamente formas de torna-lo mais aceitável. Vale dizer, o compromisso das “soluções jurídicas” passa mais pela vontade de “fechar” as arestas do sistema do que garantir a realização de princípios de justiça social.
A proposta deste trabalho é contribuir para a compreensão da atuação do judiciário trabalhista frente ao conflito capital versus trabalho no recorte realizado no setor de serviços de teleatendimento em Juiz de Fora – MG, mais especificamente sobre a leitura realizada acerca das ilicitudes que decorrem da precarização das condições de trabalho, tendo por objeto de investigação o perfil das decisões judiciais produzidas em primeira instância.
Interessa-nos desvelar o papel que a justiça trabalhista exerce, através das decisões de seus intérpretes que intentam pôr fim ao embate jurídico, identificando a maneira pela qual se produz a leitura do conteúdo da intensificação da exploração e do sofrimento no trabalho imposto sobre seu suporte subjetivo, seu elemento vivo, quer dizer, o corpo e a psiquê do trabalhador, no contexto neoliberal de reprodução do capital.
Consideramos que vivenciamos um cenário de exploração inescapável, no qual se forma o elo entre trabalho e adoecimento da classe trabalhadora, facilitado pela estrutura organizacional voltada para o assédio moral, consubstanciado em práticas lesivas à integridade psíquica, tais como: a cobrança exacerbada de metas; o excessivo controle; a humilhação; exposição vexatória; as ameaças punitivas; enfim, o terror psicológico. São situações cotidianas que reduzem a condição humana ao inaceitável, porque retiram sua dignidade e exigem respeito e subordinação ao poder diretivo do empregador em tal contexto.

2. Referencial teórico

Conforme demonstram os trabalhos de Dejours (1992), Antunes (2006), Dutra (2014) e Braga (2014), as estruturas das empresas de telemarketing são marcadas pelo assédio e pelas diversas práticas abusivas que atingem e violam a integridade psíquica e física de seus trabalhadores.
A questão da precarização do trabalho do teleoperador se torna ainda mais gritante quando consideramos o fato de que a maioria das empresas que subcontratam o telemarketing acabam por transferir os riscos da atividade econômica diretamente à saúde do trabalhador terceirizado. Isto porque tais empresas, em especial as do ramo de Telefonia/Telecomunicações e Financeiras, figuram no topo das reclamações de consumidores pela péssima qualidade dos serviços prestados e como consequência despejam toda sua ineficácia produtiva nos Serviços de Atendimento ao Consumidor.
Em seus Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004) nos diz que o trabalho no sistema capitalista é tido como auto sacrifício e representa uma “perda de si mesmo”, de modo que o trabalhador só consegue ser “livre” nos momentos em que age como animal (come, bebe, habita, procria) – isso como finalidades últimas. E quando está exercendo seu trabalho é tratado também como animal, visto que sua energia própria (posta à venda no mercado) revela-se como atividade voltada contra ele mesmo, não pertencente a ele. Com o trabalho estranhado, a essência (a atividade vital consciente que no ser humano é genérica, não determinada, livre) se torna meio para a existência (MARX, 2004), eliminando assim a vantagem humana sobre o animal. Como consequência, tem-se o estranhamento do ser humano pelo ser humano, pois cada ser genérico está estranhado de sua essência.

Nessa seara, Christopher Dejours demonstra e salienta que o sofrimento no trabalho por vezes surge “do contato forçado com uma tarefa desinteressante” (DEJOURS, 1992, p. 15) dando origem a uma imagem de indignidade no trabalhador. Essa sensação de indignidade pode levar o trabalhador, por exemplo, a “esconder” dos outros com os quais mantém um convívio social o verdadeiro conteúdo do seu trabalho (DEJOURS, 1992). Dentre os efeitos específicos da organização do trabalho sobre a vida mental dos trabalhadores, resulta uma ansiedade particular partilhada por uma grande parte da população laboral: é o sentimento de esclerose mental, de paralisia da imaginação, de regressão intelectual. De certo modo, de despersonalização (DEJOURS, 1992, p.78).

Como anunciado por Marx, as constatações de Dejours apontam para que “o operário da linha de produção como o escriturário de um serviço de contabilidade muitas vezes não conhece a própria significação do seu trabalho em relação ao conjunto da atividade da empresa” (DEJOURS, 1992, p. 49).

Todavia, como expressão da contradição inerente ao domínio do capital, na medida em que a vida do trabalhador se constitui mercadoria (como qualquer outro insumo produtivo), a sua manutenção torna-se necessária ao capitalismo, predispondo-o a alimentar e conservar essa existência do trabalhador, que afinal é quem produz o próprio capital (MARX, 2004). Mas apenas nessa medida de “custo necessário” é que o capital remunera o trabalho com um salário, como “o óleo que se põe na roda para mantê-la em movimento” (MARX, 2004, p. 92).

Assim, os salários, as jornadas, as pausas, a alimentação, as cobranças, o assédio, todos esses elementos são balizados para atender ao resultado almejado pelo empresariado: lucro. A combinação ideal desses elementos de organização e gestão do trabalho pelas empresas reflete uma busca pela minoração dos custos e manutenção do trabalho. A taxa mínima de manutenção do trabalho em geral é sempre um “sacrifício do capital” (Marx, 2004, p. 97). Por isso, em matéria de precarização, o céu (para o capital) e o inferno (para o trabalhador) é o limite.
O combate efetivo do avanço desse tipo de exploração encontra como obstáculo o impasse que vivenciamos na atualidade com o enfraquecimento sindical, levando em conta seu papel histórico, o que nos coloca em estado de alerta sobre a capacidade de construirmos coletivamente as lutas da atualidade nesses ou em outros espaços.

Para Antunes (2006), essa desconstrução/desmonte é fruto do atual estágio do capitalismo dito “mundializado”, financeirizado. Na nova lógica de controle, os sindicatos são cada vez mais pressionados ao enfraquecimento e distanciamento da classe trabalhadora seja pela redução de sua fonte de recursos, seja pela pulverização decorrente do intenso processo de terceirização, seja pela atribuição de maior poder às centrais sindicais em detrimento dos locais/base (ANTUNES, 2006).

A situação torna-se mais alarmante quando vivenciamos uma época em que a construção de uma identidade coletiva está minada graças à

ampliação da utilização de trabalhadores temporários, de mecanismos de triangulação de empregos e de trabalhadores autônomos ou falsamente autônomos traz para o conjunto da atividade empresarial e para o mundo do trabalho indivíduos passageiros e desenraizados daquela coletividade (JEAMMAUD APUD COUTINHO, 2008, p. 116).

Num contexto de não concessões, o capital explora as “oportunidades de mercado” como a mão de obra barata, desprotegida e fragilizada. Embora aparentemente todos os mecanismos de efetivação dos direitos a um ambiente salutar de trabalho estejam disponíveis e possam ser utilizados como forma de se exigir das empresas inseridas na ótica neoliberal uma postura distinta, não há um abalo no modus operandi de tais empreendimentos.

A relação intrínseca entre a expropriação e apropriação do trabalho excedente e o comando das determinações regulatórias é descortinada por Mészáros que nos mostra que, desde a “escravidão e servidão feudal até a escravidão assalariada capitalista” (MÉSZÁROS, 2015, p. 102), os órgãos regulatórios do Estado tiveram de se articular em torno dessa forma exploratória do tempo de vida. Porém, o impulso do sistema do capital em direção a uma integração global ilusória transforma o Estado, que outrora se constituiu como mecanismo de correção temporária, em elemento impotente para lidar com a “centrifugalidade catastrófica” do sistema que agora clama por um corretivo global que o mantenha.

Esse “corretivo”, em matéria de direitos sociais do trabalho, como determinação regulatória parte diretamente do Fundo Monetário Internacional (FMI), que literalmente dita a política neoliberal a ser implementada em países como o Brasil, endividados e submetidos ao capital especulativo, que sofrem imensa pressão em prol da desregulamentação do direito do trabalho – só um. Comentário: não esquecer que nossa classe trabalhadora sempre se fudeu muito e não teve estado que atenuasse sua exploração.
A esta situação de desregulamentação combina-se um sistema de ultra exploração do trabalho, a que Ruy Braga percebe sob o conceito de “precariado”, utilizado para designar o proletariado precarizado, isto é, aquela fração da classe trabalhadora desqualificada ou semiqualificada e submetida a altas taxas de rotatividade do trabalho. Além disso, devemos acrescentar os jovens trabalhadores à procura do primeiro emprego, indivíduos que estão na informalidade e desejam alcançar o emprego formal, além de trabalhadores sub remunerados (no caso brasileiro, aqueles que recebem até um salário mínimo e meio, aproximadamente, 260,00 €) e inseridos em condições degradantes de trabalho. […] Em suma, o precariado é formado pelo setor da classe trabalhadora, pressionado pelo aumento da exploração econômica e pela ameaça da exclusão social (BRAGA, 2014, p. 7).

Questiona-se se as decisões judiciais acabariam por reforçar a ideia de normalidade do estresse, pressão, cobranças mais acirradas que compõem o ambiente de trabalho nas centrais de atendimento, enxergando como banal os estresses, os sofrimentos pessoais vivenciados pelos trabalhadores do setor. Qual imagem o intérprete produz do trabalhador? Como entende e traduz o sofrimento provocado pelo trabalho?

Baldez (1989) discute o papel do Processo no contexto dos conflitos submetidos à análise do Estado e nos mostra como sua origem está enraizada numa ficção jurídica, nesse processo de abstração das regras jurídicas, descoladas do contextos social. E aqui é importante compreender que esse mecanismo não é de forma alguma uma opção neutra, mas antes uma estratégia dotada de uma perversidade grotesca que, ao presumir a igualdade de sujeitos processuais abstraindo assim os sujeitos de suas características de classe (BALDEZ, 1989, p. 4), objetiva evitar adentrar na discussão das razões de ser da técnica que então se legitima pelo simples fato de compor o campo jurídico.

Se revisitarmos aqui o pensamento sustentado por Bourdieu (1989) acerca da pretensão de universalização de sentido sobre a qual se apoia a ideologia que permeia o campo jurídico, compreenderemos o quão útil se mostra essa recorrência à técnica processual, sustentada numa presunção fictícia de equidade, pois a mesma se revela como mecanismo de dominação e manutenção da ordem social diante dos olhos que buscam enxergar as entrelinhas camufladas do discurso jurídico.

Esse processo de abstração discutido por Baldez também é encontrado nos estudos de Bourdieu (1989) que se dedica à compreensão de como os profanos e os profissionais ocupam posições muito bem delimitadas no campo jurídico, sendo que os indivíduos ao ingressarem neste campo abrem mão de outras formas de solução de seus conflitos para reconhecer, ainda que tacitamente, a legitimidade do Judiciário para se dizer o direito.
Em resumo, a transformação dos conflitos inconciliáveis de interesses em permutas reguladas de argumentos racionais entre sujeitos iguais está inscrita na própria existência de um pessoal especializado, independente dos grupos sociais em conflito e encarregado de organizar, segundo formas codificadas, a manifestação pública dos conflitos sociais e de lhes dar soluções socialmente reconhecidas como imparciais, pois que são definidas segundo as regras formais e logicamente coerentes de uma doutrina percebida como independente dos antagonismos imediatos (BOURDIEU, 1989, p. 228).

Nesse sentido, nos parece que combater a ideologia prevalecente no discurso da classe dominante exige não só a compreensão das limitações do campo jurídico enquanto expressão da luta de classes, mas também a percepção da força do Direito como forma de manutenção ou transformação da ordem social.

3. Metodologia

Realiza-se, assim, um estudo que volta sua atenção a tradução desse processo de exploração pelo campo jurídico, propondo uma análise do papel paradoxal do Direito dentro da ordem burguesa.
Para tanto, buscou-se traçar um panorama sobre a atual situação dos conflitos com o levantamento de dados junto ao sistema do TRT-MG. As decisões dos últimos 2 anos são base para a análise das condições judicializadas e das respostas obtidas. Ao todo, foram levantados 1116 processos tendo uma empresa como ré (Almaviva), tendo sido esta eleita, para além de ter um faturamento significativo, em razão do grau de representatividade no que diz respeito ao número de funcionários, estima-se mais de 3000.

Discute-se que a combinação ideal de elementos de gestão pelas empresas reflete uma busca pela minoração dos custos e manutenção do trabalho, que resulta não só de processos internos, mas de uma pauta global em prol da desregulamentação do direito do trabalho.
A análise produzida revelou que dos 577 processos com sentenças, ao menos 535 traziam alguma discussão sobre precarização, dentre elas: alto grau de controle sobre atividade; discriminação em função da posição hierárquica; restrição de uso de banheiros; adoecimentos; período de treinamento sem registro e sem remuneração; assédio moral por cobrança e pressões por produtividade.

Chamou a atenção os resultados referentes ao período trabalhado pelos teleoperadores sem o registro na CTPS, denominado comumente de período de treinamento, que pelas narrativas processuais consiste num intervalo de pouco menos de um mês em que o “futuro funcionário” comparece ao local por cerca de 5 horas por dia 5 vezes na semana e é “apresentado” a todo o sistema de produção da empresa, realizando atendimentos teste, conhecendo produtos, valores, formas de realização da atividade.
Esse tema relacionado ao período de treinamento esteve presente na quase totalidade dos 535 resultados, acompanhando, em geral, outros temas também bastante comuns, como a restrição de uso de banheiros, a prática de assédio moral por cobrança de metas, exposições em público e pressões por produtividade no tempo e número de atendimento de clientes.
Adotamos aqui para a seleção dos casos emblemáticos o método indiciário propugnado pelo historiador italiano Carlo Ginzburg (1990). Para Ginzburg, que busca compreender o papel da prova em múltiplos formas de produção de conhecimento, é possível interrogar-se sobre tal prova, e esse processo nos permite desvelar indícios, sinais referentes ao objeto de análise. O importante no método indiciário é que ele nos permite extrair a especificidade do fenômeno ao mesmo tempo em que através dessa “especificidade” podemos ter o panorama da totalidade dos eventos.
Ao todo, foram selecionados 15 casos emblemáticos dentro do período em análise, discutindo questões acerca da organização, gestão e precarização do trabalho no setor.

4. O discurso judicial sobre o trabalho precarizado a partir de casos emblemáticos

O trabalho de análise via seleção de casos emblemáticos permitiu desvelar indícios, sinais referentes ao objeto em questão, os quais fornecem subsídios para que se formulem algumas conclusões preliminares no sentido de que as condições precárias de trabalho constituem um ilícito irremediável, pois a construção do justo no campo jurídico é limitada pela função que cumpre o Direito, que não é romper com a lógica da exploração do trabalho.

Para além disso, concluímos que a ficção da técnica processual permite que a exploração do trabalho se legitime, seja chancelada judicialmente, sob o manto de um ordenamento jurídico que se diz comprometido com a solidariedade humana e valores sociais do trabalho. Essa permissão e concretização dada pelo Direito torna ainda mais cômoda a opressão das classes dominantes e revela os limites da discussão judicial como meio de se “resolver” um tipo de conflito inconciliável.
A partir da discussão acerca das práticas de gestão que precarizam as condições de trabalho no setor e com o foco voltado para o discurso judicialmente produzido, nos ocupamos a partir daqui com a análise e discussão com respaldo no referencial teórico das decisões emblemáticas obtidas através da pesquisa de levantamento realizada.

Um elemento marcante desse contexto de exploração é a existência de um alto grau de controle sobre cada atividade desempenhada pelo trabalhador, acabando por minar a sua segurança e potencializar o sentimento de ansiedade, angústia e medo no local de trabalho. Em um caso onde se discutiu justamente a abusividade – ou não – do controle realizado no ambiente de trabalho sobre os teleoperadores, a decisão proferida assim concluiu:
Em relação à alegação de existência de câmeras e de monitoramento das atividades no computador da empresa não foram produzidas provas aptas a demonstrar que tenham sido ultrapassados os limites do poder diretivo fiscalizatório, inerente ao empregador, não sendo condutas, por si só, capazes de comprometer a privacidade da trabalhadora (processo-caso 1001).

O que a decisão não diz é que tal prática é utilizada nas empresas de teleatendimento como forma de pressionar o funcionário ao atingimento de resultados cada vez mais “apertados”, fazê-lo cumprir estritamente os tempos de atendimento, scripts de conversas com clientes com a maior produtividade possível, desconsiderando qualquer particularidade ou necessidade dos trabalhadores.

A discriminação no ambiente de trabalho em função da posição hierárquica ocupada também é marca registrada do empreendimento. Em geral, os ocupantes dos cargos de supervisão possuem a tarefa de produzir todo esse sentimento de instabilidade, marcado por cobranças abusivas, que envolvem inclusive um tratamento hostil com a equipe subordinada.
A existência dessa divisão é por vezes reforçada pela empresa ao adotar práticas sutis de diferenciação entre os tipos de trabalhadores do local, atribuindo assim “valores” distintos para funcionários de “categorias” ou “classes” distintas.

Numa análise sobre a existência de distinção de alimentação fornecida no refeitório da empresa para teleoperadores e supervisores, a decisão trouxe o seguinte:
No que se refere à alimentação diferenciada, é de conhecimento deste Juízo, diante das inúmeras outras reclamatórias versando sobre idêntica situação, que a alimentação fornecida aos operadores e supervisores da reclamada diferencia-se em quantidade e variedade de opções, o que não dá ensejo ao reconhecimento de situação discriminatória no ambiente de trabalho e, por isto, não constitui falta grave pela reclamada, valendo ressaltar que a jornada do supervisor é superior a do atendente. (processo caso 1001)

Na mesma direção, em outro caso submetido ao Judiciário:

A questão relacionada à alimentação não se traduz em ofensas morais, mormente quando não há obrigatoriedade do empregado fazer as refeições no local de trabalho e utilizando a alimentação fornecida pela ré. Também não restaram comprovadas as alegações da autora no sentido de que houve tratamento degradante ou discriminatório. Os fatos são corriqueiros no cotidiano dos trabalhadores brasileiros, e, é de se esperar do indivíduo de entendimento mediano que supere tais agruras, sem sentir-se ofendido em seus sentimentos mais íntimos. Indenização por danos morais não é devida (processo-caso 261).

Essa diferenciação que aos olhos do Judiciário não configura juridicamente a discriminação, conforme ressaltou a decisão, deve ser entendida por aquela que garante ao supervisor uma maior variedade de alimentos (como opções de carnes, saladas e sobremesas) em contraponto ao simples teleoperador que somente possui uma opção de cardápio.

A justificativa é a existência de uma jornada de 8 horas por parte do supervisor, ao passo que a jornada do teleoperador é de 6h20min, desconsiderando inclusive que a prática de horas extras pelos teleoperadores é uma realidade constante no setor. A leitura do caso pelo Judiciário, todavia, nos mostra que tal diferenciação deve ser vista como fato corriqueiro e que o ‘homem médio’ deve “superar tais agruras, sem sentir-se ofendido”.

Em um julgado, todavia, encontramos um tratamento diverso sobre o tema, o que também merece destaque.
Conforme se depreende do depoimento pessoal da preposta da reclamada, há, de fato, diferenciação na alimentação que é oferecida aos empregados. Assim se manifesta a preposta quanto ao assunto: “(…) para aqueles que trabalham em uma carga de 8h diárias, têm uma opção a mais de carne e sobremesa; no refeitório, há duas catracas distintas para aqueles que cumprem 6h ou 8h de jornada;(…)” É notório o desconforto de um empregado alimentar-se ao lado do outro, sendo que um tem direito a um pedaço de carne e o outro, a dois pedaços! (processo-caso 5)

A indenização concedida nesse processo com o fim de punir a empresa por tal prática e reparar a ordem jurídica foi, contudo, restrita a R$2.000,00. Valor ínfimo, concedido excepcionalmente para este caso e que se comparado com potencial desestabilizador e humilhante para a vida dos trabalhadores nos mostra como a ilicitude das práticas empresariais contra os empregados não são tão intoleráveis para o Judiciário.
As práticas de assédio moral por cobrança de metas e pressões por produtividade no tempo e número de atendimento de clientes em geral são praticadas com excesso de rigor e mediante humilhações, causando medo naqueles que passam pela situação vexatória e nos colegas que tomam conhecimento do ocorrido.
Para o caso abaixo, embora a prova testemunhal tenha confirmado que havia ameaças de dispensa pelo não cumprimento de metas, bem como que a autora era vista chorando em ocasiões que era chamada para conversar com o coordenador (os feedbacks individuais) e que o mesmo chegou a proferir xingamentos em público contra ela, a decisão foi de improcedência pela não comprovação de excessos, mas sim de meros aborrecimentos no ambiente de trabalho. E mais uma vez o poder diretivo triunfou sobre a exigência de se garantir um ambiente de trabalho saudável.

Indubitável que a relação de emprego, em razão da proximidade e da relação interpessoal, bem como em função do poder diretivo do empregador, acaba por propiciar um campo fértil para o surgimento do assédio moral. Pois bem. Com os olhos voltados para tais ensinamentos, passo à análise: A respeito dos fundamentos para o pedido de indenização por danos morais Ana Carolina Sodré de Oliveira afirmou: “[…] o coordenador foi até a supervisora da reclamante e lhe perguntou se a autora estava trabalhando, tendo a supervisora respondido que não; que em seguida ouviu o coordenador dizer “filha da puta”; que a depoente entendeu que o coordenador referia-se à reclamante; […] que, em várias ocasiões, viu a autora deixar a sala do coordenador chorando; que não questionou a autora sobre a razão de estar chorando e não sabe informar o que ocorreu; […] que existem cobranças quanto às metas fixadas e até ameaças de demissão por justa causa em caso de não atingimento de 60% das metas; […] que as metas são difíceis para serem atingidas, não sabendo informar se a autora conseguia batê-las; […] que outras ocasiões presenciou a autora estressada, nervosa e chorando após essas conversas; que não conhece qualquer funcionário que tenha sido demitido por não atender às metas.” […] De outro tanto, a própria testemunha afirmou que entendeu que o coordenador referiu-se à autora, mas não disse que efetivamente assim ocorreu. Estas constatações, no sentir desse julgador, fragilizaram o depoimento, fazendo emergir a insinceridade da depoente, e seu claro objetivo de favorecer à obreira. […] Registro […] que meros aborrecimentos e dissabores não são suficientes para caracterização do dano extra patrimonial. Indenização por danos morais não é devida (processo-caso 261).

As decisões, na verdade, acabam por reforçar essa ideia de normalidade do estresse, pressão, cobranças mais acirradas que compõem o ambiente de centrais de atendimento. Enxergam como banal os estresses, os sofrimentos pessoais vivenciados pelos trabalhadores do setor, porque não vislumbrar que o serviço possa ser executado de outra maneira senão mediante o pulso firme da ameaça, controle e restrição da liberdade dos trabalhadores.
Ao que parece, o poder diretivo do empregador, para o Judiciário trabalhista, engloba uma espécie de “licença para assediar”, licença que encontra determinados limites, que quando são ultrapassados geram o reconhecimento de uma indenização pacata, do tamanho da importância que o sofrimento do trabalhador tem para o Estado.

Para Christopher Dejours, em ambiente de trabalhos estressantes, “a certeza de que o nível atingido de insatisfação não pode mais diminuir marca o começo do sofrimento” (Dejours, 1992, p. 52).

No mesmo estudo, mais adiante, ao tratar do medo relacionado ao trabalho, o autor afirma que a ansiedade dos trabalhadores responde aos ritmos de trabalho, de produção, à velocidade e, através destes aspectos, ao salário, aos prêmios, às bonificações. Existe o risco real de não acompanhar o ritmo imposto e de “perder o trem” (DEJOURS, 1992, p.73), o medo, seja proveniente de ritmos de trabalho ou de riscos originários das más condições de trabalho, destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões de minério com silicose (DEJOURS, 1992, p. 74).

Com relação à restrição de uso de banheiros, tema bastante recorrente nos julgados, as decisões analisadas demonstraram que a restrição por si só em geral não é tida como abusiva. Apenas casos que aos olhos dos magistrados configuram ofensa gritante à dignidade do trabalhador são tidos como ilícitos.
O discurso, em geral, é permeado por uma ressalva que é utilizada pelo juiz como maior fundamento nos casos concretos: a amplitude do poder diretivo do empregador. Tal poder acaba por autorizar práticas que são implementadas para garantir o aumento da produção a um baixo custo, de forma que quando restringe o uso de sanitários, a empresa está exercendo efetivamente um controle exacerbado sobre a autonomia do trabalhador para realizar uma atividade mais básica do ser humano que consiste em atender às suas necessidades fisiológica.

Essa prática já foi discutida em um caso extremo que colocamos em discussão aqui apenas para ilustrar os abusos que são possíveis de ocorrer quando se chancela esse tipo de prática. No ano de 2014, período portanto fora do recorte em análise, uma trabalhadora chegou a urinar na roupa após sofrer restrição do uso de banheiros, tendo apresentado à empresa uma recomendação médica para a não restrição (o que obviamente foi ignorado) .

O mesmo episódio, que é recorrente neste setor, foi narrado em uma entrevista obtida nos estudos de Rosenfield sobre as condições dos teleoperadores.

Trecho de entrevista colhida por Cinara Rosenfield em sua pesquisa de campo: “Teve um dia que ela tava atendendo, ela tava precisando muito ir ao banheiro e ela pediu pra usar a pausa, só que tem que ligar e pedir: ‘posso fazer a minha pausa?’ E é constrangedor, tu quer ir ao banheiro e pede ‘posso fazer particular?’ ‘Mas tem fila, pra que que tu quer?’ ‘Quero ir ao banheiro’. E ela não tava aguentando, há horas que ela tava pedindo e eles não tavam liberando; e ela urinou na roupa, no trabalho, lavou o chão a cadeira, a roupa” (ROSENFIELD, 2009, p. 182 apud DUTRA, 2014, p. 94).

Quanto ao tema do uso dos banheiros, no presente estudo encontramos conclusão semelhante àquela que foi obtida no estudo realizado por Renata Queiroz Dutra (2014, p. 237), ou seja, o Judiciário atua apenas tutelando o excesso de abusos e não os denominados “meros descumprimentos contratuais” tidos como simples aborrecimentos típicos de um trabalho estressante. A autora, após analisar o discurso utilizado nas decisões do TST constatou que
a sinalização jurisprudencial que esse posicionamento denota é o que se está a denominar aqui de “tutela do excesso”. Ou seja, causar algum tipo de desconforto ao trabalhador ou até uma incapacidade temporária para o trabalho é tido como algo corriqueiro, que pode ser tolerado em nome da reprodução capitalista, desde que sejam dadas ao obreiro condições de superar essa circunstância e que não sejam detectados excessos.

O adoecer pelo trabalho, em si, sobressai dessas decisões como algo banal. O importante é que o trabalhador, numa perspectiva que instrumentaliza o ser humano (compreendendo-o como um meio e não como um fim em si mesmo), esteja, ao fim e ao cabo, novamente apto a produzir. Os excessos, entretanto, serão coibidos pela atuação regulatória do Poder Judiciário.
A opção regulatória por detrás desse argumento jurídico dá indicativos de uma postura tolerante, que punirá o capital pelos seus arroubos, deixando de dar repercussão jurídica às suas “falhas menores”, como, por exemplo, causar um adoecimento temporário ao trabalhador (DUTRA, 2014, p. 237).

Nossos resultados apontam justamente para tal interpretação.
Ademais, a testemunha, […] declara que era possível o livre acesso ao banheiro sem o limite temporal e que, acaso houvesse a extrapolação dos horários de intervalo o supervisor chamava a atenção do empregado sem que houvesse a aplicação de advertência por tal fato, o que é normal, porque a reclamada, como prestadora de serviços, precisa demonstrar eficiência para as tomadoras. Informa, ainda, referida testemunha, que era permitido manter uma garrafa de água na mesa de trabalho. Eis as palavras da testemunha: “(…) que a reclamada concedia intervalo de 01 h para almoço e duas pausas de 10 min para descanso, além de 01 pausa “pessoal” de 05 minutos, específica para ir ao banheiro e para buscar água; […] que sempre que o depoente ultrapassava os 05 min, o supervisor lhe chamava a atenção, mas nunca lhe aplicou advertência por tal fato; […] que o reclamante teve uma infecção e precisou ir várias vezes ao banheiro; que o problema era de ciência do supervisor; que ainda assim, o supervisor a chegou a falar com o reclamante que sua pausa havia ultrapassado os 05 min; que fora a ameaça de advertência, nunca houve punição por tal fato;(…)”. A questão deve ser aferida no contexto da busca do equilíbrio entre o atendimento das necessidades fisiológicas do empregado e o alcance das metas previstas, não restando comprovado nos autos que tenha havido abuso da parte ré quanto à limitação do uso do banheiro de forma excessiva (Processo-caso 105).

Nesse caso, o abuso desde o início é autorizado pelo discurso judicial, na medida em que a leitura que se faz é a de que a cobrança realizada pela empresa tem razão de ser, pois como prestadora de serviços precisa apresentar resultado.
Em suma, está dizendo o Juízo que para alcançar os resultados a prestadora de serviços precisa advertir funcionários que necessitam ir ao banheiro durante a jornada além do período de 5 min previamente estabelecido, ou como sentencia o magistrado: “A questão deve ser aferida no contexto da busca do equilíbrio entre o atendimento das necessidades fisiológicas do empregado e o alcance das metas previstas”.

E é nesse mesmo processo que se comprova cabalmente o desenvolvimento de infecção urinária pelo trabalho e ainda que o supervisor continuou fazendo ameaças de dispensa mesmo diante de tal contexto.

Mesmo diante de tais informações, a linha discursiva permanece a mesma e termina por apontar para uma necessidade de equacionar/conciliar as necessidades fisiológicas do trabalhador com a exigência de alcance de metas empresariais.
Quanto à alegada restrição ao uso dos banheiros, melhor sorte não socorre o autor. Isso porque o que está confirmado em seu depoimento pessoal é que poderia se afastar do posto de trabalho caso houvesse necessidade de uso do banheiro, verbis: […] que se quisesse ir ao banheiro fora das pausas era possível, desde que o intervalo total ao final do dia não ultrapassasse 05min. […] A afirmação não soa razoável, motivo pelo qual, também nesse ponto, entendo por bem desconsiderar o depoimento da testemunha ouvida a rogo do reclamante, que se mostrou vacilante (processo-caso 40).

Aqui, o caminho utilizado para se negar importância à restrição do uso de banheiro foi a tentativa de fragilização do depoimento da testemunha no discurso do Juízo. Embora a restrição tenha sido evidenciada, transcrita, concluiu-se que a simples divergência parcial entre o que disse a testemunha e a tese completa da inicial não autorizava o reconhecimento da prática abusiva.
A prova produzida nos autos, contudo, não evidencia abuso no poder diretivo da empregadora quanto à utilização do uso do banheiro. Emerge do conjunto probatório que há na reclamada a adoção de política para concessão de intervalos de 30, 10 e 05 minutos ao longo da jornada de trabalho de seis horas. A testemunha do autor declarou “que a pausa de 05 minutos poderia ser dividida em pausas menores; que o representante poderia ir ao banheiro em qualquer momento, desde que dentro das pausas mencionadas” (processo-caso 312).

Já esse segundo caso evidencia o quão ilógico parecem alguns discursos sobre a ausência de abusos. Afinal, o teleoperador poderia subdividir sua pausa de 5 min em 5 vezes e ir ao banheiro em 1 minuto numa empresa composta por centenas de funcionários, incluindo aí o deslocamento, a fila, o tempo para efetivamente fazer as necessidades fisiológicas.
Sabe-se que as demais pausas são concedidas coletivamente para tomada de refeições e lanches, ou solução de problemas particulares, por exemplo, por telefone, o que em geral também consome tempo.

Caso a necessidade de uso do sanitário ocorresse, portanto, um tempo após o almoço, como é aliás algo perfeitamente comum, deveria o trabalhador buscar a satisfação dentro do prazo máximo de 5 min. Esses são os pormenores não ditos expressamente no discurso, mas que estão efetivamente chancelados quando o magistrado atesta a normalidade da conduta empresarial.
O autor argumenta, ainda, que havia restrição do uso do sanitário, ao qual poderia ir por um único intervalo de 5 minutos […] O tema é recorrente nesta Especializada, mas não há registro recente de que o uso do banheiro pelos operadores de telemarketing estivesse restrito a uma oportunidade apenas. A testemunha informou outro motivo para o constrangimento dos trabalhadores, não aventado na petição inicial, que seria a necessidade de justificar a extrapolação da pausa pessoal, verbis: […] que o empregado pode pedir outra pausa pessoal, mas depende de autorização; […] que os supervisores não gostam que se utilize a pausa pessoal para fazer uma ligação importante ou mesmo para ir respirar do lado de fora; […] que se o supervisor não estiver na ilha, ele perguntará depois o motivo do estouro da pausa, pois tem acesso aos registros; […] que a depoente passou constrangimento por ter que justificar os motivos que a atrasaram no uso do banheiro; que o mesmo constrangimento passou o reclamante. Deste modo, como o autor não produziu prova cabal da restrição do uso do banheiro e como o constrangimento mencionado pela testemunha obreira não integrou a causa de pedir, não se afigura violação aos direitos de personalidade do autor. Assim, indefere-se o pedido de indenização por dano moral (processo-caso 52).

Aqui o pedido também foi analisado sob a lógica do que o Judiciário entende como excesso. Além disso, é marcante o apego às regras processuais para afastar a comprovação do abuso praticado. Nota-se que o pedido é fundado na restrição de uso do banheiro, mas o Juízo ressalta que o motivo da restrição revelado pela testemunha não era o mesmo narrado na petição inicial e isso já desestabiliza o depoimento.

O excesso foi afastado mesmo tendo a testemunha narrado que houve constrangimento pelo fato de o autor ter de explicar sua ida ao banheiro para o supervisor, que dispõe de controle eletrônico sobre cada saída dos operadores.

“(…) que o sr. Carlos teve problemas com a autora, pois a época que esta esteve grávida, ele não permitia que a reclamante utilizasse de mais de uma pausa particular para ir ao banheiro, mesmo diante da necessidade da situação; já presenciou o sr. Carlos dando murros na mesa, uma vez que a autora saia do local de trabalho e ia correndo ao banheiro e nessas circunstâncias, ameaçava de aplicar uma advertência; […] que o sr. Carlos era muito rígido e muito grosso e a autora estava naquele momento com o emocional mais abalado; que o sr. Carlos era grosseiro com outros funcionários também, salvo os preferidos; […] quando esta ia ao banheiro, gritava por ela no corredor para que todos ouvissem;(…)” Extrai-se do depoimento supra mencionado que, além das restrições ao uso do banheiro, a obreira era alvo de chacota e humilhações por parte do seu supervisor, situação que, a meu ver, extrapola o jus variandi do empregador e afronta diretamente a dignidade do empregado. […] Assim, observando-se os critérios acima, deverá a reclamada reparar os danos morais suportados pela autora em virtude do assédio moral levado a efeito, arbitrados em R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) (processo-caso 391).

Por outro lado, encontramos casos que sensibilizaram o discurso judicial, como o transcrito acima em que uma trabalhadora grávida era tratada aos gritos pelo supervisor que “dando murros na mesa” não se conformava com o simples exercício do direito mais básico de um ser humano, pois tal prática baixava a produtividade.

Como imaginar a situação de uma mulher grávida, utilizando o sanitário, ouvindo gritos pelos corredores exigindo explicações sobre sua conduta infratora? Como dito anteriormente, a indenização por tal prática abusiva, quando chega a ser reconhecida, segue no patamar irrisório de R$2.500,00.

A situação mais recorrente quando tratamos do tema das condições de trabalho precárias diz respeito ao período de treinamento instituído pela empresa reclamada sem a anotação da Carteira de Trabalho e sem o pagamento de salários.
Apesar de a jurisprudência majoritária ter se consolidado com o tempo no sentido de que tal prática não encontra legitimidade no Direito do Trabalho, há ainda muitos julgados que entendem ser aceitável a conduta empresarial ao argumento de que se trata de uma faculdade do empregado participar do processo ou que é lícito ao empregador averiguar a responsabilidade do futuro funcionário antes de contratá-lo.
Com meu respeito a todos os operadores de telemarketing e às empresas deste mesmo ramo, digo que é despido de razoabilidade que o processo seletivo para esta função, em que o candidato se faz presente todos os dias da semana para atividades, tenha duração aproximada de 30 (trinta) dias. Em que pese não ser tecnicamente ilícito todo este intervalo de tempo, não posso deixar de dizer que desconheço outro processo de seleção tão intenso e duradouro, inclusive para atividades de maior complexidade.
E qual o motivo desta duração? A meu sentir, há a transferência da finalidade, do contrato de experiência – no âmbito do qual se realizam treinamentos e avaliações mais apuradas – para a fase de seleção. A parte Ré, aí sim, ilicitamente (art. 9º, CLT), transfere estas atividades, do âmbito do contrato de experiência – que também celebra – para o processo seletivo. Esgotar, segundo estas circunstâncias, os ensinamentos específicos e os testes já no período de pré-contrato é conduta que afronta a ordem jurídica trabalhista e o dever lateral de lealdade, decorrente da boa-fé objetiva (art. 422, CC) (processo 316).

Na contramão desse entendimento acima, que inclusive já se consolidou na jurisprudência trabalhista em segundo grau, temos ainda um pensamento que se fecha nos interesses do empregador.
O depoimento da testemunha Charlene da Silva demonstrou que o treinamento ocorria de segunda-feira a sábado, com horário estipulado, sendo que nesse período aprenderam a trabalhar com o sistema da Net (cliente da reclamada) e com o sistema operacional da ré, receberam orientação de como atender aos clientes e conheceram os produtos comercializados pela Net. Ressaltou a testemunha que, durante o treinamento, apenas simularam os atendimentos, promovendo a venda real somente depois que a CTPS foi anotada. […] O mesmo se diga quanto ao fato de o treinamento ocorrer de segunda a sexta-feira/sábado e com duração pré-assinalada, uma vez que o estabelecimento de jornada diária e semanal não descaracteriza a natureza do processo seletivo, sendo natural exigir a frequência do futuro empregado durante o treinamento até como forma de avaliá-lo quanto à responsabilidade e assiduidade. Assim, considero que tais alegações não são suficientes para se presumir a presença dos pressupostos fático-jurídicos da relação de emprego, resumidamente expostos nos artigos 2º e 3º da CLT, especialmente o preenchimento dos requisitos subordinação e onerosidade. (processo-caso 15)

Em relação à cobrança direta de metas (prática de assédio moral por cobrança de metas e pressões por produtividade no tempo e número de atendimento de clientes), isto é, para não falar das outras condutas que também são tomadas para que as metas sejam alcançadas (como a restrição de banheiros e a ridicularização perante os demais colegas de trabalho), temos um cenário de decisões também apaziguadoras do abuso.

havia cobranças em reuniões e às vezes colocavam pausas nos atendimentos para pedir que todos baixassem o tempo de atendimento, às vezes de uma forma ríspida, sendo que o supervisor dava tapas na ponta da gôndola da mesa dele para chamar a atenção de todos, mas nunca ouviu ameaças coletivas de demissão. Por mais lamentável que sejam as atitudes dos gestores, não há como negar que a tensão é inerente à função desempenhada pelos funcionários que trabalham e dependem de resultados, a fim de auferir aumento e gratificações. As alegações de assédio moral não se configuram, pois o comportamento dos gestores era, lamentavelmente, extensivo a todos os funcionários da agência. Não procede o pedido (processo-caso 178).

Analisando o teor da ata de audiência de instrução desse processo, constata-se que a testemunha ouvida declarou ainda que “às vezes gritavam de lá da frente para baixar o TMA; que nunca ouviu ameaças coletivas de demissão, mas já ouviu falar que pessoas foram demitidas em razão de baixa produtividade”.

Todavia, na decisão proferida, tais elementos não foram suficientes para se configurar a relação abusiva por parte do empregador. A resposta judicial reconhece tão somente o caráter lamentável de tal prática que se estendia a todos e era inclusive inerente à função exercida.
Gritos, tapas na mesa de atendimento, ameaça de dispensa, interrupção do atendimento prestado pelo teleoperador para fazer cobrança de tempo de chamada. Todas essas práticas são tidas como inerentes à função que depende de resultados para fins de gratificação.

[…] o supervisor passa pela ilha, chamando a atenção para o fato de não estarem batendo o TMA; que às vezes tocam uma buzina; que se a ilha não estivesse batendo as metas, o supervisor parava todo serviço e fazia uma pequena reunião, perguntando o que estava acontecendo e dirigindo-se àqueles que não estivessem batendo as metas; que o supervisor dizia que faria advertências verbais e escritas, o que constrangia a pessoa a quem se dirigia. […] A utilização de buzina no ambiente de trabalho pode até causar estranheza, mas, na verdade, a emissão de sinais sonoros durante a jornada de trabalho, para definição de início ou término de determinados períodos de tempo ou sinalização de momentos para realização de certas tarefas, não é absolutamente desconhecida nas relações de trabalho. Ainda que falte regulamentação para o caso, pode-se avaliar, pelo contexto das declarações da testemunha, que eventualmente o supervisor usava o referido sinal sonoro, não se verificando nenhum aporte de perversidade no seu emprego. A sequência do depoimento, no entanto, sofre uma nítida guinada. O supervisor que até então fazia reuniões para saber as dificuldades quanto às metas e que repetiria reuniões se necessário, durante a semana, passa a repreender o autor, na frente de todos, e surge como o responsável, acredita a testemunha, pelo epíteto de ofensor da ilha, que até sinaliza a ilha com balões e bandeiras para identificá-lo. Esse novo aspecto do comportamento do supervisor não se mostra compatível com o anterior e também não foi confirmado pela testemunha patronal, Eveline Gonçalves de Almeida Soares, ouvida às f. 228/299 […] Por fim, a dispensa de empregado que não demonstra a produtividade esperada é fato comum que se insere na realidade das relações de trabalho, especialmente nos setores mais competitivos, como o é o de telemarketing, sendo exercício regular do poder potestativo que a lei brasileira confere ao empregador. De todo modo, a cobrança de metas não pode ocorrer de forma abusiva, impondo constrangimento ao trabalhador e exposição vexatória. Neste particular, a prova oral não revelou abuso de direito por parte dos supervisores. Observe-se que a testemunha obreira relatou o constrangimento dos operadores quando o supervisor dizia que faria advertências verbais e escritas em relação ao cumprimento de metas, mas tal procedimento decorre do exercício regular do poder diretivo do empregador, que atribui funções ao empregado e cobra dele os resultados. Como não se observou excesso algum em tal conduta, o constrangimento sofrido pelos operadores corre à conta de mero dissabor (processo-caso 52).

Esse, sem dúvida, é um caso interessante. Uma buzina é tocada no ambiente para pressionar a produtividade dos teleoperadores que inclusive estão tentando ouvir seus clientes na linha, mas tal conduta, para o Judiciário, não tem “nenhum aporte de perversidade”. Além disso, é tida como exercício regular do poder diretivo do empregador, sem excesso.
O trabalhador é colocado numa ilha de produção, submetido a reiteradas e ininterruptas ligações, que em geral dizem respeito a problemas de serviços consumidos pelos clientes das empresas tomadoras, e fica o tempo todo numa terrível apreensão sobre quando poderá ser tocada uma buzina alertando sobre o não batimento de metas.
Da mesma forma que no caso da alimentação de má qualidade, o depoimento é aqui desacreditado, não reconhecendo o magistrado a declaração categórica sobre assédio moral, embora ela contenha detalhes sobre o sofrimento passado pelo trabalhador.
Trata-se de uma interpretação carregada de uma concepção prévia sobre a aceitabilidade de ambientes estressantes em trabalhos precários como este setor.

A testemunha obreira disse o seguinte: que o ambiente de trabalho é aquele retratado nas fotografias de fls. 45 e 46; que praticamente todas as cadeiras têm encosto, braço e regulagem quebrados; que o reclamante trabalhava nessas cadeiras. Esta nitidamente exagerada declaração não encontra eco nas informações prestadas pela testemunha patronal, que trouxe aos autos relato mais detalhado acerca do assunto. […] Não seria crível, na verdade, que o empregador mantivesse permanentemente a oferta de cadeiras precárias, que afetaria a performance de seus operadores de telemarketing (processo-caso 52).

O descrédito da testemunha indicada pelo trabalhador é, aliás, a regra nessa decisão, como se observa também quanto ao mobiliário fornecido pela empresa. Para o Juízo, a empresa não deixaria de fornecer bons móveis, simplesmente porque deseja auferir maiores resultados com seus operadores. Tal raciocínio conduz ao indeferimento da tese e consagra um pensamento que sequer põe em pauta a situação do trabalhador no contexto, mas apenas a situação da empresa como primeira interessada num mobiliário de qualidade.
A verdade é que o capital não está disposto a sequer oferecer móveis se for possível obter a mesma produção ou ainda uma maior através de outros meios de pressão, como os que foram narrados no trecho acima e compõem a mesma decisão.

Por tais razões, como nos ensina Baldez, o processo não pode ser abandonado ao voluntarismo e autoritarismo do Juiz e sim encarado como um instrumento de ação política (BALDEZ, 1989 p. 19).
Na mesma decisão proferida, para encerrar a prestação jurisdicional, a leitura nos mostra que o empregado é que está insatisfeito com as condições do setor e ainda afirma que não foram produzidas provas eficazes quanto aos abusos cometidos pelo empregador.
Caberia ao autor fazer prova dos fatos-constitutivos de seu direito, isto é, provar as alegadas condutas patronais ilícitas, na forma do art. 818 da CLT, mas deste encargo não se desincumbiu, uma vez que a discriminação, o abuso e o assédio moral não se revelaram nos autos. Percebe-se, na verdade, que o autor não está satisfeito com os contornos atuais da disciplina do emprego e não suporta os dissabores da prestação de serviços para a ré. […] outro caminho não resta senão o de reconhecer a resilição do contrato, por iniciativa do empregado, sem culpa do empregador (processo-caso 52).

Aqui, construiu-se o perfil do trabalhador frágil, que não supera os desafios do trabalho, perfil reforçado no discurso judicial, curiosamente na mesma linha do que fazem as práticas de organização e gestão do trabalho no contexto neoliberal.
Outra conduta que evidencia o terror psicológico suportado diz respeito ao tratamento dispensado aos funcionários que porventura se afastam do trabalho por motivo de doença.
Entretanto, o depoimento da testemunha Caroline Dias, prestado nos autos do processo 10470-51-2015-503-0036 e adotado como prova emprestada pelas partes, confirmou que a reclamada, de fato, tinha como prática deixar seus empregados sem fazer atendimento por certo período, permanecendo assentado em seu posto de trabalho durante toda a jornada. […] Diante do exposto, reputo configurada a hipótese de assédio moral, pelo que condeno a reclamada a pagar à obreira indenização no valor ora arbitrado de R$ 2.000,00 (processo-caso 630).

Neste caso específico, a constatação da prática levou o Judiciário a reconhecer o direito a uma indenização que, contudo, ficou bastante limitada, não chegando a ultrapassar 2 salários médios da categoria. Reparação que foi considerada consentânea com uma prática de exposição e humilhação reiterada no tempo como represália ao mero exercício pela trabalhadora de um direito que lhe é assegurado pela lei (afastamento por motivo de doença).
Cabe aqui uma ressalva, como nos alerta Bourdieu (1989), o processo de produção do discurso hegemônico dentro do campo é marcado de violência simbólica. A força do habitus dentro do campo que acaba por condicionar o comportamento dos “profissionais” é um exercício de poder. Por isso mesmo, Bourdieu não ignora que mesmo havendo discursos destoantes ao hegemônico, estes não possuem o condão para desmobilizar a força normativa que molda as visões e ações dentro do campo.
Não é pouco significativo que ao lermos as decisões elencadas, ainda que haja um interprete que se manifeste sobre a abusividade do processo de exploração do trabalho precarizado, este traduzirá em termos de ordem de grandeza monetária e ao fazê-lo a questão do conflito entre patronal x trabalhador e todas contradições e conflitos daí advindos acabam sem endosso no poder judiciário.
Nesse contexto, cabe a citação dos ensinamentos de Marx apud Nogueira (2006, p. 277) sobre a “sede vampiresca por sangue vivo do trabalho”
O capital constante, os meios de produção, só existem, considerados do ponto de vista do processo de valorização, para absorver trabalho e com cada gota de trabalho um quantum proporcional de mais-trabalho. Na medida em que não fazem isso, constitui sua mera existência prejuízo para o capitalista, pios, durante o tempo em que estão ociosos, representam adiantamento inútil de capital, e esse prejuízo torna-se positivo tão logo a interrupção exigir gastos adicionais para o reinício do trabalho. […] Apropriar-se de trabalho durante todas as 24 horas do dia é, por conseguinte, o impulso imanente da produção capitalista (MARX, apud NOGUEIRA, 2006, p. 277).

Pelo que indicam as decisões aqui analisadas, tal sede vampiresca não é intolerável para o Estado, apenas precisa ser administrada dentro de determinados patamares. Aliás, na visão de alguns magistrados, sequer é crível a possibilidade de os trabalhadores passarem por tamanhos abusos. Afinal, diante do sofrimento e ofensa moral que em geral é narrado pelos trabalhadores, o mais provável seria uma verdadeira revolução:

A despeito de a autora trazer aos autos atestados médicos, constando CID A09- diarréia e gastroenterite, não há como reconhecer a ligação entre o quadro de acometeu a reclamante e a refeição oferecida pela reclamada. Vale notar que os e-mails trazidos referem-se ao período de outubro de 2011 e os atestados foram concedidos em fevereiro e março de 2012.
Diante disso, tem-se que os dados explicitados pela testemunha da autora, neste particular, não possui o condão de convencer este Juízo da irregularidade indicada na inicial.
Isso porque, como já decidido pela E. Turma Recursal: [] a Almaviva emprega, formalmente, quase 3.000 trabalhadores (fl. 320 2º v) e, consideradas como verídicas as informações da reclamante (danos morais e sofrimento intenso), na certa, verdadeira revolução seria movida pelos empregados, pois não se admite, hodiernamente, que um grupo tão significativo de pessoas seja assim tratado sem que aja uma representação por parte do sindicato da categoria, bem como a utilização de outros meios, verbi gratia, a intervenção do órgão fiscalizador do trabalho, que sempre está acessível às denúncias, individuais e coletivas. Em sendo assim, os dados trazidos pela testemunha da reclamante, neste particular, não são suficientes para o deferimento dos danos morais vindicados. (processo-caso 57)

Interessante notar que retornando à ata de audiência de instrução para se verificar o que exatamente teria dito a testemunha e que não poderia servir de embasamento de sua tese pelo Juízo, constatamos que declarou: “a alimentação era fornecida pela reclamada, mas constantemente era objeto de reclamações de supervisores e de representantes de atendimento, uma vez que vinha estragada e com insetos; que mesmo com a reclamação não era possível substituir a alimentação fornecida por ticket refeição”. (processo-caso 57).
Percebemos que a descrença e banalização do sofrimento dos trabalhadores do setor de teleatendimento pelo Judiciário pode sempre vir a aumentar. Quando o adoecimento ou os danos causados à saúde física é comprovado e há indícios reais de que a causa advém do empregador, o discurso escapa pela via da incredibilidade da prática. Ou seja, ou a prática está dentro do poder diretivo ou ela é abusiva ao ponto de merecer um pequeno desincentivo ou ela é tão absurda (e comprovada) que sequer merece crédito.

5. Conclusões

A discussão trazida acima quando falamos da realidade do setor de um modo geral, nos mostra que o mesmo é marcado por uma série de práticas abusivas visando a redução de custos e aumento da produtividade das empresas que operam diretamente no ramo e daquelas que se valem de tais serviços de maneira terceirizada.

Ao analisarmos uma gama de decisões proferidas sobre o tema, constatamos que a leitura judicial é marcada pela chancela das práticas vigentes de organização do trabalho no setor, seja pela omissão seja pela validação do modus operandi empresarial. Os apontamentos nos levam justo ao encontro da discussão sobre a ineficácia e perversidade da atuação do estado capitalista que assola a classe trabalhadora ao discutir o conflito decorrente da superexploração do trabalho.
Por vezes os discursos, embora percebam através das provas produzidas uma estrutura permeada por assédio em diversos aspectos, não tomam por suficientemente relevantes os sofrimentos narrados pelos trabalhadores e quando o reconhecem em função do excesso de desumanidade constatado, limitam-se à concessão de indenizações irrisórias, variando entre R$2.000,00 e R$5.000,00 em sua maioria.

De fato, evidencia-se nas decisões que o sistema acaba por resguardar a estrutura capitalista, na medida em que assegura o grau de exploração necessário para que haja o aumento da produtividade. Um aumento de produtividade pode então ser obtido com extração do máximo de disciplina, autocontrole e sofrimento físico e psicológico de quem trabalha.
A limitação imposta pela natureza e condição de realização do estudo acaba por não permitir uma análise mais extensa dos casos que compõe o espaço amostral em estudo.
Contudo, ainda que de forma pontual, os principais elementos debatidos judicialmente sobre as condições de trabalho do setor de teleatendimento em Juiz de Fora foram trazidos e abordados nas análises acima, permitindo uma discussão e verificação da literatura que nos sustenta na discussão sobre os avanços e intensificação da precarização do trabalho humano.
Como representante de um Estado que administra a ordem vigente e é permeado por porta-vozes fiéis das classes dominantes, a Justiça exerce a sua “função corretiva” exatamente nos termos possíveis para a manutenção da satisfação do capital. Não está aí para contestá-lo, mas antes para legitimá-lo ao dizer aos trabalhadores até qual degrau eles estão aptos a subir de forma legítima em suas reivindicações por condições mais dignas de trabalho.

Contudo, as mudanças no mundo do trabalho nos impulsionam a construir novos caminhos, estabelecer novos parâmetros de interpretação do real de forma a não sermos pegos novamente pela defasagem (como ocorrido com a captura da subjetividade do trabalho) e esses novos caminhos podem sim alcançar como consequência uma “reforma na legislação trabalhista”.
Nosso ordenamento jurídico, em especial a nossa Carta Maior, já carrega em seu texto a base fundamental que legitima a busca pelo valor social do trabalho e a redução das desigualdades econômicas e sociais, entretanto, os discursos jurídicos que validam as práticas empresariais estão em descompasso com esses direitos constitucionais.
As possibilidades são tímidas se tomarmos como referência esse verdadeiro papel do Estado sobre o qual viemos discorrendo no presente estudo e se voltarmos os olhos para a realidade do desmonte protetor em matéria trabalhista, as estratégias parecem bastante distantes de serem bem sucedidas.
Até porque o Judiciário somente irá dizer aquilo que a ordem burguesa autoriza: a velha tutela dos excessos. A depender do grau de injustiças, humilhações e privações a que esteve submetido esse trabalhador, o Judiciário irá lhe conceder uma compensação financeira pelo “abuso do poder diretivo” pelo empregador. A partir daí, já não é mais problema do Estado o sofrimento causado pelo trabalho.

Referências

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O AFROEMPREENDEDORISMO E A APROPRIAÇÃO DAS LUTAS IDENTITÁRIAS PELA RAZÃO DE MERCADO

AFRO-ENTREPRENEURSHIP AND THE APPROPRIATION OF IDENTITY STRUGGLES FOR MARKET REASON

Adriana Avelar
Luciana Tasse

Resumo: O presente trabalho analisa o afroempreendedorismo, tendo em vista que a erosão do trabalho regulado faz com que o discurso empreendedorista se coloque como alternativa de trabalho e renda para os trabalhadores marginalizados do mercado formal. Neste sentido, o objetivo é, efetivamente, lançar um questionamento se o afroempreendedorismo, por si só, é capaz de oferecer possibilidades de inclusão social plena e substantiva. Ressalta-se a importância de que a população negra se una e constitua meios e ferramentas para se inserir em todas as esferas da vida pública, mas a saída para um projeto de nação menos racista, excludente e desigual não será apenas dentro dessa lógica individual e mercantil – que reforça e intensifica a exploração do trabalhador pelo capital.

Palavras-chave: Empreendedorismo; raça; afroempreendedorismo.

Abstract: The present work analyzes the afro-entrepreneurship, considering that the erosion of regulated work makes the entrepreneur discourse as analternative of work and income for the marginalized workers of the formal market. In this sense, the objective is to effectively raise a question as to whether Afro-Entrepreneurship is capable of offering full and substantive social inclusion possibilities. It is important that the black population unite and provide the means and tools to be inserted in all spheres of public life, but the exit for a less racist, exclusive and unequal project of nation will not only be within this individual logic and market – which strengthens and intensifies the exploitation of the worker by the capital.

Key-words: Entrepreneurship; race; afro-entrepreneurship.

1. Introdução

A informalidade do trabalho tornou-se um traço constitutivo e crescente da acumulação de capital no contexto de desregulamentação do século XXI. É precisamente neste contexto que surge a problemática sobre o que é o afroempreendedorismo e como esse movimento recente se relacionaria com o discurso neoliberal, que alça o empreendedor como o grande sujeito contemporâneo, verdadeiro motor da economia com sua inventividade e força de vontade.
Neste caso, a hipótese é que o discurso do afroempreendedorismo tem sido alvo de apropriação da luta identitária da comunidade negra pelo mercado. Não por acaso, isso ocorre num momento de desconstrução do paradigma do emprego formal, tal como pensado originalmente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com garantias e proteções.
Como marco teórico apto a balizar esta discussão, adotou-se a crítica à razão empreendedora desenvolvida por Castro (2013), por acreditarmos que a função ideológica do empreendedorismo também se verifica e é um desdobramento do discurso empreendedorista fortalecido e impulsionado pelo avanço neoliberal.

Para tanto, o trabalho se desenvolve em três capítulos. Num primeiro momento, apresenta-se uma crítica ao discurso da universalidade do ethos empreendedor, ao mesmo tempo que se contextualiza o seu surgimento. Num segundo momento, questiona-se o afroempreendedorismo como uma ferramenta de resistência identitária. E, finalmente, no terceiro capítulo, faz-se uma relação com o discurso do empreendedorismo e a apropriação da luta identitária negra para colocar sob questão o próprio discurso afroempreendedor.

A metodologia utilizada foi a da pesquisa qualitativa, a partir do método dedutivo de análise de conteúdo, pela qual se analisaram artigos científicos, documentos e textos legais.
Com isso, ressalta-se que, embora seja significativamente importante que a população negra se una e constitua meios e ferramentas para se inserir em todas as esferas da vida pública (inclusive o mercado), a saída para um projeto de nação menos racista, excludente e desigual não será dentro dessa lógica individual e mercantil – que reforça e intensifica a exploração do trabalhador pelo capital.

2. Somos todos empreendedores? O Discurso do empreendedorismo e o mito da cultura da oportunidade

A primeira onda neoliberal, nos anos 90,impôs a flexibilização produtiva como forma de organização do trabalho e foi apenas um prelúdio do que seria a corrosão do paradigma do trabalho contratado e regulamentado que se anunciaria para o século XXI, sob as mais diversas faces da precarização – desde as formas de trabalho parcial, terceirizado, temporário, por conta própria, até o cooperativismo e o empreendedorismo.
Estas modalidades precárias de trabalho também guardam relaçãocom o movimento da informalidade, igualmente em expansão no mesmo período, vez que ambas expressam formas de trabalho desprovidas de direitos (ANTUNES, 2011, p. 418), o que tem o cunho de ampliar as formas geradoras do valor pela utilização de novos e velhos mecanismos de intensificação e de auto exploração do trabalho (ANTUNES, 2011, p. 407).

Na medida em que o aumento do desemprego e da desregulamentação das relações de trabalho contribuem para a disponibilidade crescente da força de trabalho e para fragilizar as negociações coletivas, o trabalho formal, estável e socialmente protegido tende a se tornar uma categoria do passado (TAVARES, 2002, p. 51). A ponto de ser possível dizer, com Antunes (2011, p. 408), que a informalização do trabalho se tornou um traço constitutivo e crescente da acumulação de capital dos nossos dias.

Com efeito, de acordo com Antunes (2011, p. 411), estamos assistindo à erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX como ideal de política de trabalho e renda, com a ressalva de que sua possibilidade, num país de capitalismo periférico como o Brasil, sempre foi um desafio. Ao mesmo tempo, os vínculos são substituídos por prestações de serviço autônomo, terceirizações, trabalho temporário – num movimento de precarização estrutural que passa a ocorrer em escala global.
Estamos, assim, diante de uma fase de desconstrução do paradigma do emprego – com todas as garantias e proteção daí decorrentes – rumo à ampliação dos diversos modos de ser da informalidade e da precarização do trabalho (ANTUNES, 2011, p. 411). Da mesma forma, o capital global pressiona pelo desmonte da legislação social protetora do trabalho, sempre no sentido de aumentar os mecanismos de extração de mais valia, ao mesmo tempo em que rebaixa forçosamente a remuneração da força de trabalho, submetendo-a à lógica de mercado tornada absoluta.
É precisamente neste contexto que exsurge, de maneira muito conveniente, a categoria do “empreendedorismo”, que permite distintas formas de flexibilização de jornada, salarial e organizativa (ANTUNES, 2011, p. 411), ao mesmo tempo que transfere para o indivíduo a responsabilidade – e os riscos – do “próprio negócio.
Não por acaso, o discurso empreendedor tem sido sistematicamente difundido, a começar pela esfera do trabalho, não apenas pela iniciativa privada , como por políticas públicas , ao erigir a figura do Microempreendedor Individual (MEI) ao patamar de (pretensa) política de trabalho e renda, elaborada pelo Governo Federal para estimular a formalização de trabalhadores por conta própria.
Inevitavelmente, a retomada do empreendedorismo como política de governo num contexto neoliberalizante de desregulamentação do Direito do Trabalho e de desassalariamento, aparece vinculada à cultura do autoemprego. Neste caso, o discurso oficial parece sugerir que “tornar-se empresário” (i.e. dono do próprio negócio) seria uma forma de solucionar a questão desemprego, da exclusão social e da cidadania perdida (CASTRO, 2013, p. 103), em virtude da precarização do trabalho e da própria vida.

Neste caso, é importante destacar que a presente crítica ao que Castro (2013) denomina “razão empreendedora” se dirige especialmente ao grupo dos aos “empreendedores por necessidade” (FALCÃO, 2008). Isto é, ao grupo de trabalhadores marginalizados que não possuem praticamente outro meio de inserção no mercado formal, senão pelo trabalho por conta própria – que passa a ser enquadrado como “atividade empresária” e adquire a feição jurídica de Microempreendedor Individual (MEI), quando formalizado.

Como visto, o discurso do empreendedorismo se construiu com base em chavões como “ser patrão de si mesmo” e “ser dono do próprio negócio”, o que sugere como grandes “vantagens” do trabalho por conta própria a “autonomia” de fazer o próprio horário (ainda que se chegue a trabalhar 13h por dia ) e a “independência” de ser possuidor dos meios necessários para produzir ou prestar serviço.
Com efeito, as novas morfologias do trabalho no século XXI, fruto da flexibilidade e precarização progressivas, obscurecem as antigas fronteiras entre atividade industrial e serviços, trabalho produtivo e improdutivo, formal e informal, ou mesmo entre emprego e desemprego (TAVARES, 2002, p. 55).

Da mesma forma, esse movimento do mundo do trabalho, também desloca o conceito de empreendedor, criando a ilusão de que o trabalhador, ao se formalizar como MEI (ou outra forma jurídica possível), adquiriu alguma autonomia, simplesmente porque não mais se subordina de maneira direta à empresa ou a algum empregador.
Ao contrário, o trabalhador formalizado como MEI, não só não adquire independência, como é deixado à própria sorte sob as flutuações do mercado, uma vez que não possui as mesmas garantias e proteções de uma relação de emprego formal e ainda resta responsabilizado pelo recolhimento mensal e unificado dos tributos (incidentes na atividade) e da Contribuição para a Seguridade Social – sem o que não faz jus ao recebimento de benefícios como auxílio-doença (após um ano de contribuição), salário-maternidade (após 10 meses de contribuição), pensão por morte (após 1 mês de contribuição), bem como à aposentadoria por idade (após 15 anos de contribuição).
Neste sentido, avaliações do próprio Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) apontam como uma das principais falhas da política pública de incentivo à formalização do MEI a questão da alta inadimplência (SCHWINGEL; RIZZA, 2013, p. 52) no recolhimento do DUA (Documento Único de Arrecadação), o que é um dado importante a ser considerado, vez que torna o trabalhador quase totalmente desamparado do ponto de vista da Seguridade Social.

Efetivamente, o indivíduo que se auto emprega também tem o produto do seu trabalho submetido à lógica do capital, tal qual um trabalhador assalariado, vez que tudo converge para o mercado, onde as pseudo-autonomias se dissolvem. Por isso, a autonomia do empreendedor por necessidade não passa de uma falsa autonomia, na verdade marcada pela desproteção social, desassalariamento e toda a precarização daí decorrente.

Mesmo o chamado empreendedor por oportunidade, isto é, aquele que empreende por opção (realização pessoal, objetivo transitório, otimização de tempo e espaço) se submete às regras do mercado. Quaisquer que sejam as ditas modalidades de empreendedorismo, todas elas são (e estão) atravessadas pelo regime de gestão social e produção de formas de vida submetidas ao mercado (SAFATLE, 2015, p.137).

Por isso, é fundamental denunciar que o simples rearranjo das formas jurídicas ou dos discursos não tem o condão de alterar a realidade da subordinação do trabalhador por conta própria ao mercado. Mas, certamente, contribui para preservar e intensificar a exploração do seu trabalho (TAVARES, 2002, p. 56) e a histórica desigualdade social, ao despolitizar o debate sobre as condições de trabalho e de vida do trabalhador – transformado em empresário “por um malabarismo quase semântico” (CASTRO, 2013, p. 83).

Desse modo, conforme aponta Castro (2013, p. 67-68), entende-se que a retomada da razão empreendedora num momento de precarização e desassalariamento sem precedentes faz do empreendedorismo uma figura fundamental da ideologia no mundo neoliberal, por sustentar um conjunto de valores nitidamente direcionados à manutenção de relações de exploração.
Com efeito, a valorização teórica do empreendedor como o grande protagonista do capitalismo alcança impulso com Schumpeter e sua teoria do desenvolvimento econômico (1911). O empreendedor schumpeteriano é um inovador, um líder que não tem medo de se aventurar para criar e romper os esquemas rotineiros. “É o homem da ‘destruição criadora’, um competidor que gosta de lutar e vencer – e cujo sucesso financeiro é apenas um símbolo de seu sucesso como criador” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 153).

Essa noção é importante, pois o empreendedor-inovador construído por Schumpeter adquire uma projeção apologética no discurso neoliberal, vez que reabilita essa figura quase heroica, erigida a motor do sistema, para anunciar o advento de uma nova sociedade de empreendedores, em que o “espírito do empreendedorismo” se torna uma virtude(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 154).
Ainda, esse discurso do empreendedorismo como solução para as relações de trabalho, oportuniza e introjeta nas subjetividades a ideia de que tal modalidade é capaz de suprir as lacunas de um mercado de trabalho desatendido. Sustenta a noção ingênua de que o trabalho desenvolvido pelo empreendedor – que estaria descolado das velhas amarras do capital – significaria, sobretudo:
olhar para o mundo com mais generosidade, entendendo que criar uma empresa não é aproveitar uma bolha e ganhar dinheiro de clientes. Seria, sim, firmar um compromisso com o planeta, com a sustentabilidade do meio ambiente […] e acima de tudo, com valores éticos, capazes de contribuir para o fim da flacidez econômica e política do país. Abrir e gerir uma empresa contemporânea significa antes de mais nada, dar oportunidades (BOCCIA, 2017, p.10).

No mesmo sentido, as teorias neoliberais sustentam que o lócus de formação do empreendedor, esse sujeito referencial da racionalidade neoliberal, é o próprio mercado. Neste caso, o mercado é concebido como um espaço de aprendizagem e de auto-formação do sujeito econômico, no qual o próprio se auto-educa e se auto-disciplina, a partir da experiência. Em resumo, para as teorias neoliberais emergentes a partir dos anos 80, a faculdade empreendedora, tal como existe – alegadamente – em todo sujeito, só pode ser aprendida pela prática no mercado (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 140).

Neste caso, Dardot e Laval (2016, p. 155) apontam que a grande contribuição do discurso neoliberal para a figura do “homem econômico” foi a proposição de que cada indivíduo seja empreendedor por si mesmo e dele mesmo. Isto é, as correntes neoliberais deram um salto em relação ao liberalismo, para propor o homem-empresa como verdadeiro ideal antropológico.
Com efeito, tal proposição genérica e universalizante do empreendedor inovador confere uma função muito mais dinâmica e ativa ao sujeito econômico do neoliberalismo que do homo economicus originalmente construído pelos teóricos liberais (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 151).
Com isso, não se pode deixar de concordar com Castro (2013, p. 102) quando aponta que o discurso neoliberal transforma o empreendedorismo em algo instintivo, o que tem o caráter de transferir a responsabilidade – em última instância – da miséria e da exclusão social do sistema econômico como um todo, para os próprios indivíduos – os quais, se são pobres, é porque não empreenderam ou se esforçaram o suficiente.

No mundo do trabalho reconfigurado pela razão empreendedora,estamos diante de uma atividade laboral que,supostamente,teria se reconciliado com a vida, ou seja, com a capacidade da vida de produzir a si mesma.O horizonte perfeito aconteceria, então, quando o próprio trabalho assalariado desaparecesse para que os trabalhadores se transformassem em empresas. “Pessoas devem se transformar em empresas de si mesmos” (NEGRI; HARDT, 2006, p. 314), empresas que se associam a outras empresas em dinâmicas flexíveis (SAFATLE, 2015, p. 185).
Dessa forma, é possível perceber que a “razão empreendedora” vai além da defesa de uma tese meramente econômica, para sustentar um verdadeiro projeto social e político com a promessa da inclusão via mercado. Não por acaso, precisamente no momento em que o Estado se retira da intervenção no domínio econômico e da proteção social, a lógica do mercado se propõe como a grande alternativa capaz de solucionar questões que tradicionalmente foram construídas como funções públicas (CASTRO, 2013, p. 105).

É evidente que o projeto de transformar trabalhadores precarizados em empreendedores é incapaz de promover uma inclusão social mais substantiva. Pelo contrário, a promessa neoliberal de transformar, num passe de mágica, o trabalhador em “empresário” tem um efeito alienante, vez que o sujeito deixa de se perceber como trabalhador para perceber-se como capitalista em potencial – como se fosse possível tornar-se o oposto de si mesmo (CASTRO, 2013, p. 105).

3 Afroempreendedorismo: uma ferramenta de resistência identitária?

A pergunta acima expõe o questionamento acerca da mobilização realizada por mulheres e homens negros no movimento chamado afroempreendedor. É importante uma ressalva inicial: não há neste trabalho o condão de se fazerum juízo de valor sobre o tema do afroempreendedorismo, no sentido de que não há demérito nenhum na atividade empresária identificada como afroempreendedora.
O caminhar reflexivo se faz, antes de tudo, sobre como o discurso do empreendedorismo e, particularmente, do afroempreendedorismo, que vem sendo cooptado paraesvaziar oideário do emprego formal, o que, defende-se, tem profundas consequênciasno cotidiano da população negra, que é sempre a mais atingida pelas investidas neoliberais de retirada de direitos.
Dito isto, pensar a categoria trabalho no plano fático para a população negra, de um modo geral, é colocar a pauta da resistência. No caso brasileiro, os quase 354 anos de escravidão fizeram com que a resistência e a mobilização fossem as palavras de ordem de mudança desse sistema, que violava corpos e subjetividades negros.

No entanto, o que se seguiu nesses 120 anos de pós-abolição da escravatura, foi a manutenção da marginalização e subalternização dos (as) negros (as) em todas as áreas, e principalmente no que tange as relações de trabalho, onde estes prevaleceram (e prevalecem) nas ocupações nas quais há uma maior ausência de proteção previdenciária e, em geral, onde os direitos trabalhistas são desrespeitados e violados. Assim, mesmo com o fim da escravidão, não houve uma efetiva inserção do negro na sociedade. Foi mantida a lógica de exclusão, sendo os negros responsáveis por posições subalternas, mal remuneradas, nas quais prevalecem ausência de proteção previdenciária e desrespeito aos direitos trabalhistas (CARDOSO, 2015).

Em um país onde o racismo é um aspecto estruturante da sociedade, os movimentos sociaissão importantes na construção das identidades, demonstrando a importância do movimento negro na consolidação da identidade afrodescendente, e trazendo o debate para a questão do trabalho. É no contexto do movimento negro que o afroempreendedorismo se insere. Pensando em um mercado de trabalho formal que exclui, subalterniza e remunera mal a população negra, e que traz como consequência obstáculos à mobilidade e ascensão social, é que se fundamenta e concretiza o aumento da busca pelo próprio negócio.
Na década de 80, Jorge Aparecido Monteiro se debruçou sobre os estudos acerca do empresário negro, com a finalidade de mapear onde estariam os empresários negros no país, destacadamente os empreendedores e empresários de micro, pequeno e médio porte. Neste caso, o objetivo era investigar se haveria, entre eles, identidade, interesse e disposição para se organizarem em associações próprias, de viés étnico, em defesa de interesses coletivos e da melhoria constante da gestão, dos processos e dos produtos de suas empresas e negócios; ou se predominaria, ao contrário, certo ponto de vista individualista e utilitarista, visando-se apenas o poder pelo poder, o lucro pelo lucro, acima de qualquer outro valor ético que tais interesses imediatistas.
Desde então, o autor tem se dedicado a estudar o empresariado negro no Brasil. Seus estudos concluem que os empresários e empreendedores negros ao se organizarem em associações próprias, poderão conseguir um espaço maior no mercado, consolidando-se na posição de agentes ativos e coletivos de mudança econômica socialmente sustentável para a população negra brasileira (MONTEIRO, 2013, p.92).

Villaverde (2014, p.1) vê o afroempreendedorismo como uma iniciativa fundamental para promover o próprio desenvolvimento social e econômico do Brasil, junto a microempresas e empreendedores individuais afrobrasileiros. Define como “absolutamente revolucionário”,a despeito de qualquer exagero semântico, o projeto Brasil Afroemprendedor, que fomenta a adoção de políticas públicas de forma mais consistente, através de ações baseadas nos princípios da transversalidade, da descentralização e de uma gestão mais democrática.
A especialista em Desenvolvimento Social da divisão de Gênero e Diversidade do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luana Marques Garcia, vê no investimento de R$ 500 mil reais às iniciativas afroempreendedoras pelo banco, como um investimento que visa aumentar a participação de negros e de negras entre as maiores empresas do Brasil, principalmente pelo intermédio dos ‘empreendedores embaixadores’, para mostrar aos mercados que é possível ter muito retorno investindo em negócios e ideias de afrodescendentes, os quais desenvolvem produtos e serviços com efetivos impactos social e ambiental.

Neste discurso, existe a nítida preocupação em resgatar a posição do (a) negro (a) no mercado enquanto produtor de riquezas, de modo que possa haver uma ascensão social e econômica que mitigue a histórica exclusão dos mesmos como produtores e consumidores. E esse viés, de fato, tem sido a ferramenta de luta por parte do movimento social negro por um sistema mais inclusivo e menos racista, elevando a autoestima da população negra, para que esta não se veja apenas ocupando precárias condições de trabalho no mercado.

Contudo, o que não se pode perder de vista é que o afroempreendedorismo está, inexoravelmente, atrelado às questões do mundo capitalista: mercado; consumo; circulação de riquezas. E ignorar esses fatores, agarrando-se à ideia de que todos são empreendedores, é talvez, ignorar a complexidade e todos os riscos advindos de constituir-se enquanto empresário (a).
Ser patrão ou patroa de si mesmo (a) é o que muitos desejam, e de fato, a ideia é sedutora. Liberdade, flexibilidade, autonomia, qualidade de vida, são promessas que encantam a quem todos os dias é submetido (a) a uma jornada de trabalho exaustiva e de baixa remuneração. No entanto, alguns aspectos devem ser suscitados,vez que podem se constituir como armadilhas do próprio sistema, que cria equivocadas situações e expectativas de novos caminhos e transformações, quando, na verdade, trata-se da manutenção das mesmas estruturas de dominação envernizadas, apenas.
Comecemos pelo fato de que o mercado muitas vezes se vale de pautas identitárias, pois o discurso aparentemente inclusivo, contribui para o aumento do consumo e expansão dos mercados de consumo. Lembrado este ponto, embora seja significativamente importante que a população negra se una e constitua meios e ferramentas para não mais ser desqualificada como produtores e consumidores, o projeto de nação não pode ficar refém à lógica mercantil na busca por cidadania.
A atual situação político-jurídica do Brasil demonstra porque o discurso de somos todos empreendedores mascara verdades inconvenientes. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD mostrou que o emprego sem carteira assinada superou o formal pela primeira vez em 2017, isto é, no ano passado foi a informalidade que ditou a recuperação do mercado de trabalho. O país fechou 20.832 vagas de trabalho formal nesse mesmo ano, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) . Como visto, a informalização do trabalho tornou-se um traço constitutivo e crescente da acumulação de capital.
Um país que apresenta altos índices de desemprego e informalidade, enfrenta desdobramentos sérios, como reduzidas rendas, precárias condições de habitação, saúde e acesso à educação, sendo a população negra a parcela sempre mais excluída de todo tipo de acesso.
Neste cenário, são urgentes políticas públicas capazes de promover (ou mitigar) a desigualdade estrutural de renda e acesso, que faz com que os (as) negros (as) ainda vivam numa realidade massivamente marcada pela violência e marginalização.

Não há demérito na proposta do afroempreendedorismo. Porém, esta deve estar atrelada a um projeto maior de nação, para além da ótica mercadológica, pensando em uma mobilização coletiva que lute por uma legislação social protetora do trabalho, em todos os seus âmbitos e com todas as suas garantias. Avançando nesse entendimento, é possível pensar em estratégias de luta para uma efetiva proteção social do trabalho e suas garantias.

4. Empreendedorismo e identidade racial: o discurso empreendedor no processo de apropriação de lutas identitárias

Empreendedorismo virou sinônimo de liberdade, segundo seus maiores defensores. Pensar em liberdade num país como o Brasil, que se fundou e sobreviveu há quase 354 anos baseado numa economia escravocrata é no mínimo se perguntar: liberdade para quem?
Antes de adentramos na questão central que é discutir a apropriação de lutas identitárias – mais especificamente a racial –pelo discurso empreendedoré preciso, ao menos, relembrar uma história. Ou parte dela. O significado de liberdade no período pós-abolição da escravidão teve inúmeras configurações no Brasil. A libertação trouxe, ao centro da cena, além do projeto de modernização conservadora para a economia, o delineamento social que a elite desejava para o país(MARINGONI, 2011).

No entanto, a abolição não significou reparação, inserção e nem inclusão para a população negra. Não veio acompanhada de direitos sociais, e a conquista parecia ter sido, na verdade, uma herança ingrata. Afora o conluio institucional que garantiu o início da República, e da imagem pública de uma nova sociedade associada à noção de progresso, muito pouco mudou. O suposto era que, com um estalar de dedos, tudo sairia alterado. Mas o dia a dia era, antes, feito do “mesmo”. Não foram poucos os libertos que permaneceram nas fazendas em que trabalhavam como escravos, agora como trabalhadores “livres” submetidos a regimes de exploração e de baixa remuneração. Outros se mudaram para as cidades, mas por lá tiveram que lidar com uma competição desigual e injusta. Outros, ainda, saíram vagando sem destino, mostrando que liberdade poderia ser o direito de não ficar preso à terra (SCHWARCZ, 2018).

A liberdade que se impôs no Brasil e outras regiões do continente americano era de outra natureza e tinha dois componentes axiais: a mercantilização da força do trabalho — e não mais do trabalhador enquanto corpo escravizado — e a colonização da mente pela cristianização e outras formas de pensamento e comportamento, um artifício de reeducação semelhante ao que se fazia com o escravo. Esse, naturalmente, era o plano. Na prática, o que se verificou foi a utilização impiedosa de uma mão de obra baratíssima, posta à disposição de arrematadores privados e do Estado, e, este, ao mesmo tempo que controlava a distribuição dos trabalhadores, servia-se deles em instituições públicas, obras e projetos de interiorização e modernização através do país (REIS, 2017, p.10).

Seria mais correto pensar em expectativas de liberdade do que sua concretização de forma plena, haja vista que a abolição incidiu das mais variadas formas para os (as) negros (as) nesse período, e pensar numa abolição inacabada é entender seus reflexos até os dias atuais. Boa parte da população negra, que não tinha condições materiais de prover sua existência, ou a que possuía meios parcos para tanto, continuou excluída e marginalizada, tendo acesso às piores condições de saúde, habitação, educação e moradia – os ex-escravos, além de serem discriminados pela cor, somaram- se à população pobre e formaram os indesejados dos novos tempos, os deserdados da República (MARINGONI, 2011).

Assim, nesse curto percurso, vimos que a abolição da escravidão veio em forma de liberdade, sem efetivos direitos de cidadania para os (as) negros (as), nem uma política social que permitisse uma inserção dos (as) negros (as) para além da ótica moralizante. Os reflexos desse projeto de liberdade deliberadamente excludente se perpetuam no tempo e nos ajudam a pensar: que liberdade é essa que tem sido oferecida a negros (as) na contemporaneidade, que traz consigo a promessa de gestão de si mesmo?Uma saída para não permanecer ocupando posições de trabalho e emprego subalternizadas? Um caminho para a prosperidade econômica e social, mas que não parece ser capaz de promover uma mudança de paradigma econômico e social em relação à população negra?

De todo modo, para uma reflexão do afroempreendedorismo como alternativa de trabalho e renda para a população negra, parece oportuno denunciar que a razão empreendedora e a cultura do auto emprego – retóricas que sustentam o discurso do afroempreendedorismo – participando processo de precarização das condições de trabalho (e rebaixamento dos custos do trabalho para o capital) e, por isso, não têm um caráter de inclusão social mais substantiva. Segundo o economista Hélio Santos, o aumento de empreendedores negros é resultado da precarização do trabalho e do crescimento de camelôs no país. “Onde há precarização do trabalho, há empreendedores negros”.
E não, o problema não é do empreendedor por necessidade, do sujeito que não se empenhou o suficiente, de quem não levou a sério o “espírito” da questão. A lógica empreendedora, parase fazer aceita, trabalhará com dois elementos, que atingem diretamente o psíquico das pessoas: insatisfação e culpa. A própria insatisfação tornou-se mercadoria (SAFATLE, 2015, p. 165), e é por meio dela que se vendem soluções capazes de pôr fim a essa angústia: a vocação para empreender, escondida e represada no lugar mais íntimo de todos os seres – afinal, “somos todos empreendedores”–está ao alcance de todos, basta querer.

Já através da culpa, afasta-se a atividade daquilo que Weber chamou de “gozo espontâneo da vida”, aprende-se a calcular as ações a partir de sua “utilidade” suposta, é possível suportar as frustrações advindas das exigências de satisfação pulsional e conforma-se o trabalho a uma espécie de ritual obsessivo-compulsivo de autocontrole que só pode levar à formação de uma personalidade rígida e clivada (SAFATLE, 2015, p. 166), embora a uma pessoa “bem-sucedida” na sua jornada empreendedora.

As armadilhas do discurso são sutis, e é desarrazoado não compreender como elas foram – de certa forma – aceitas por uma significativa parcela da população – no caso deste trabalho, a população negra – que historicamente se viu marginalizada, não só do mercado de trabalho, mas de todos os espaços de poder, e que precisava buscar algum meio para exercer seu lugar na sociedade como cidadãos e como consumidores.
E é nesse terreno fértil de exclusão e marginalização, que o capital se apropria de uma luta identitária histórica, dando ensejo a discursos como do blackmoney, afroconsumo, empreendedorismo negro, basicamente com o slogan de que o dinheiro deve circular entre os afrodescendentes, no intuito de gerar riquezas para o coletivo,incentivando e instrumentalizando o (a) empreendedor (a) negro (a) a desenvolver e potencializar habilidades que tragam diferencial competitivo para sua vida profissional. A questão é: no plano fático, qual o verdadeiro impacto do empreendedorismo realizado por pessoas negras, pensando em uma realidade coletiva, na qual esta população, segundo o último Censo realizado no país, ultrapassa a faixa de mais de 50% de habitantes? Foi este capaz de mitigar a precarização das relações de trabalho, habitação, saúde e educação para a população negra?

Então, precisamos falar sobre essa razão empreendedora e perguntar: a quem de fato ela interessa e privilegia? Porque sim, o empreendedorismo traz consigo a circulação de riquezas, exploração de mão-de-obra, manutenção de privilégios, seleção de consumidores. Tudo depende da ótica pela qual será analisado: se do ponto de vista do capital ou da crítica ao mesmo.
Da mesma forma, é preciso questionar o empreendedorismo à brasileira, que cada dia mais tem cooptado a população negra, obscurecendo o entendimento sobre a complexa relação capital-trabalho, e também camuflando a importância do debate sobre políticas públicas para a seguridade social, trabalho, habitação, saúde, educação e segurança pública, temas que atravessam esta população de urgente, precisamente pela exclusão social. Não será dentro dessa lógica individual e mercantil, que reforça e intensifica a exploração do trabalhador pelo capital, a saída para um projeto de nação menos racista, excludente e desigual.

REFERÊNCIAS

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Reforma trabalhista e a liberalização irrestrita da terceirização: seres humanos em terceiro plano

Labor reform and the unrestricted liberalization of outsourcing: human beings in third place

Bruna da Penha de Mendonça Coelho

Resumo: Em 2017, foram aprovados dois projetos de lei que põem em xeque garantias históricas da classe trabalhadora: um atinente à terceirização e ao trabalho temporário (Lei 13.429/2017) e, pouco tempo depois, a Lei 13.467/2017.O conjunto de tais investidas, que se convencionou chamar reforma trabalhista, traz dispositivos restritivos e mesmo aniquiladores de direitos trabalhistas básicos, envolvendo, inclusive, questões concernentes à integridade psicofísica do trabalhador (de que é exemplo central a jornada de trabalho). Como pano de fundo, tem-se a retomada discursiva do velho mito da autonomia privada, ignorando o mais agudo conflito capital-trabalho. E é um dos aspectos mais problemáticos da reforma que se tem como objeto de análise no presente estudo: a liberalização irrestrita da terceirização (art. 2º da Lei 13.467/2017).Terceirização irrestrita é uma contradição nos próprios termos. Significa intermediação de mão de obra, equiparar o homem a uma mercadoria como qualquer outra. É a ruptura mais completa de todo arcabouço principiológico justrabalhista e a subversão mais profunda da noção primeira de trabalho enquanto atividade vital consciente (cf. MARX, 2008, pp. 84-85). Todos os indicadores deixam nítida a precarização da relação de trabalho operada pela terceirização, constituindo mecanismo dos mais graves de espoliação e alienação do trabalho.

Palavras-chave: Reforma trabalhista; Terceirização irrestrita; Precarização.

Abstract: In 2017, two bills that threaten historic guarantees of the working class were approved: one related to outsourcing and temporary work (Law n. 13429/2017) and, shortly after, the Law n. 13467/2017. The whole of these measures, known as labor reform, contains provisionswhich limit and even annihilate basic labor rights, including questions concerning to worker’s psychophysical integrity (a central example is the one involving the working day). A discursive retaking of the old myth of private autonomy is operated in the background, ignoring the deepest capital-labor conflict. And one of the most problematic aspects of the reform is the object of analysis in the present study: the unrestricted liberalization of outsourcing (article 2 of Law n. 13467/17). Unrestricted outsourcing is a contradiction in terms. It means labor intermediation, equating man with a commodity like any other. It is the most complete rupture of the principles of labor law and the deepest subversion of the first notion of work as a conscious life-activity (Marx, 2008, pp. 84-85). All the indicators make clear the precariousness of the labor relationship operated by outsourcing,which is one of the most serious mechanisms of spoliation and alienation of labor.

Keywords: Labor reform; Unrestricted outsourcing;Precarization

1. Introdução
O momento político brasileiro atual se caracteriza pela convergência de forças que, comprometidas com um projeto neoliberal de governo, têm conseguido levar a cabo verdadeiros retrocessos em termos de legislação social. Nesse cenário, no que tange especificamente ao direito do trabalho, foram aprovados dois projetos de lei que ameaçam diretamente garantias históricas da classe trabalhadora: um atinente à terceirização e ao trabalho temporário (Lei 13.429/2017, que resultou da recolocação em pauta do antigo PL 4.302/1998, não obstante houvesse outros projetos de lei mais recentes sobre o tema sendo discutidos nas próprias casas legislativas) e, pouco tempo depois, aLei 13.467/2017.

A reforma trabalhista, nomenclatura que se convencionou dar ao conjunto de tais investidas, envolve dispositivos limitadores e até extirpadores de direitos trabalhistas básicos, o que inclui questões concernentes à própria integridade psicofísica do trabalhador (o tratamento dado ao tema da jornada de trabalho é um exemplo central). Tem-se como pilar a retomada discursiva do velho mito da autonomia privada, ignorando o mais profundo conflito capital-trabalho. E é de um dos aspectos mais problemáticos da reforma que se trata aqui: a liberalização irrestrita da terceirização (art. 2º da Lei 13.467/2017).

Terceirização de atividade-fim é uma contradição nos próprios termos. Se o objetivo da prática, como argumentam seus defensores, é impulsionar a produtividade através da contratação de serviços especializados, a fim de que a atividade empresarial possa se concentrar no seu objeto precípuo, qual o sentido de terceirizar justamente essa atividade principal? Por que inserir um terceiro estranho nessa relação laboral? De onde esse terceiro vai extrair seu lucro? Qual a mágica que vai fazer essa conta fechar? Ou melhor, às custas de quem essa conta poderá fechar? Talvez essa aparente contradição se explique por um motivo muito simples: escancara-se agora o que a terceirização sempre foi no cotidiano das relações de trabalho no Brasil: expediente de redução de custos, isenção de responsabilidades e desarticulação da classe trabalhadora. E isso é extremamente preocupante, sobretudo se observados os dados referentes às condições laborais do trabalhador terceirizado.

Não é difícil perceber que, historicamente, muito embora o cenário que propiciou a eclosão e o alastramento da terceirização tenha sido marcado pela crise econômica por que passava o país no último quarto do século passado (paralelamente aos reflexos da chamada Terceira Revolução Industrial e ao surgimento de novos modelos gerenciais), a prática não recuou com o movimento de retomada da economia verificado a partir dos anos 2000. Longe disso, difunde-se cada vez mais. A fragmentação dos postos de trabalho e a desconcentração do processo produtivo ensejaram significativas mudanças no paradigma bilateral empregado-empregador da relação de trabalho.
Não foi uma fase transitória ou passageira. Tampouco se trata de fazer aqui uma crítica vazia aos mecanismos de busca de maior eficiência no processo produtivo. Ocorre, simplesmente, que os ganhos não podem se revelar unilaterais. Se a terceirização proporciona tamanho benefício em termos de reorganização e eficiência produtivas, como alegam seus entusiastas,é inconcebível que a condição laboral e social do trabalhador terceirizado sofra retrocessos tão significativos quanto os que passaremos a expor a seguir. É uma contradição interna tão flagrante e tão duradoura que há muito não se satisfaz com o discurso de “vamos esperar o bolo crescer para depois dividi-lo”. Porque o bolo já cresceu e tudo indica que o sonhado dia da divisão nunca chegará.

2. A ruptura do arcabouço justrabalhista

É justamente em momentos de crises econômicas ou instabilidades políticas que costuma ganhar força um discurso que tende a acusar a classe trabalhadora, cujas condições de labor já são extremamente precárias, de ser o grande “empecilho ao desenvolvimento nacional”. Esse discurso é, para dizer o mínimo, curioso, se pararmos para analisar que a conjuntura em que vivemos permite que empregadores se financiem com a remuneração de seus empregados. Podemos citar ainda, apenas a título de exemplo, o fato de existir um dispositivo constitucional que criminaliza a retenção dolosa de salário, mas que, quase trinta anos depois, não foi ainda regulamentado.
Nesse cenário desolador, o trabalho humano (e, por via de consequência, o próprio trabalhador) se transforma em um produto como outro qualquer, deixando transparecer a verdadeira face da prática: seu caráter de intermediação de mão de obra. Não se trata de mero jogo de palavras, mas de uma subversão completa de todos os princípios mais básicos que pautam o direito do trabalho. Pode-se falar mesmo em uma ruptura do sistema trabalhista, que foi construído fundamentalmente sobre as figuras do empregado e empregador (CARELLI, 2003, pp. 150-152).

Tudo cai por terra quando a figura do empregador é retirada dessa relação, para ser substituída por um intermediador. A menção aos fatores subjetivos da relação laboral (dentre os quais a confiança, que constitui verdadeira base do contrato de trabalho), tão presente no âmago dos dispositivos da CLT, perde seu sentido e sua razão de ser. Faz-se desmoronar, a um só tempo, a confiança e a pessoalidade que devem permear o contrato de trabalho. É nessa esteira que Rodrigo de Lacerda Carelli (2003, p. 152) questiona: “Ora, para que servirão, então, os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho? […] O sistema inteiro protetor ruirá, pois sua base foi retirada”.
A intermediação de mão de obra é prática cuja repugnância já foi constatada há muito, porque equipara o homem a uma mercadoria. Admiti-la significa recuperar a lógica de atentados históricos aos direitos da pessoa e do trabalhador, de que é exemplo a escravidão (cuja abolição parece ter sido apenas nominal). Ou mesmo a condição da classe trabalhadora na virada do século XVIII para o XIX, que era desafiada a sobreviver diante de um quadro de extrema penúria. As codificações exibiam com orgulho o princípio da autonomia privada e a garantia do direito de propriedade, e o trabalhador era visto “como uma mercadoria qualquer, sujeita às mesmas regras da oferta e da procura” (BRANDÃO, 2011, p. 89).

Note-se que a crítica não é exclusiva aos moldes da terceirização brasileira, uma vez que ela está inserida em um processo mais amplo, que é o próprio funcionamento do sistema capitalista e a tensão capital-trabalho. O que ocorre aqui é que o efeito negativo que recai sobre a classe trabalhadora se potencializa, tendo em vista a exclusão que já se faz presente em decorrência da dominação imperialista e do passado (será que é só passado mesmo?) colonial e escravista.
A lógica da terceirização não escapa, assim, da lógica que move o capitalismo como um todo: as empresas principais buscam superar a crise transferindo o ônus para os “parceiros”; o que, em última instância, recai sobre os ombros da classe trabalhadora. Nos países periféricos, a adoção da terceirização vem acentuar o caráter excludente do padrão de acumulação, tornando mais visíveis a precarização do trabalho e o desemprego, diminuindo o núcleo de trabalhadores com vínculo empregatício e todos os direitos trabalhistas garantidos. (MARCELINO, 2006, p. 5).

Quando se menciona aqui as peculiaridades do fenômeno terceirizante no Brasil, não se quer dizer, em absoluto, que exista um tipo ideal de terceirização e um tipo degenerado próprio ao país. A questão é muito mais complexa, pois perpassa, no fundo, a potencialização de uma engrenagem de exploração que já está na base das relações laborais em geral (a engrenagem da extração da mais-valia no modo produtivo capitalista). Refere-se, então, mais propriamente, a um conjunto de práticas que dão o tom da aplicação do instituto no cotidiano das nossas relações de trabalho. Práticas cujos impactos nas condições de vida e de trabalho dos terceirizados são muito palpáveis. Ou seja, é preciso problematizar o processo de neutralização procedimental do instituto terceirização, que tende a dissociá-lo da realidade e reforçar a invisibilização do trabalhador terceirizado, ocultando as graves violações de direitos que são tão corriqueiras nessa especial relação laboral.
É curioso notar que a própria denominação terceirização é exclusiva da prática nacional, deixando clara a “real intenção do empresariado brasileiro no repasse a ‘terceiro’, no sentido de ‘outro’, da posição de empregador na relação empregatícia (e consequentemente da responsabilidade sobre os encargos e direitos trabalhistas) com seus empregados”. Nem mesmo em Portugal e nos demais países de língua latina há expressão semelhante, sendo o fenômeno costumeiramente denominado de subcontratação, externalização ou contratação de serviços (CARELLI, 2014, pp. 57-58).
Qualquer teoria que se proponha a contribuir, de alguma forma, para a desnaturalização dos processos de perpetuação de desigualdades, requer que se parta, sempre que possível, do sujeito concreto da injustiça. O momento em que se verifica alguma distorção entre realidade e ideal normativo é comumente negligenciado pelo operador do direito, como se fosse um desvio de curso que não merecesse maiores atenções (ainda que a dita “exceção” se transmute em regra para todos aqueles que são invisibilizados por esse mesmo direito).
No que concerne à terceirização, os dados referentes à condição do trabalhador terceirizado, desde o salário à articulação sindical, são particularmente alarmantes. A faixa salarial mais baixa, a jornada laboral mais longa, o índice mais elevado de acidentes de trabalho, a alta rotatividade, bem como os índices de desmobilização da luta coletiva, indicam que há algo de muito errado nessa conta. Nessa conta que não fecha. Nessa conta que é paga justamente por aqueles que não são chamados a sentar-se à mesa. Mesa que foi posta com o fruto de seu próprio trabalho.

3. A condição do trabalhador terceirizado

3.1. Salário

Afirma Mauricio Godinho (2014, p. 491) que há “três vias combinadas de controle civilizatório da terceirização”, para que se possa reconhecer adequação jurídica da prática ao direito do trabalho. São elas: isonomia remuneratória, responsabilidade trabalhista, e representação e atuação sindicais.

De fato, causa estranheza que duas pessoas que desempenham um trabalho de igual valor percebam diferente remuneração, violando a cláusula constitucional de não discriminação. A garantia de isonomia salarial está disposta no artigo 641 da CLT e é regulada ainda pela Súmula nº 6 do TST, fazendo-se necessária a presença simultânea de certos requisitos para o reconhecimento da equiparação salarial (identidade de empregadores, de local de trabalho e de funções, bem como a concomitância da prestação de serviços).

A questão da isonomia salarial se colocou, em um primeiro momento, nos casos de terceirizações ilícitas levadas a cabo pelo Poder Público. O mecanismo de estabelecimento de vínculo jurídico diretamente com o tomador de serviços (que, no caso, é a entidade estatal) se mostrava inviável, uma vez que a Constituição Federal exige a realização de concurso público para tanto (art. 37, II e §2º, CRFB).

A jurisprudência precisava, então, encontrar alguma ferramenta apta a consertar a situação de iniquidade gerada pela terceirização ilícita perpetrada pela entidade estatal. Isso porque a exigência do artigo 37, pautada pelo princípio da moralidade e impessoalidade administrativas, não está isolada dos demais princípios constitucionais. Não se trata de um cheque em branco a permitir que se negligencie a valorização do trabalho humano (artigos 1º, IV; 3º, III; 170, caput, CRFB – apenas para citar alguns exemplos) e a garantia basilar de tratamento isonômico consagrada no artigo 5º da Carta Constitucional. Do contrário, teríamos uma situação absurda de privilégio concedido às entidades estatais para a exploração (ainda por cima irregular) do trabalho.
A forma encontrada para reduzir os efeitos discriminatórios perversos gerados pela terceirização ilícita seria a observância da isonomia, no sentido de conferir ao trabalhador terceirizado ilicitamente as verbas trabalhistas devidas ao empregado estatal direto que exerça igual função na entidade tomadora (ou as verbas próprias àquela função). Isso se deve ao fato de que, na seara do direito do trabalho, o nulo produz alguns efeitos, já que a força de trabalho e a energia dispendida não podem ser devolvidas ao trabalhador. Na forma do item IV da Súmula nº 331 do TST, o empregador (a prestadora) responde diretamente pelas verbas resultantes da isonomia remuneratória, recaindo a responsabilidade subsidiária sobre a entidade do Poder Público (DELGADO, 2014, p. 493).
Quanto à terceirização lícita, já antes da reforma, havia uma resistência relativamente forte na jurisprudência para reconhecer o direito à isonomia. Costuma-se objetar à equiparação de salários do trabalhador terceirizado e do não terceirizado o fato de que não há, nessa hipótese, identidade de empregadores, já que aquele não é juridicamente empregado do tomador de serviços, e sim do prestador, o que afastaria a incidência do artigo 641 da CLT e da Súmula nº 6 do TST. Ocorre que, quando se analisa o instituto à luz do ordenamento como um todo, verifica-se que não há razão para tamanha resistência. A vedação à discriminação na Carta Constitucional é suficientemente clara, sobretudo se combinarmos a cláusula genérica do artigo 5º com a disposição específica do artigo 7º, XXXII. A proteção ampla do salário também é abarcada no texto constitucional (art. 7º, VI, VII e X, CRFB).

Nessa esteira, sustenta Godinho (2014, p. 494):

Insista-se que a fórmula terceirizante, caso não acompanhada do remédio jurídico da comunicação remuneratória, transforma-se em mero veículo de discriminação e aviltamento do valor da força de trabalho, rebaixando drasticamente o já modesto padrão civilizatório alcançado no mercado de trabalho no país. Enxergar na terceirização um mero instrumento de tangenciamento da aplicação da legislação trabalhista é suprimir o que pode haver de tecnologicamente válido em tal fórmula de gestão trabalhista, colocando-a contra a essência do Direito do Trabalho, enquanto ramo jurídico finalisticamente dirigido ao aperfeiçoamento das relações de trabalho na sociedade contemporânea.
Esse cenário levou a graves distorções e à desvalorização crescente do trabalho terceirizado. A faixa salarial significativamente menor confirma que a dita técnica de gestão tem funcionado, ao revés, como mecanismo de mera diminuição de despesas operado às custas do trabalho humano.

Trata-se de fenômeno sistemático, que se observa não apenas a nível nacional. A título de exemplo, no relatório técnico elaborado pelo Sistema de Acompanhamento de Contratações Coletivas do DIEESE, publicado em dezembro de 2007, encontra-se a informação de que os trabalhadores indianos da área de computação, contratados por terceiras empresas, receberiam entre 1/5 e 1/10 do valor percebido pelos trabalhadores locais (americanos) dotados da mesma qualificação. Estima-se que a busca de vínculos trabalhistas com empresas estrangeiras, ainda que sejam vínculos indiretos, se explica pelas condições sócio-econômicas do país de origem, que levam a uma busca por melhores condições de vida ou mesmo uma imigração (O processo de terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil, 2007, p. 20).

O padrão salarial é um índice cristalino da precarização do trabalho terceirizado. Indicadores já de 1992 dão conta da depreciação da sua faixa remuneratória. Dados do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista apontam que, no setor automotivo, o salário médio pago nas empresas de autopeças em junho de 1992 era por volta de 385 dólares, ao passo que o salário pago nas montadoras era cerca de 599 dólares (Sindicato dos Metalúrgicos do ABC rumo à unificação, 1993, p. 34).
Muito embora o domínio do objeto de pesquisa tenha sido um determinado setor em uma determinada localidade, de sorte que não é possível tomar o resultado como representativo do processo de terceirização como um todo no país, os dados são expressivos e possibilitam traçar um paralelo histórico no que concerne à condição salarial do trabalhador terceirizado. Sobretudo se levarmos em consideração o fato de que a área automotiva foi por excelência o paradigma de aplicação do modelo de desconcentração do processo produtivo, sendo o ABC paulista um poderoso polo do setor.

O ponto nodal é que a depreciação salarial não é um fenômeno que existiu em algum lugar do passado. Ao revés, assola cotidianamente a realidade do trabalho terceirizado no país, indicando que a exploração só tende a aumentar. Dados do dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores, elaborado em 2014 pelo DIEESE e pela CUT, apontam que a remuneração percebida pelo trabalhador terceirizado em dezembro de 2013 foi, em média, 24,7% menor do que a do trabalhador não terceirizado. Em 2010, a diferença foi ainda maior (de 27,1%), podendo-se atribuir a tímida melhoria ao aumento do salário mínimo, não a uma eventual tentativa de minimização das disparidades entre os dois grupos de trabalhadores (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 13).

E é extremamente preocupante que agora haja uma chancela legal explícita à distinção salarial, ao se prever que “contratante e contratada poderão” (sim, esse é o verbo) “estabelecer, se assim entenderem, que os empregados da contratada farão jus a salário equivalente ao pago aos empregados da contratante” (art. 2º da Lei 13.467/2017).

3.2. Jornada

O estabelecimento da jornada de trabalho sempre foi, historicamente, objeto de intensas lutas entre empregados e empregadores. É sobre a força de trabalho (refletida na jornada) que recai, classicamente, a exploração e a extração da mais-valia por parte do capitalista, sobretudo na vertente da mais-valia absoluta, já que se trabalha mais tempo que o socialmente necessário para reproduzir a própria força de trabalho.
De fato, a questão da jornada de trabalho parece estar ainda, em larga medida, no cerne das discussões acerca dos limites a serem fixados à exploração da força de trabalho alheia. Basta ver a quantidade de pleitos levados ao Poder Judiciário envolvendo, por exemplo, a prestação ou não de horas extras. Por mais que o desenvolvimento tecnológico venha se expandindo em velocidade significativa, o trabalho humano ainda é o princípio motor de todo e qualquer processo produtivo.

Afinal:

“É o trabalhador!
Aquela mão perfeita que faz
toda a beleza de uma indústria
ou de tudo quanto são obras;
sem que a mão toque, nada feito.
Tudo pode ser automático,
mas feito pelo trabalhador.
E sem que acione uma alavanca,
Ou um botão seja tocado,
Nada feito.”

(PACHECO, 2006, p. 47)

O controle da jornada de trabalho envolve considerações de ordem humana. Isso porque o direito do trabalho não é apenas obrigacional, mas também pessoal. Não se trata de mera questão matemática ou de contabilidade; trata-se da proteção da saúde física e psíquica do trabalhador. Também a qualificação da mão de obra demanda tempo. Além disso, estão contidas no debate ponderações referentes ao combate ao desemprego, uma vez que, com a pactuação de jornadas mais curtas, abrem-se mais postos de trabalho.

A ideia de dividir o dia em três momentos de oito horas (um para o lazer, um para a vida privada e outro para o trabalho) vem desde as revoltas operárias do século XIX. De lá para cá, muita coisa mudou, de fato. Mas mudou no sentido de criar entraves cada vez maiores ao deslocamento do trabalhador até seu local de trabalho, seja pela localização geográfica das residências, seja pela qualidade pífia do nosso transporte público. O abrandamento da jornada de trabalho seria o caminho minimamente coerente para mitigar essas graves distorções, mas, ao contrário, forças político-econômicas têm conseguido se valer de seu poder institucional e ideológico para impulsionar um movimento tendente ao sentido diametralmente reverso.

E se a situação já é bastante crítica para o trabalhador contratado diretamente, para o terceirizado o quadro se agrava. Dados do DIEESE e da CUT apontam que, quanto à jornada contratada, os trabalhadores terceirizados laboram, em média, três horas a mais por semana (isso sem considerar horas extras ou banco de horas, já que não fazem parte do levantamento realizado pelo MTE), o que é bastante expressivo. Ainda segundo o aludido dossiê, caso as jornadas de ambos os trabalhadores fossem equivalentes, seriam geradas 882.959 vagas de trabalho a mais (sem sequer levar em conta horas extraordinárias e ritmo de trabalho, que são mais acentuados entre os terceirizados, conforme relatos dos dirigentes sindicais). (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 15)

3.3. Acidente de trabalho

Furamos a terra, morremos debaixo dela para tirar o ouro.

Nosso mundo real é outro. Pesado. Tem cheiro de morte. (Depoimento de trabalhador das minas de Nova Lima, MG, 1981. Trabalho e trabalhadores do Brasil, 2006, p. 28)

A questão do acidente de trabalho no âmbito das práticas de terceirização é especialmente sensível, haja vista a farta estatística de infortúnios envolvendo esses trabalhadores. Em grande medida, essa tragédia humana advém da ideia de valer-se da relação trilateral como subterfúgio tendente à exoneração de responsabilidades.

Verificou-se importante mudança de paradigma no tratamento da proteção à saúde do trabalhador com a aprovação da Convenção nº 155 da OIT, em 1981, se comparada com a disciplina dos tratados firmados até então. A ótica individualista se viu superada, de forma que o direito passou a ser compreendido como elemento integrante do conceito de meio ambiente (meio ambiente do trabalho, particularmente). (BRANDÃO, 2011,p. 91)

O constituinte de 1988 trouxe um vasto rol de direitos e garantias fundamentais, deixando claro que ele é meramente enumerativo, razão pela qual outros devem ser reconhecidos, desde que afins com a tábua axiológica da Constituição, incluindo os previstos nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Tendo em vista o grande número de convenções destinadas à proteção da saúde do trabalhador, a regra do §2º do art. 5º da CRFB ganha especial importância. O direito à saúde e à segurança, bem como o de meio ambiente do trabalho saudável, são tidos como dos mais relevantes na ótica constitucional. O princípio da integridade psicofisiológica do trabalhador pode ser extraído do artigo 7º, XXII, da CRFB, bem como do artigo 200, II. No mesmo sentido, os artigos 200, VIII, e 225, §3º, todos da Carta Constitucional, albergam o princípio da proteção do meio ambiente do trabalho.

A lógica distorcida da monetização da saúde do trabalhador, que foca no pagamento de adicionais e eventuais indenizações, em detrimento de medidas eficazes para a prevenção de acidentes e minimização/exclusão de riscos, tem trazido assombrosos resultados. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, a cada 15 segundos morre um trabalhador por acidente ou doença profissional e 115 sofrem um acidente laboral (Notícia OIT: um trabalhador morre a cada 15 segundos por acidentes ou doenças relacionadas ao trabalho). No Brasil, de acordo com o mais recente Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho (AEAT, edição de 2014, p. 15) do Ministério da Previdência Social e do Ministério do Trabalho e Emprego, foram registrados 704.136 acidentes do trabalho no ano de 2014.

O trabalhador terceirizado está mais sujeito a infortúnios no ambiente laboral, sendo algumas das razões: falta de investimentos adequados em medidas de prevenção, não recebimento do devido treinamento, não se cobra a utilização do EPI, e assim por diante. Frequentes são as notícias transmitidas em veículos de informação dando conta de acidentes de trabalho, inclusive fatais, envolvendo esses trabalhadores. Na construção civil, os números são especialmente alarmantes, podendo-se citar como exemplo a morte de oito trabalhadores (todos terceirizados) no curso das obras dos estádios para a Copa do Mundo de 2014 (não obstante a ampla cobertura da mídia). (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 23-24)

O setor elétrico também é palco de graves violações à saúde do trabalhador e à segurança do ambiente laboral. A terceirização no setor cresceu no transcurso da década de 1990, em um cenário de estímulo às privatizações. Segundo dados fornecidos pela Fundação Comitê de Gestão Empresarial (COGE), dos 227,8 mil trabalhadores do setor elétrico em 2008, 126,3 mil eram terceirizados – número que poderia ser ainda maior, já que certas sociedades omitem informações relativas ao quadro de trabalhadores terceirizados (Terceirização e morte no Trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro, 2010, pp. 2-5). Dados do Relatório da Fundação COGE também dão conta que, em 2008, a taxa de mortalidade no setor foi de 32,9 mortes para cada grupo de 100 mil trabalhadores. E nesse mesmo ano, a taxa de mortalidade dos trabalhadores terceirizados foi 3,21 vezes superior à dos diretamente contratados: 47,5 contra 14,8 (Terceirização e morte no Trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro, 2010, p. 14). No ano de 2011, 61 das 79 mortes ocorridas no setor foram de trabalhadores terceirizados. É possível inferir dos dados da Fundação, ademais, que a maioria das mortes está atrelada a algum tipo de precariedade, tais como falta de treinamento e de equipamentos de proteção (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 24).
As estatísticas acerca das mortes de trabalhadores terceirizados na Petrobrás também são alarmantes. De 2005 a 2012, aumentou 2,3 vezes o número de trabalhadores terceirizados na estatal. A quantidade de acidentes de trabalho cresceu vertiginosamente: 12,9 vezes (Terceirização e morte no Trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro, 2010, p. 25). Segundo os dados apresentados na Revista Labor do Ministério Público do Trabalho (ano I, nº 2, 2013), por volta de 80% das mortes por acidentes de trabalho são de trabalhadores terceirizados (Labor, 2013, p. 20).

Um caso emblemático é o do petroleiro Octavio Batista de Pontes, que atuava no terminal da Baía da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Orgulhoso por trabalhar na Petrobras, Octavio era funcionário terceirizado da empresa paulista Tecma Tecnologia de Montagens Andrade. No local, havia um reservatório de ar comprimido com defeito, mas ainda assim liberado para uso. Até que no feriado da Independência de 1998, quando o petroleiro estava no trabalho, o reservatório explodiu, arrancando-lhe os braços (Labor, 2013, p. 20).

Em suma, ao buscar a terceirização, as empresas tomadoras acabam por transferir riscos inerentes ao processo laboral para as contratadas, as quais, muitas das vezes, não dispõem de condições econômicas e/ou tecnológicas adequadas para geri-los, resultando nas graves estatísticas concernentes aos acidentes de trabalho envolvendo trabalhadores terceirizados.

3.4. Rotatividade

Sabe-se que, no sistema capitalista, a grande maioria da população subsiste por meio dos frutos percebidos em troca do aproveitamento da sua força de trabalho. Em um país extremamente desigual como o nosso, a situação de vulnerabilidade do trabalhador se agrava. Privado de seu posto de trabalho, a sua própria sobrevivência e de sua família se encontra irremediavelmente ameaçada. Daí por que a alta taxa de rotatividade da mão de obra constitui uma das faces mais brutais de nossa ordem laboral.

O desaparecimento da estabilidade decenal no ordenamento brasileiro em 1988, bem como a não internalização da Convenção nº 158 da OIT, fazem com que o mecanismo da dispensa imotivada funcione como poderosa arma nas mãos do empregador. A inegável existência de um “exército de reserva” e a baixa média remuneratória tolhem a liberdade do trabalhador, colocando-o entre a cruz e a espada.

E a assombrosa taxa de rotatividade é ainda maior diante do processo de terceirização. Dados do DIEESE e da CUT dão conta de que, enquanto os trabalhadores não terceirizados permanecem, em média, 5,8 anos no seu posto de trabalho, para os terceirizados o tempo de permanência cai para 2,7 anos. A rotatividade dos terceirizados é de 64,4%, ao passo que a dos contratados diretamente é de 33% (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha, 2014, p. 15).
Esse fato tem uma série de consequências para o trabalhador, que alterna períodos de trabalho e períodos de desemprego, resultando na falta de condições para organizar e planejar sua vida, inclusive para projetos pessoais como formação profissional. Tem, também, um rebatimento sobre o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador), uma vez que essa alta rotatividade pressiona para cima os custos com o seguro desemprego. (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 15)

A elevada taxa de rotatividade impede que o trabalhador terceirizado crie uma identificação com o local onde presta serviços, sendo um dos mais sensíveis fatores de invisibilização de seu trabalho. Obsta, igualmente, a construção de um projeto profissional e o planejamento de sua vida pessoal. Ainda, juntamente com todos os outros indicadores de precarização, leva a constantes situações de exclusão e discriminação no próprio ambiente laboral, afetando sobremaneira a saúde psíquica desses trabalhadores. Discriminação essa que, muitas das vezes, começa inclusive fisicamente, por meio de separação de espaços, uniformes, dentre outros mecanismos.

3.5. Organização sindical

Durante boa parte do século XX, a forma de produzir esteve preponderantemente baseada na concentração em grandes indústrias, no intuito de gerar uma otimização da produção (que, de fato, aumentou, foi barateada e se tornou mais qualificada). Mas esse processo extremamente centralizado gerou, como efeito colateral, a articulação da classe trabalhadora, que percebia que seus semelhantes compartilhavam das mesmas condições problemáticas de trabalho e de vida.
O processo produtivo se fragmenta a partir do final do século XX, e surge também um novo desdobramento da terceirização: não apenas aquela baseada nas necessidades de descentralização do processo produtivo, mas também a que tem por fundamento a gestão de trabalhadores. Estava traçada a estratégia para neutralizar o efeito colateral que o fordismo havia causado ao sistema capitalista.

Os trabalhadores terceirizados são, via de regra, estigmatizados no próprio ambiente de trabalho. Não é difícil perceber que o potencial de articulação encontra-se minado. Muito embora possa haver uma reunião física entre trabalhadores terceirizados e não terceirizados, a invisibilização dos terceirizados impossibilita uma união que lhes possa assegurar alguma ação conjunta eficaz. A organização sindical se vê igualmente comprometida, pois ambos os grupos integram distintas categorias formais, não estando vinculados aos mesmos sindicatos. A classe trabalhadora se vê fragmentada e, por consequência, enfraquecida.
A pulverização da força de trabalho desorganiza a atuação sindical, já que tal atuação pressupõe a existência de interesses convergentes. Um sindicato que agrega trabalhadores com formação e interesses profissionais distintos, bem como diferentes vinculações a tomadores de serviços, não tem como se pretender representativo. Nesse sentido, assinala Godinho (2014, p. 497) que “[a] ideia de formação de um sindicato de trabalhadores terceirizados, os quais servem a dezenas de diferentes tomadores de serviços, integrantes estes de segmentos econômicos extremamente díspares, é simplesmente um contrassenso”.

Assim, para os trabalhadores terceirizados, não é respeitada a garantia do artigo 8º, II, da CRFB, que confere o direito a uma organização sindical representativa de categoria profissional. Uma organização sindical efetiva e representativa deveria levar em conta o fato de que todo interesse e formação profissionais do trabalhador terceirizado se acham vinculados à empresa tomadora de serviços, e não à prestadora. De fato, a expressão social elementar da categoria profissional se caracteriza pela similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas (art. 511, §2º, CLT).

Na realidade, a própria organização sindical brasileira, nos moldes traçados no artigo 8º da CRFB, traz em si, apesar dos nítidos avanços, uma série de incongruências que minam a efetiva representação coletiva. A prolatada liberdade sindical se vê tolhida por expedientes como a unicidade e o aspecto cartorial que marca nossos sindicatos. A peculiaridade é que a situação de falta de representatividade tende a se agravar com relação aos trabalhadores terceirizados.
Nesse sentido, o principal desafio do movimento sindical brasileiro se refere à própria capacidade de representação de entidades criadas para atuar em âmbitos geralmente restritos de uma configuração setor/categoria/local claramente extemporânea ante a transformação da economia brasileira, não apenas ao longo dos anos 90, mas tomando-se inclusive toda a segunda metade do século XX (Terceirização: efeitos sobre as relações de trabalho, 2004, p. 24).

De volta ao relatório técnico elaborado pelo DIEESE, foram questionados os empresários acerca dos principais objetivos a que visam ao adotar o modelo trilateral da relação de trabalho. Dentre os oito fatores apontados, dois se referem diretamente à desarticulação da ação coletiva. São eles: “enfraquecer a organização dos trabalhadores, através da pulverização das atividades em diversas empresas de menor tamanho, o que dificulta a capacidade de mobilização e facilita o controle dos movimentos” e “burlar conquistas sindicais através da terceirização de atividades, de forma a fragmentar a organização e representação dos trabalhadores e diversificar a negociação e abrangência de direitos” (O processo de terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil, 2007, p. 12).

Na mesma esteira, quando perguntados sobre os resultados positivos decorrentes da prática, dentre os quatorze aspectos mencionados, cinco não se referem ao processo produtivo, mas ao efeito desmobilizador na atuação sindical: “um novo relacionamento sindical”, “desmobilização dos trabalhadores para reivindicações”, “desmobilização para greves”, “eliminação das ações sindicais” e “eliminação das ações trabalhistas” (O processo de terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil, 2007, p. 13). Isso deixa bem evidente que, dentre as sérias distorções que a prática implica, está o impacto negativo no poder de articulação coletiva da classe trabalhadora.

3.6. Descumprimento reiterado de obrigações trabalhistas

Uma das faces mais graves da terceirização, que decorre diretamente de seu uso como mecanismo de redução de custos, é o descumprimento reiterado de obrigações trabalhistas. Atrasos e mesmo calotes generalizados são relativamente corriqueiros, sobretudo quando se aproxima o fim do contrato de prestação de serviços.

O dossiê Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha, elaborado pelo DIEESE e pela CUT, traz diversos relatos de sindicatos dando conta de sérias irregularidades, que atingem, em especial, os trabalhadores dos setores de vigilância e de asseio e conservação. O Sindiserviços do Distrito Federal, por exemplo, noticiou o calote em mais de 7.400 trabalhadores do qual foi protagonista a PH Serviços e Administração, em maio de 2014. Várias são as prestadoras de serviço que figuram como rés em incontáveis ações que tramitam na Justiça do Trabalho (Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha,2014, p. 21).
No setor público, a seu turno, os calotes também não são nada incomuns. Muito pelo contrário. Não são poucas as vezes em que o Ministério Público do Trabalho aciona o Judiciário para interceder na relação entre empresas prestadoras de serviço, governo e trabalhadores terceirizados. O Poder Público, com considerável frequência, contrata sociedades sem capital de giro adequado, e os atrasos nos repasses costumam implicar atrasos no cumprimento das obrigações trabalhistas, incluindo salário, o mais basilar dos direitos do trabalhador, em uma ilegal transferência dos riscos do negócio ao empregado.

A título de exemplo, em agosto de 2013, a Adminas Administração e a Delta Empreendimentos perceberam recursos federais (quanto aos serviços prestados aos Ministérios da Fazenda, da Justiça e da Integração, bem como ao Banco do Brasil) e deixaram de pagar salários de centenas de empregados – apenas na Adminas foram 500 trabalhadores sem receber (O processo de terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil, 2007, p. 22).

No ano de 2016, o Ministério Público do Trabalho ajuizou Ação Civil Pública referente à situação dos trabalhadores terceirizados da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cerca de novecentos funcionários foram dispensados sem que fossem honrados os direitos trabalhistas a que faziam jus e após meses sem receber salários. A recorrente falta de repasses do Governo do Estado do Rio de Janeiro, aliada à incapacidade econômica das empresas contratadas (que ilegalmente transferem os riscos do negócio a seus empregados), montam o cenário desumano de constantes atrasos de salários que assolam os trabalhadores terceirizados da UERJ, que veem a própria subsistência (e de suas famílias) gravemente comprometida todos os meses.

4. Considerações finais

Em suma, todos esses indicadores deixam nítida a precarização da relação de trabalho operada pela terceirização. E, por influírem diretamente na condição de vida e labor do trabalhador terceirizado, não deveriam ter sido negligenciados nos debates acerca das propostas de regulamentação da prática apresentadas no bojo de nosso processo legislativo. Esses indicadores envolvem padrão remuneratório mais baixo, jornada mais longa, índice especialmente elevado de acidentes de trabalho, alta rotatividade, desarticulação sindical e atrasos (ou mesmo ausência) reiterados de pagamentos.

Terceirização irrestrita significa intermediação de mão de obra, significa equiparar o homem a uma mercadoria como qualquer outra. É a ruptura mais completa de todo arcabouço principiológico justrabalhista, é a subversão mais profunda da noção primeira de trabalho enquanto atividade vital consciente . Constitui, portanto, mecanismo dos mais graves de espoliação e alienação do trabalho, de exploração e de estranhamento de si e do mundo.

Os prenúncios precipitados (o que é quase um pleonasmo) de crise ou mesmo fim da sociedade do trabalho se revelaram infundados. O capital financeiro não se desgarra do capital funcionante extrator de mais-valia. Em outras palavras, ainda é por meio do rearranjo das dinâmicas laborais e, consequentemente, do controle da exploração, que o capitalismo contorna suas crises. Não é de se espantar, portanto, que direitos trabalhistas tenham funcionado tão prontamente como moeda de troca em um cenário de instabilidade político-econômica.

Reafirmar a centralidade do trabalho na sociedade hodierna é importante passo na construção de estratégias de resistência por parte da classe trabalhadora. A espoliação e a usurpação do trabalho alheio ainda configuram a forma pela qual o capitalismo se reproduz, e negá-lo implica concorrer, direta ou indiretamente, para o enfraquecimento da luta coletiva. Em tempos de intensificação da exploração e robustecimento de investidas alinhadas com os interesses do capital, mostra-se premente recolocar o debate na ordem do dia.

Referências bibliográficas

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Flexibilização ou precarização? Impactos do Programa de Seguro-Emprego

Flexibilization or precarization? Impacts of the employment protection program

Angélica Kely de Abreu
Mylena Devezas Souza

Resumo: O presente projeto tem como objetivo o estudo dos impactos do Programa de Proteção ao Emprego (PPE) instituído pelo governo Dilma e mantido pelo governo Temer, com algumas alterações, como Programa de Seguro-Emprego. O acelerado processo de flexibilização das relações de trabalho tem sido apresentado pelos empresários e governantes como solução para a crise econômica marcada por altos índices de desemprego no Brasil. Neste sentido, a Medida Provisória 680/2015 que instituiu o PPE como uma forma flexibilizada de garantia dos postos de trabalho obteve a adesão de empresas em concordância com sindicatos, gerando efeitos práticos na vida dos trabalhadores. Dessa maneira, através de um estudo teórico problematizaremos até que ponto a adesão a esse novo instituto significou um aumento da precarização das relações de trabalho? Para isso, se compreenderá o PPE através de um olhar crítico como parte de uma proposta mais ampla de mudança das leis trabalhistas, consubstanciada pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017).

Palavras-Chave: Precarização; Flexibilização; Programa de Proteção ao Emprego.

Abstract: This article discusses the impacts of the Employment Protection Program (EPP) established by Dilma government and maintained by the Temer government, with some changes, as Employment Insurance Program. The accelerated process of flexibilization of labor relations has been presented by businessmen and politicians as a solution to the economic crisis marked by high unemployment rates in Brazil. In this sense, Provisional Measure 680/2015 established the EPP as a flexible form of job security and obtained the adhesion of companies in agreement with unions, generating practical effects on workers’ lives. In this way, through a theoretical study, we will question how the adherence to this new institute has meant an increase in the precariousness of labor relations? For this, the EPP will be understood through a critical vision as part of a broader proposal to change labor laws, embodied by labor reform (Law 13467/17).

Keywords: Precariousness; Flexibilization; Employment Protection Program.

Por trás da conversa mole de flexibilização e racionalização de trabalho está outro capítulo, versão periferia dependente, da volta triunfante do capital ao seu paraíso perdido do deixa-fazer total, pisando, no caminho, em todos os direitos conquistados pelo trabalhador em cem anos (Luis Fernando Veríssimo, 1999:18, O novo começo) .

1. Introdução

Os últimos anos têm sido palco, no Brasil e no mundo, de um processo profundo de mudanças nas relações de trabalho. Flexibilização, precarização, terceirização, informalidade, autoemprego integram um novo léxico que se instalou a reboque da reconfiguração da relação capital-trabalho, em mais uma de suas cíclicas adaptações às crises constitutivas do capitalismo.
As origens deste processo podem ser encontradas já na década de 1970, quando um conjunto simultâneo de fatores – entre os quais podem ser alinhados a crise do petróleo, o fim da guerra fria, a crescente financeirização do capital, avanços tecnológicos na automatização da produção e, em especial, nas comunicações e transportes, com a consequente globalização das etapas produtivas e de padrões culturais e de consumo – constroem um quadro de crise econômica, servindo de fio condutor para a sedimentação de uma nova racionalidade política e econômica, o neoliberalismo.
As origens do neoliberalismo, enquanto formulação teórica, remontam à década de 1940 (considerando-se o seu texto fundacional O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, de 1944). Somente na década de 1970, no entanto, o fim da “era de ouro” do capitalismo fordista, o discurso plasmado na negação do intervencionismo estatal e nas políticas de bem-estar social oferta-se como solução para a crise econômica. Os governos Tatcher e Reagan simbolizam a virada política que albergou este conjunto de ideias, desde então se expandindo ao encontro do presente, onde agudizam suas consequências, em especial o predomínio do capital financeiro e de padrões flexíveis de acumulação (HARVEY, 2014), concentração de renda sem precedentes e a profunda fragilização da classe trabalhadora e de seus mecanismos tradicionais de organização e luta:

[…] o movimento mais flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo. Na medida em que a ação coletiva se tornou, em consequência disso, mais difícil – tendo essa dificuldade constituído, com efeito, a meta central do impulso de incremento do controle do trabalho – , o individualismo exacerbado se encaixa no quadro geral como condição necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a acumulação flexível (HARVEY, 2014, p. 161).

Neste novo quadro chama atenção um elemento central: o trabalhador encontra-se especialmente premido pela insegurança. A rede protetiva longamente construída desde o século XVIII, na forma de limitações à exploração e disponibilização da força de trabalho pelo capital esfacela-se, dia após dia, concretizando-se em alterações na estrutura jurídica que amparava, mesmo que de forma insuficiente, o trabalhador.

O objetivo deste texto é desvelar a ponte existente entre a mencionada insegurança e as alterações legislativas que afetam as relações trabalhistas nos últimos anos. E refletir sobre o papel que assume esta mesma insegurança no quadro geral que se configura no mundo de trabalho do Brasil. Ela parece exercer uma função crucial, que atua no coração de uma nova racionalidade disciplinar, “uma nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016), a docilizar, pelo medo, a classe trabalhadora, abrindo caminho para uma nova onda de expropriações acumulativas que alimentam o capital em sua readaptação evolutiva.

A ênfase será dada, em primeiro lugar, ao Programa de Seguro-Emprego -PSE (originalmente Programa de Proteção ao Emprego – PPE), instituído, ainda no governo de Dilma Rousseff, pela Lei 13.189/2015. Serão destacados, ainda, alguns pontos das Leis n. 13.429/2017 e 13.467/2017, que vem sendo conhecidas como a “Reforma Trabalhista”. O que se identifica em comum entre as alterações legislativas a serem brevemente analisadas é, justamente, o seu potencial de produzir insegurança na classe trabalhadora.

Nesse sentido, abordaremos os impactos das atuais reformas trabalhistas no que tange à aplicação de institutos de suspensão do contrato de trabalho, diminuição da jornada de trabalho e da remuneração, tais como lay-off, previsto no artigo 476-A da Consolidação das Leis Trabalhistas, com enfoque no Programa de Proteção ao Emprego (Medida Provisória 680/2015) e no Programa de Seguro-Emprego (Lei 13.456/2017). O lay-off é uma suspensão do contrato de trabalho que é “vendido” como medida alternativa à demissão do trabalhador. Trata-se de uma bolsa qualificação, sendo um desdobramento do seguro-desemprego.

Há distinções sobre lay-off e PPE. O primeiro é uma suspensão do contrato de trabalho, ou seja, o trabalhador se afasta da empresa, realizando um curso de qualificação, há um desconto nas parcelas do seguro-desemprego as quais faz jus, os recolhimentos para FGTS e INSS são suspensos, o limite de duração é cinco meses e é custeado pelo FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Já no PPE, não há suspensão do contrato de trabalho, o labor continua, porém como uma redução da jornada de trabalho, os recolhimentos para o INSS e FGTS permanecem (com alteração da base de cálculo), há uma duração máxima de doze meses e a fonte de custeio é o FAT.
Ressaltamos que o PPE foi instituído pelo governo de Dilma Rousseff através da Lei 13.189/15 , dispondo sobre a possibilidade de redução de jornada de trabalho e de salário em até trinta por cento, com compensação pecuniária equivalente a cinquenta por cento do valor da redução salarial e limitada a sessenta e cinco por cento do valor máximo da parcela do seguro-desemprego enquanto perdurar o período de redução temporária da jornada de trabalho, tendo como duração até o ano de 2017, sendo que a adesão pelas empresas poderia ser realizada até dezembro de 2016.

Contudo, em dezembro de 2016, Michel Temer editou a Medida Provisória 761/2016 que tornou permanente o programa em tempos de crise, sendo denominado não mais como PPE e sim Programa de Seguro-Emprego (PSE). Entre as principais mudanças estão o caráter permanente do programa (no PPE seria até 2017), a redução do período de garantia do emprego, a autorização da realização de horas extras durante a vigência do programa e a permissão ao governo alterar, por decreto, as regras do programa. Dessa forma, discorreremos sobre as mudanças estruturais na economia brasileira, a interferência da política neoliberal – enfatizaremos o neoliberalismo devido ao seu papel no processo de precarização das relações trabalhistas (CASTRO, 2016) –, os impactos dos novos programas adotados pelo Estado, ensejadores da flexibilização dos direitos trabalhistas e suas consequências.

O presente debate se torna relevante, pois no cenário político-econômico atual o que se evidencia é uma precariedade crescente nos direitos trabalhistas, onde o negociado sobressai ao legislado (COSTA, 2005) e onde se criam medidas provisórias, emendas constitucionais que ignoram as leis trabalhistas, colocando o trabalhador como mero espectador da retirada de seus direitos, tanto trabalhistas, quanto previdenciários. Assim, diante um cenário neoliberal, entende-se que, ainda que se tenha um emprego sem garantias e sem direitos, dê-se por satisfeito por estar empregado. Conforme ensina Márcia da Silva Costa (2005) na sua obra “O sistema de relações de Trabalho no Brasil: alguns traços históricos e sua precarização atual”, a reestruturação produtiva é a responsável pelo predomínio desse medo iminente do desemprego, pois, “a reestruturação produtiva nas empresas faria do desemprego o grande vilão do processo de retração dos sindicatos e do avanço de iniciativas empresariais e do governo no tema da flexibilização do mercado de trabalho” (COSTA, 2005).

Ao analisarmos os anos de 1990, com o processo de reestruturação produtiva, notamos, nos dias atuais, um direcionamento pelo mesmo caminho, isto é, com fechamento de indústrias (o exemplo de que o PPE não é um instrumento de garantia de emprego é o caso do estaleiro de Niterói, Eisa Petro-Um – Antigo Mauá, que aderiu ao Programa de Proteção ao Emprego, com redução da jornada de trabalho e salários de seus empregados, mas não houve efetividade e, em junho/julho de 2015, encerrou suas atividades, demitindo mais de três mil empregados), além da terceirização, trabalhos temporários, subcontratação, reorganização dos processos produtivos, suspensão dos contratos de trabalho e, principalmente, desemprego, em uma visão neoliberal, todas estas medidas são uma racionalização de custos (custos do trabalho) (COSTA, 2005). Desse modo, nota-se que a adoção de institutos legais como lay-off e o PPE são instrumentos para efetivar a reestruturação produtiva e a racionalização de custo se distanciando do discurso midiático de que tais medidas são necessárias para a estabilidade econômica e garantia de emprego.

Evidencia-se, portanto, a relevância do presente debate acerca de tal instituto contemporâneo que é o PPE, pois a partir da análise de seus efeitos práticos pretendemos demonstrar se ele fomenta o processo de precarização da relação de trabalho (flexibilizando e precarizando) ou apenas flexibiliza, ou seja, se é uma medida, supostamente, necessária para o fomento da geração de emprego e proteção deste.

Por fim, para tentar ilustrar, de forma mais metafórica o problema de pesquisa, citamos Luis Fernando Veríssimo :

Na recente reunião dos sete de ouro para tratar do custo social da nova ordem econômica, os países mais ricos do mundo chegaram a uma conclusão sobre como combater o desemprego. Surpresa! Deve-se continuar enfatizando e receitando aos pobres austeridade fiscal sobre qualquer política de desenvolvimento e pedindo ao trabalhador que coopere, trocando a proteção social que tem pela possibilidade de mais empregos. Algo como continuar batendo no supercílio que já está sangrando. Chama-se isso não de crueldade ou chantagem, mas de flexibilização do mercado de trabalho. Podia se chamar de Maria Helena, não faria diferença – o neoliberalismo triunfante conquistou o direito de pôr os rótulos que quiser nos seus bíceps. Quem chama a volta ao capitalismo do século dezenove de modernidade e consegue vendê-la merece o privilégio (grifou-se).

O texto acima ilustra o problema da pesquisa: o PPE é um programa que flexibiliza as relações trabalhistas, no sentido de apresentar alguma proteção ao trabalhador? Ou, quando se fala em flexibilização há implícita a retirada de direitos e garantias sociais, evidenciando, assim, uma precarização? Ou seja, seria o termo flexibilização um eufemismo para não utilizar o termo precarização? Conforme defende Veríssimo, “chama-se isso não de crueldade ou chantagem, mas de flexibilização do mercado de trabalho”. Desse modo, objetiva-se promover um debate acadêmico sobre o neoliberalismo e seus novos institutos no cenário político no Brasil atual e desvendar os reais impactos do PPE e do PSE.

2. Neoliberalismo e seus impactos

O neoliberalismo se afigura no final do século XX, sendo seu ápice, no Brasil, durante a década de 90. De acordo com David Harvey, na obra Condição Pós-Moderna (2008) a principal característica do neoliberalismo é o regime de acumulação o qual repercute na regulamentação social e política a ele interlaçada. O neoliberalismo é, portanto, a base de sustentação do capitalismo, ou seja, permite que este se mantenha, e sua viabilidade se dá por duas áreas: qualidades anárquicas dos mercados de fixação de preços e necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da força de trabalho, a fim de garantir, sempre, lucros positivos para o maior número possível de capitalistas.

Havendo uma concretização da mão invisível de Adam Smith, isto é, um alto grau de descentralização e não intervenção estatal, permite-se aos produtores que coordenem a produção de acordo com as necessidades, vontades e desejos que são impostos, pelo próprio mercado, aos consumidores.

Contudo, a intervenção e regulamentação pelo Estado é indispensável para compensar as falhas de mercado, para evitar, por exemplo, falhas inestimáveis ao ambiente natural e social, evitar excessivas concentrações de poder de mercado, combater o abuso de privilégio do monopólio quando este não puder ser evitado (transporte, comunicação…), fornecer bens coletivos, e impedir falhas descontroladas advindas de surtos especulativos, sinais de mercado aberrantes e intercâmbio, potencialmente, negativo entre expectativas dos empreendedores e sinais de mercado (HARVEY, 2008). Todavia, na relação capital/trabalho o que se percebe é, além da retirada de direitos trabalhistas, uma intervenção negativa do Estado nas relações trabalhistas, a exemplo a reforma trabalhista da Lei 13467/17 que dentre as principais mudanças encontram-se: formas de contratação mais precárias e atípicas, flexibilização da jornada de trabalho; rebaixamento da remuneração, fragilização sindical e mudanças na negociação coletiva, limitação do acesso à Justiça e do poder dela.

No caso do PPE o que se nota é uma precarização da relação de trabalho. Há uma redução da jornada de trabalho e da remuneração, em até 30%, com a compensação de 50% dessa redução pelo FAT, o que denota que quem arca com o iminente risco do desemprego e diminuição de sua fonte de subsistência é o trabalhador. Há uma “desresponsabilização” do Estado que não assegura com este instituto a manutenção do emprego, quando deveria ser, na realidade, o único garantidor deste, através de políticas públicas e intervenção direta.

No PPE há uma redução do salário no prazo de até doze meses o que, ao invés de proteger o emprego, faz com que o empregador se desonere em 30% dos custos. Em relação à redução da jornada de trabalho, ela não é óbice para a diminuição da produção, pode-se ter uma redução das horas trabalhadas, mas, em compensação, há uma intensificação destas. O que se vislumbra no caso do PPE é uma prática clássica do neoliberalismo, como já informado acima: é a instrumentalização da necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da força de trabalho, com o intuito de assegurar a adição de valor na produção (HARVEY, 2008). O estaleiro Eisa Petro I é a personificação de que um programa intitulado de proteção ao emprego, na verdade, realiza é uma redução de custos ao empregador, e maior acumulação, ao passo que, posterga o desemprego. No caso de estaleiro, após o prazo de duração do PPE houve a demissão de milhares de empregados.

Retornando ao neoliberalismo, para Perry Anderson (ANDERSON, 2003), suas principais características são a desregulamentação, desemprego massivo, repreensão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização dos bens públicos o que favorece a implementação de medidas ditas como possíveis garantidoras de empregos quando, na sua aplicabilidade, precarizam a relação de trabalho e fomentam a retirada de direitos do trabalhador: “o neoliberalismo é um corpo de doutrina, coerente, militante, lucidamente decidido a transformar todo mundo a sua imagem em uma ambição estrutural e sua extensão internacional” (ANDERSON, 2003, p.10).

O neoliberalismo influenciou a sociedade de um modo geral tanto na esfera econômica, social, mas principalmente ideologicamente, perpassando pela política, geopolítica e a moral, englobando as estruturas centrais da civilização (ANDERSON, 2003).

Para Harvey (2002), ao estudar a relação capital/trabalho é necessário compreender a transição do fordismo para o da acumulação flexível. O fordismo significou uma mudança de um número crescente do trabalhador da manufatura para a indústria e, assim, a coisificação do trabalhador.
De um modo mais geral, no período de 1965 a 1973, tornou-se cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Havia uma grande rigidez nesses modelos (HARVEY, 2002). Ricardo Antunes (ANTUNES, 1995) entende que para Harvey o fordismo se mantinha de forma dominante até 1973, e através dele a população de trabalhadores dos países capitalistas possuíam estabilidade em seus padrões de vida. Contudo, após a recessão de 1973 ocorreu uma transição no interior do processo de acumulação de capital. Para Harvey (2002) é a acumulação flexível que é marcada pelo confronto direto com a rigidez do fordismo, se apoiando na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Ela fomenta a criação de setores totalmente novos como os do serviço financeiro, além de reforçar mudanças significativas no desenvolvimento, tanto entre setores quanto entre regiões geográficas que se tronam ainda mais desiguais.

A acumulação flexível repercute diretamente nas relações de trabalho, pois o aumento da flexibilidade permite que os empregadores exerçam pressões de controle de forma mais fortalecida, causando um aumento de desemprego, mobilidade na exigência de novas habilidades e destruição das já existentes, além de um retrocesso do poder sindical.
O PPE é uma política neoliberal que retira os direitos e as garantias dos trabalhadores, permitindo a redução de jornada de trabalho (apesar das demandas do empregador, obviamente, não diminuírem), a redução salarial, apesar do abono fornecido pelo FAT, além da possibilidade de ao final do prazo de permanência no programa, os trabalhadores poderem ser demitidos, ou seja, o Estado ao invés de intervir para dar garantia ao trabalhador, intervém permitindo que diminua a remuneração.

Assim, o Estado neoliberal se afigura para favorecer e fortalecer direitos individuais às propriedades privadas, manter o livre mercado, o livre comércio e um regime de direitos que favoreça esse tipo de mercado, buscar, persistentemente, reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhorem sua posição competitiva como entidade diante de outros Estados no mercado global (HARVEY, 2005). Isso causa, sob o aspecto socioeconômico, instabilidade, dissolução de solidariedades sociais, degradação ambiental, desindustrialização, aceleradas mudanças no espaço/tempo, bolhas especulativas e tendência geral de formação de crise do capitalismo e, nas relações capital/trabalho, “a flexibilidade se torna o mantra do mercado de trabalho” (HARVEY, 2005) e medidas de retiradas de direitos são vendidas como medidas de garantia e de prosperidade econômica a exemplo a reforma trabalhista instituída pela Lei 13467/2017 e o PPE (ou programa de seguro-emprego).

3. Conclusões

No cenário econômico atual e com a instabilidade tanto econômica quanto política, o povo se torna andarilho perdido em caminhos tortuosos em que a cada passo há a retirada de algum direito social, sendo este moeda de troca na relação capital/ trabalho. Temos, portanto, “a implantação de políticas públicas e a distribuição de benefícios sociais através das relações de trabalho, em troca da liberdade de administração da mão-de-obra” (NORONHA, 1999).

Mesmo sendo uma moeda de troca (ganha-se algum direito social em troca de um maior domínio do empregador), estamos assistindo uma mudança, ou melhor, retirada abrupta dos direitos sociais (principalmente trabalhista, melhor intitulada, retrocesso trabalhista), além da crescente desregulamentação, com a suspensão do contrato de trabalho, redução de jornada de trabalho, redução de salários legitimada pelo uso do Programa de Proteção ao Emprego (agora intitulado Programa de Seguro-Emprego pela Medida Provisória 761/2016) e lay-off. Observamos, portanto, que o sistema trabalhista é parte de um sistema geral (o social) deficiente e precário (UZZO, 2009) que nos últimos anos sofre uma grande fragilização.

O PPE, portanto, é um instituto de vanguarda que marca mudanças significativas no cenário trabalhista, mas entendemos que um instituto que prevê a diminuição do salário não pode ser “vendido” como solução para salvaguardar empregos. Portanto, o PPE é mais uma forma de retirada de direitos a fim de atender a interesses político-econômicos da classe dominante, afigurando-se como uma política neoliberal.

Referências Bibliográficas

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BRASIL, Lei 13.456, de 25 de junho de 2017. Altera o Programa de que trata a Lei no13.189, de 19 de novembro de 2015, para denominá-lo Programa Seguro-Emprego e para prorrogar seu prazo de vigência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13456.htm.

BRASIL, Lei 13.189, de 19 de novembro de 2015. Institui o Programa Seguro-Emprego – PSE. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13189.htm.

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VERRÍSSIMO; Luís Fernando. O Novo começo, São Paulo: 1999.



A mulher sindicalista: entre a barreira da opressão e a potencialidade revolucionária

The syndicalist woman: between the barrier of oppression and revolutionary potentiality

Amélia Coelho Rodrigues Maciel
Nathalia Assmann Gonçalves

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar participação política feminina nos movimentos sindicais. O ambiente sindical comumente é visto como masculino em decorrência do pequeno número de mulheres dentre o total de sindicalizados. Diante disso, compreendendo que esta constatação espelha a cultura machista da sociedade, analisaremos as possíveis razões para a baixa adesão de mulheres nos cargos de representação sindical. Num primeiro momento, discutiremos a respeito da divisão sexual do trabalho e as implicações para a vida da mulher. Em seguida, apresentaremos algumas entrevistas realizadas com mulheres sindicalistas de diversas áreas, tais como sindicato dos trabalhadores rurais, de servidores públicos federais e da saúde pública. Finalizaremos relacionando a opressão sofrida pelas mulheres de modo a evidenciar a potencialidade revolucionária do engajamento feminino diante de tantas barreiras impostas pela sociedade patriarcal.

Palavras-Chave: mulher; sindicalista; divisão sexual do trabalho; potencialidade revolucionária

Abstract: The present study aims to analyze female political participation in trade union movements. The union environment is commonly seen as masculine because of the small number of women among the total unionized. Given this, understanding that this statement mirrors the sexist culture of society, we will analyze the possible reasons for the low adhesion of women in the positions of union representation. In the first place, we will discuss the sexual division of labor and the implications for the woman’s life. Next, we will present some interviews with women unionists from different areas, such as union of rural workers, federal public servants and public health. We will conclude by relating the oppression suffered by women in order to highlight the revolutionary potential of women’s engagement in the face of so many barriers imposed by patriarchal society.

Keywords: woman; syndicalist; sexual division of labor; revolutionary potentiality

1. Divisão sexual do trabalho

Primeiramente, importante destacar que as relações existentes atualmente são resultado de uma construção histórica, isso mostra que podemos buscar explicações para a atual situação através de uma análise crítica do passado. Além disso, é essencial que se descortine as raízes formadoras do sistema de produção vigente – o capitalista. Este sistema, apesar de ter passado ao longo do tempo por reformulações, permanece essencialmente o mesmo. Por isso, para compreender as relações desse tempo e espaço é necessário recorrer a sua gênese, qual seja, a transição do sistema feudal para o sistema capitalista. No presente trabalho, pretendemos traçar um breve histórico de como e por quais razões houve essa diferenciação entre os trabalhos ‘por excelência’ masculinos ou femininos, essa chave de análise busca compreender a (ainda persistente) divisão sexual do trabalho.

Essa divisão do trabalho, segundo Silvia Federici (2017), foi resultado das mudanças que a chegada do capitalismo introduziu na posição social das mulheres – especialmente entre as proletárias, seja na Europa, seja na América- foram impostas basicamente com a finalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir a força de trabalho. Nesse novo sistema, as atividades estavam divididas em produção e reprodução. Os homens estavam ‘destinados’ ao trabalho criador de valor, possuindo funções públicas e a mulher restou responsável pelo trabalho reprodutivo, adstrita ao ambiente privado. Dentro dessa função está incluído a responsabilização pelo ‘cuidado’ como um todo, seja com relação ao lar, seja para com os vínculos familiares, filhos, marido, parentes que possuem consanguinidade ou não (família do cônjuge). Essa divisão também coloca como importante economicamente o trabalho produtivo e, portanto, visível e público, realizado pelos homens. Em contrapartida, é visto como ‘menor’, invisível e privado o trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres. Nesse sentido, argumenta a Federici (2017):

No novo regime monetário, somente a produção para o mercado estava definida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho. O trabalho reprodutivo continuou sendo pago – embora em valores inferiores – quando era realizado para os senhores ou fora do lar. No entanto, a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis, sendo mistificadas como uma vocação natural e designadas como ‘trabalho de mulheres’. Além disso, as mulheres foram excluídas de muitas ocupações assalariadas e, quando trabalhavam em troca de pagamento, ganhavam uma miséria em comparação com o salário masculino médio. Essas mudanças históricas- que tiveram um auge no século XIX com a criação da figura da dona de casa em tempo integral- redefiniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens.

Federici (2017) segue pontuando que essa sistemática serviu também para aumentar a dependência das mulheres em relação aos ‘homens produtivos’ e ao Estado, já que o trabalho por elas realizado não possuía remuneração, restando evidente a possibilidade de controle dessas mulheres através do salário masculino, o que ainda acontece. Essa relação foi essencial para que a acumulação de capital se desse de uma maneira efetiva e tivesse condições de perpetuação. Isso mostra que a subjugação feminina foi imprescindível para a construção desse novo regime monetário.

O que se depreende dessa separação clara entre produção e reprodução é a criação de uma classe de mulheres proletárias tão despossuídas como os homens, mas que diferentemente deles, quase não tinham acesso aos salários. Em uma sociedade que estava cada vez mais capitalizada, acabaram sendo forçadas à condição de pobreza crônica, a dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras (Federici, 2017). A desvalorização do trabalho reprodutivo, acabou por desvalorizar a força de trabalho, propriamente dita, pois produto do trabalho feminino. Isso quer dizer que essa segregação dos trabalhos desvalorizou também o trabalho produtivo, gerando um ciclo vicioso de desvalorizações.
Diante disso, ao analisar a formação histórica da divisão sexual do trabalho, percebemos a criação de uma dicotomia entre homens trabalhadores e mulheres cuidadoras. Essa divisão se percebe ainda atualmente mesmo com a gradual inserção da mulher no trabalho produtivo, esfera pública, pois mesmo com essa entrada ‘no mundo dos homens’, as responsabilidade reprodutivas e de cuidado ainda permaneceram femininas.
Dados estatísticos lançados pelo Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e também através das nossas entrevistas realizadas com mulheres sindicalistas, permitem afirmar que as mulheres ainda são majoritariamente responsáveis pelos afazeres domésticos. Esses dados nos permitem delinear a dupla ou tripla jornada de trabalho realizado pelas mulheres. Nesse sentido, a multiplicação do trabalho feminino se deu sem qualquer remuneração, já que para boa parte da sociedade, as mulheres são biologicamente destinadas as funções do cuidado, não possuindo um caráter de trabalho, mas sim de uma ‘ordem natural’. Esse argumento se prova também, quando as mulheres ao ocuparem posições públicas, economicamente ativas, contratam trabalhadoras para exercer o trabalho doméstico. Isto é, o trabalho de cuidado é repassado para outra mulher, no caso brasileiro, para uma mulher negra de classe mais baixa que ‘a patroa’.
Por essa razão que o debate se torna estrutural na medida em que a divisão sexual do trabalho foi a base para a consolidação do sistema capitalista, em outras palavras, a problematização dessa estrutura reflete no próprio modo de organização da sociedade atualmente. Reconhecer essa história é perceber as diversas discriminações que ocorrem no interior dessa organização, seja ela de gênero, raça ou classe. Essas três categorias estão totalmente imbricadas uma na outra, na medida em que ao tentar explicar um tipo de opressão as outras necessariamente devem também entrar na análise, principalmente no caso brasileiro que contém na sua formação política elementos bastante racistas, elitistas e patriarcais.

2. As vozes das sindicalistas

Para melhor fundamentar nosso estudo, optamos pela realização de algumas entrevistas com as mulheres sindicalistas. Elaboramos conjuntamente três perguntas que versavam sobre a situação da mulher sindicalista. A primeira pergunta versa sobre as questões dentro do ambiente do sindicato. A segunda envolve questões da vida privada. A última diz respeito à diferença de respaldo entre o posicionamento da mulher sindicalista diante dos embates patronais, no sentido de auferir algum tratamento discriminatório ou de menosprezo da sindicalista diante da patronal diferentemente do percebido quando o trato é entre homens.
As perguntas eram as seguintes: 1) Você sentiu ou sente alguma dificuldade por ser mulher dentro do sindicato? A sua experiência de sindicalista seria diferente se você fosse homem?; 2) As tarefas de casa e o cuidado com os(as) filhos(as), cônjuge ou parentes, atrapalha a sua vida sindical?; 3) Você enquanto mulher sindicalista recebe tratamento diferenciado comparado com o homem sindicalista nos embates patronais? Além disso, questionamos a idade, cor da pele e o sindicato que faz parte, a fim de haver uma maior concretude nos resultados
Ao total foram quatro entrevistadas de categorias diversificadas. Contamos com a participação de uma sindicalista representante dos trabalhadores rurais do município de Santana do Cariri, Ceará; uma sindicalista do sindicato dos enfermeiros do Estado do Ceará (SENECE) e duas sindicalistas do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Federais de Pernambuco (SINTUFEPE). A primeira, a trabalhadora rural do interior do Estado do Ceará, respondeu da seguinte maneira:

Minha idade é 54 anos, sou parda e faço parte do sindicato dos trabalhadores rurais. Sim, senti muitas dificuldades, pois a nossa opinião não é considerada nas horas das decisões. [Elas] são sempre tomadas pelos homens, sem nos ouvir. As tarefas [domésticas] em si não atrapalham, só que a gente trabalha de mais para dar conta de tudo. Mas é gratificante lutar pela igualdade de gênero e por aquilo que acreditamos. Muitas vezes temos que dar um passo atrás para dar dois para frente. Pelo fato de ser mulher, muitas vezes não é levado a sério o que falamos. Enquanto os homens falam qualquer coisa e todos concordam. Parece que se protegem. Mas como sempre, sou muito teimosa, nunca baixo a cabeça e defendo o que acredito. Vale a pena. Pode acreditar!

A outra entrevistada foi a enfermeira de 46 anos, pele parda pertecente ao SENECE. As respostas dessa sindicalistas foram sim e não. Na primeira pergunta ela nega sentir alguma dificuldade por ser mulher dentro do sindicato e que acredita que sua experiência de sindicalista não seria diferente se fosse homem.. Ela confirmou que as tarefas de casa e o cuidado com os(as) filhos(as), cônjuge ou parentes, atrapalham sim a sua vida sindical. Na terceira pergunta ela negou receber tratamento diferenciado comparado com o homem sindicalista nos embates patronais.
As duas últimas entrevistadas são do sindicato do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Federais de Pernambuco (SINTUFEPE). Ambas foram entrevistadas em conjunto e responderam de forma parecida. As duas são idosas, uma tem 69 anos e a outra tem 72 anos de vida. Ambas se declararam “morenas”. Na primeira pergunta ambas responderam que sim, uma fundamentando que “eles passam por cima da gente”, a outra afirmando que “todas sentimos por causa do machismo grande”. Ambas afirmaram que as tarefas domésticas não atrapalham a vida sindical. Na última pergunta as duas confirmaram que recebem tratamento diferenciado comparado com o homem nos embates patronais. Uma delas afirmou que “a gente é zero à esquerda diante do homem”.

Diante dessas entrevistas, constatamos que nenhuma das questões tiveram respostas unânimes. Porém, pode-se perceber que todas reconheceram alguma dificuldade pelo fato de ser mulher. A trabalhadora rural, que respondeu de maneira mais completa, identificou dificuldades por ser mulher na atuação sindical em todos os âmbitos abordados nas perguntas. A enfermeira, que talvez por pertencer a uma categoria majoritariamente feminina, apenas reconheceu as dificuldades enfrentadas na conciliação entre a esfera de atuação sindical e as ‘obrigações’ de cuidado. As duas representantes dos servidores públicos federais reconheceram as dificuldades no ambiente sindical quando há comparação com o homem sindicalista.
Isso mostra, apesar de ser uma pesquisa limitada quanto ao número de entrevistadas, o quanto um ambiente de luta pode se mostrar difícil em virtude da necessidade de conciliar as exigências do cuidado doméstico, bem como o ambiente sindical pode se apresentar opressor para as mulheres, já que a cultura patriarcal é uma construção que está presente, também, nessa instância de luta.

3 A potencialidade revolucionária da sindicalista

Conforme abordado até este momento e demonstrado por meio das entrevistas, as mulheres têm que superar várias barreiras da sociedade patriarcal para poder se organizar sindicalmente. Ademais, além de todos os empecilhos para ingressar na organização sindical, as sindicalistas ainda enfrentam diversas barreiras dentro dela. Por exemplo, o machismo reproduzido entre os camaradas sindicalistas, da base da categoria e dos representantes da patronal ou da burocracia estatal.
Diante desta caracterização, a superação de todos estes obstáculos pode servir de catalisação da potencialidade revolucionária feminina nas lutas sindicais. Tendo que enfrentar o patriarcado estrutural da sociedade, que se reproduz inclusive entre os camaradas, pode forjar na trabalhadora uma obstinação de luta e rebeldia superior à masculina.

Seguindo este entendimento, o acúmulo de revolta diante da opressão a que a mulher trabalhadora supera para se dedicar às lutas econômicas sindicais a fortalece a ponto de poder criar nela uma grande força revolucionária. Sendo assim, a luta para a sindicalista mulher não é apenas econômica, mas sim também contra a ordem social patriarcal, fundamental para a exploração capitalista. Mais que para o operário, a operária só tem a perder as correntes que a prende, as correntes da exploração capitalista e as da opressão do patriarcado.

Dado que as mulheres enfrentam sistematicamente inúmeros obstáculos construídos pela cultura patriarcal, a luta da trabalhadora é a luta contra todas as estruturas do capitalismo. Quando uma mulher luta por melhores salários ela enfrenta a exploração da mais valia, os patrões, o Estado e o patriarcado reproduzido pelos companheiros de luta, de trabalho e família. Por esse motivo que a questão de representatividade feminina no campo das lutas sindicais e por mudanças sociais são fundamentais.

Mas esta sociedade atual, patriarcal, racista e cindida em classes, não é natural, ou seja, biológico. Ela é histórica, isto é, fruto de um desenvolvimento econômico, histórico e social. Numa perspectiva materialista dialética, a realidade de opressão e exploração atual se ergueu sobre a práxis histórica e material da vida social humana. Deste modo, se desenvolveu na realidade prática das relações produtivas humanas com a natureza e relações sociais. Portanto, a “visão materialista da história parte do princípio de que a produção e, logo a seguir à produção, a troca dos seus produtos, são a base de toda a ordem social” (ENGELS, 1985, p. 149). Este desenvolvimento, porém, não foi um processo linear como consequência do desenvolvimento do espírito racional humano.
Seguimos neste trabalho a convicção de que a história das relações humanas, inclusive a opressão machista, se desenvolveu de maneira dialética, não por meio da dialética idealista proposta por Hegel, mas por meio de um materialismo dialético. O patriarcado é produto de uma série de atividades históricas de várias gerações, é, portanto, um produto histórico. Cada geração, neste sentido, com os aportes das gerações anteriores, desenvolve sua organização produtiva, sua indústria e seu comércio ao tempo que altera sua organização social, superando necessidades ao tempo que novas necessidades são criadas (MARX; ENGELS 2007).

A vida produtiva, pelo trabalho individual e social, portanto, é o ato constituinte e reprodutor do homem e da mulher enquanto sujeitos sociais. Neste sentido, as diversas formas de opressão são produtos históricos, isto é, não são características imutáveis e biológicas do ser humano, mas fruto de complexos processos sociais estabelecidos a partir de determinados momentos e lugares históricos que, com a expansão das relações entre as sociedades, especialmente pelo comércio, invasões e guerras, se alastrou para todo o globo.

Vastas pesquisas antropológicas comprovam isto (Engels, 1987; Muraro, 1997), demonstrando que nos primórdios da história humana a organização social era coletivista, tribal e matrilinear. Como a vida produtiva social é fundamental, “a forma como a mulher e o homem eram tratados sempre esteve relacionada, direta ou indiretamente, à divisão social do trabalho, ao papel que cada um cumpria no modo de produção então vigente” (TOLEDO, 2008, p. 25).
A organização econômica dos primórdios da vida humana, grande parte da história da humanidade, era comunal. Friedrich Engels, com base na obra do antropólogo norte-americano Lewis Henry Morgan, A Sociedade Antiga (1877), destaca, no tocante as sociedade primitivas, que “lar comunista significa predomínio da mulher na casa; tal como o reconhecimento exclusivo da mãe própria, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai” (1987, p. 50). Mais adiante, descrevendo o papel social da mulher na sociedade primitiva, critica:

Uma das ideias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da mulher, ainda no matrimônio sindiásmico: “(…) Habitualmente as mulheres mandavam na casa; as provisões eram comuns, mas – ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil tentar opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão o de voltar ao seu próprio clã (gens) ou, o que costumava acontecer com frequência, contrair novos matrimônios em outro. As mulheres constituíam a grande força dentro dos clãs (gens) e, mesmo, em todos os lugares. Elas não vacilavam, quando a ocasião exigia, em destituir um chefe e rebaixá-lo à condição de mero guerreiro” (1987, p. 50-51).

As mudanças nas relações de produção modificaram as relações entre os sexos, a organização familiar, tribal e social. Assim, as mudanças econômicas e sociais afastaram a mulher da vida social, tornando-a reclusa ao âmbito doméstico. Evelyn Reed afirma que esta profunda mudança na organização social:

teve início com a introdução de grandes mudanças na estrutura da sociedade, e com o rompimento do antigo sistema comunista (ou comunal). Enquanto as mulheres mantiveram suas instituições coletivas, conseguiram não ser derrotadas; mas quando surgiu o novo sistema de propriedade privada, o matrimônio monogâmico e a família, as mulheres se dispersaram e cada uma se converteu em uma esposa solitária e mãe confinada a um lar isolado. Enquanto as mulheres estavam unidas, representavam uma grande força social. Separadas e isoladas umas das outras, e confinadas à cozinha e à educação dos filhos, perderam todo o seu poder (2008, p. 35).
Como abordado, a opressão do homem sobre a mulher não pode ser compreendida em si mesma, mas a partir das relações sociais produtivas. De tal modo, as desigualdades sociais, de raça e gênero são reafirmadas pela práxis da produção e reprodução da vida atual, i.e., pelo capitalismo. Neste sentido, a cultura da opressão do homem sobre a mulher, fenômeno social anterior ao capitalismo, foi incorporada à sociedade moderna para servir ao aumento da acumulação de capital. Neste sentido, Engels percebe reproduzir no âmbito familiar a estrutura de classe da sociedade, onde “o homem é o burguês e a mulher representa o proletário” (1987, p. 80).
Neste aspecto, as estruturas sociais que submetem a figura feminina num patamar de inferioridade à figura masculina foram modernizadas pelo capitalismo. Pateman (1993, p.167) destaca que “a sociedade civil como um todo é patriarcal. As mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pública”. A hierarquia do pai sobre as mulheres na sociedade foi substituída pela prevalência do direito conjugal dos homens sobre as mulheres, isto é, da relação de dominação conjugal. É neste momento, entende Pateman, se configura um patriarcado moderno, a partir do final do século XVII.

Machado (2000) critica esta idéia unitária e totalizante do patriarcado, argumentando que a modernização deste, forjando o “patriarcado contemporâneo”, ocorreu incorporando diversas transformações e contradições históricas. A posição da mulher na história ocidental foi diversificada, mas mantendo como constante a dominação masculina.
Neste aspecto, a hierarquia na estrutura familiar, erguendo a figura masculina e oprimindo a feminina bem como a infantil, serve para a sociedade exploradora, visto que, “longe de destruir a família, (a industrialização) tenta reforçá-la para usá-la para seus próprios fins, não sem aumentar as contradições e tensões internas” (PERROT 1988, 61). O sexo, portanto, torna-se critério seletivo para participação no mercado de trabalho, bem como para a forma em que o mesmo trabalho é explorado. Por exemplo, permite diferenciação salarial para o exercício da mesma função bem como diferenciações internas e vivências distintas no ambiente de trabalho.
Entendemos que o patriarcado foi incorporado ao capitalismo, ao tempo em que foi transformado segundo os interesses do mercado, tal como a liberação da mercadoria mão-de-obra feminina. Estas transformações nas relações produtivas anunciam o declínio do patriarcado tradicional no sentido de conferir às mulheres a liberdade de entrar no mercado. A sociedade industrial capitalista, “a maquinaria transformou-se, imediatamente, em meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador sem distinção de sexo e idade sob o domínio direto do capital” (MARX 1980, 449). Uma nova ordem social é forjada:

Sua instauração supõe não só transformações econômicas e tecnológicas, mas também a criação de novas regras do jogo, novas disciplinas. No entanto, o que importa reencontrar são as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história (PERROT 1988, 187).

Neste sentido, capitalismo e patriarcado encontram-se imbricados. Conforme abordagem de Engels (1987), a opressão da mulher foi fundamental para a origem da família tal como a conhecemos hoje, hierarquizada na figura masculina. Esta foi fundamental para a origem da propriedade privada e para o Estado. A opressão de gênero é a primeira forma de exploração entre os seres humanos, precedeu à escravidão, servidão e trabalho assalariado.

Deste modo, limitar a análise ao patriarcado não abarca todas as formas de opressão e desigualdades que as mulheres são submetidas. Portanto, para analisar a opressão sofrida pela mulher em sua profundidade e extensão, é imperiosa a articulação do gênero à classe social e à raça (Scott, 1995). Isto é fundamental, pois a opressão não pode ser explicada por si mesma, já que está relacionada à vida produtiva da sociedade. Assim, capitalismo e patriarcado são imbricados na produção e reprodução da sociedade fundada na exploração e expropriação da natureza e do humano em geral, em especial dos corpos e da liberdade das mulheres (Fonseca, 2000; Saffioti, 1979; Toledo, 2008).

Diante destas condições, Clara Zetkin, uma das pioneiras do feminismo internacional, participa do Congresso de Fundação da II Internacional denunciando a exploração a que as mulheres são submetidas no capitalismo, servindo de meio para o rebaixamento dos salários em geral, e conclamando a participação ativa das mulheres trabalhadoras para a superação da exploração. Destaca que “assim como o trabalhador masculino é subjugado pelo capitalista, assim é a mulher pelo homem e assim ela permanecerá enquanto for economicamente dependente” (THONNSSEN 1973, 17).

Desde então, as lutas sociais de classe, tanto as sindicais específicas, quanto as gerais socialistas, anarquistas ou comunistas foram robustecidas pelas lutas feministas. A radicalidade das lutas pela transformação da sociedade foi fortalecida pela ânsia de liberdade das mulheres trabalhadoras. Cavalcanti (2005, 252) destaca que “ao percorrer as experiências históricas elencadas ao longo de todo o século XX, é possível detectar que um dos grandes braços dos movimentos sociais era justamente o de mulheres”. Mais adiante, Cavalcanti (2005, 252) lembra o protagonismo feminino:

Da russa Alexandra Kollontai, primeira mulher a integrar um governo, em 1917, e escritora de As bases sociais da questão da mulher, à norte-americana e negra Rosa Parks, que em 1955 recusou-se a ceder o lugar a um branco em um ônibus do Alabama, deflagrando o movimento dos direitos civis, ou a Djamila Boupacha, heroína de guerra da independência argelina, ou a tantas outras, cujos nomes foram silenciados, mas cujas ações se tornaram inesquecíveis – exigindo inclusive uma revisão historiográfica – as mulheres – em distintos países e movimentos – pretenderam dar fim à exclusão social e ao “dever ser” a elas inculcado através das representações culturais, econômicas e políticas

Nesse sentido é importante destacar que a participação e o envolvimento de mulheres foram cruciais para o desencadeamento e sucesso de grandes manifestações, como no caso da primeira greve geral de trabalhadores da indústria têxtil em 1903, no Rio de Janeiro. Além disso, as grandes greves de 1917 no Brasil e a Revolução Russa contaram com a fundamental participação de mulheres, muitas vezes invisibilizada ou secundarizada pelos estudos históricos.
As estruturas de dominação aos quais as mulheres trabalhadoras são submetidas são, portanto, superiores e mais profundas em comparação com os homens trabalhadores. Isto pode ter como consequência uma maior subordinação e sujeição feminina. Esta consequência pode ser prevalecente em grandes períodos históricos nos diversos espaços geográficos. Porém, nas mulheres que despertaram para a resistência, luta por conquistas de direitos e transformação da sociedade pode-se observar uma gigantesca disposição e radicalismo. Quando uma mulher trabalhadora se organiza em sindicato e participa das atividades de greve, paralisação, mobilização, etc., ela está enfrentando as mais diversas e profundas estruturas opressoras que sustentam a sociedade ao mesmo tempo em que enfrente a exploração capitalista.

4. Referências Bibliográficas

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TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: migrantes indocumentados nas confecções têxteis de São Paulo

CONTEMPORARY SLAVERY: undocumented migrants in textile garments in São Paulo

Matheus Gama de Souza Calazans

Resumo: O Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) é empregado em diversas áreas, sendo que, no âmbito urbano, o setor têxtil é uma das principais atividades econômicas que dele se utiliza. No Brasil, os principais casos concentram-se no estado de São Paulo e refletem a utilização da mão-de-obra de migrantes indocumentados. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (2010), o TEC pode ser definido pela submissão do trabalhador a alguma das seguintes situações: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição à liberdade, seja essa por dívida ou não. O objetivo do presente trabalho é analisar como a vulnerabilidade desses migrantes os torna suscetíveis ao Trabalho Escravo Contemporâneo nas confecções têxteis, que devido ao seu atual modelo de produção demanda a redução de seus custos. Os conceitos empregados no presente trabalho retratam temas como exclusão social por fatores socioeconômicos e linguísticos, universalização da moda, e o fast-fashion como modelo de produção têxtil. Foi realizada uma revisão de literatura, através de fontes primárias e secundárias para que fossem encontrados autores que conceituassem os temas utilizados.

Palavras-chave: trabalho escravo; migrante; fast-fashion; universalização da moda; vulnerabilidade.

Abstract: Contemporary Slavery (TEC) is employed in several areas, and in the urban area, the textile sector is one of the main economic activities that it uses. In Brazil, the main cases are concentrated in the state of São Paulo and reflect the use of the workforce of undocumented migrants. According to the International Labor Organization (2010), the TEC can be defined by subjecting the worker to any of the following situations: forced labor, exhaustive working hours, degrading conditions of work and restriction of freedom, whether due to debt or not. The objective of this study is to analyze how the vulnerability of these migrants makes them susceptible to contemporary slave labor in textile garments, which due to its current production model demands the reduction of its costs. The concepts employed in the present study portray themes such as social exclusion by socioeconomic and linguistic factors, universalization of fashion, and fast-fashion as a model of textile production. A literature review was carried out, through primary and secondary sources, to find authors that conceptualized the themes used.

Keywords: slave labor; migrant; fast-fashion; fashion universalization; vulnerability.

1. Introdução

O trabalho escravo contemporâneo (TEC) diverge do trabalho escravo do passado, que remete ao período colonial brasileiro. Setores como o da agricultura, pecuária, têxtil e eletroeletrônicos utilizam essa forma de trabalho em sua cadeia de produção. De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB), essa situação se dá da seguinte maneira:

Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Os migrantes indocumentados mostram-se mais suscetíveis à situação do TEC do que os naturais do país. Segundo Kalleberg (2009), tanto migrantes legais quanto ilegais estão mais dispostos do que outros a trabalhar por salários mais baixos e a colocarem-se em piores condições de trabalho . Muitas vezes, as dificuldades com o idioma, a distância da família e amigos e o desconhecimento da legislação do Estado em que se encontram, fazem com que os mesmos continuem se submetendo a condições degradantes.
É o setor têxtil que no âmbito urbano mais utiliza a mão-de-obra desses trabalhadores, pois desse modo consegue diminuir custos de produção e dar continuidade ao modelo fast-fashion. Nesse modelo, novas coleções são lançadas em um período de tempo muito inferior ao que eram lançadas anteriormente (REPORTER BRASIL, 2016). Atualmente, as redes de loja fast-fashion não utilizam somente o modelo proposto por Charles Worth , no qual coleções eram lançadas em temporadas sazonais (primavera/verão e outono/inverno). Essa nova forma de lançamento de coleções se dá devido a universalização da moda, que decorre do processo de globalização, pois de acordo com Bauman (1999, p. 86) em um mercado globalizado e com rápida propagação de tendências, é preciso seduzir constantemente o consumidor para que se afastem os concorrentes. Então diversas coleções são lançadas ao longo do ano para que o consumidor esteja sempre comprando.

Bales (2012), que considera a exploração como um aspecto essencial do trabalho escravo. Para o autor, as margens de lucro com a utilização do trabalho escravo tendem a ser mais altas atualmente do que no passado, devido ao custo envolvendo esses trabalhadores, que tendia a ser mais elevado no passado, além de existir um maior número de pessoas que podem vir a se tornar escravas devido a sua vulnerabilidade. Dessa forma, podemos perceber que o TEC possui formas diferentes do padrão de escravidão do passado e engloba outras situações que vão além de considerar o trabalhador como uma propriedade, como trabalho forçado, restrição de liberdade por dívida e jornada exaustiva de trabalho.
Apesar de existir a possibilidade de regularização no território brasileiro, muitos dos migrantes indocumentados não possuem conhecimento relativos aos seus direitos. Dessa forma, acabam se submetendo ao TEC, seja ele urbano ou rural. Um dos grandes setores que se utilizam do TEC é o têxtil (MPT, 2015). De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT) (2015), o Brasil é o quarto maior produtor mundial de artigos de vestuário.

Essa é uma organização típica da cadeia de produção característica do modelo fast-fashion (REPORTER BRASIL, 2016), que pode favorecer as irregularidades cometidas pelas pequenas confecções, pois dificulta que as inspeções realizadas pelos órgãos responsáveis responsabilizem as grandes redes varejistas, o que propicia a ampliação dos riscos laborais devido ao não cumprimento da legislação trabalhista. Segundo a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo (2015) ao analisar o país de saída das vítimas, em casos registrados pelo Ministério Público Federal (MPF), dos 20 casos com registro do país de origem das vítimas, protocolados pelo Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) no ano de 2014, 17 casos estavam relacionados ao setor têxtil.
O fast-fashion aproveita-se da sedução da novidade para propagar o consumo. Conforme Lipovetsky (2009), a moda é um instrumento de pressão e regulação social, suas mudanças possuem um caráter constrangedor, pois elas são acompanhadas do “dever” de adoção e de assimilação. É desse caráter que o fast-fashion faz uso, de modo que a constante renovação de coleções e o surgimento de novas tendências a todo tempo faz com que o consumidor se sinta obrigado a comprar. Do mesmo modo que a criação de roupas prontas está obviamente ligada à produção em massa favorecida pela Revolução Industrial (AVELAR, 2011), sugere-se que a rápida difusão das tendências propostas pelo modelo fast-fashion está diretamente relacionada à globalização e às novas tecnologias.

1. DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS DE VULNERABILIDADE E DE TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

2.1. Discussão acerca do conceito de vulnerabilidade

O conceito de vulnerabilidade está aqui empregado como uma tentativa de explicar a suscetibilidade do migrante indocumentado ao TEC, sendo a indústria têxtil o maior setor a aproveitar-se dessa mão-de-obra no âmbito urbano. Tal conceito pode ser utilizado em diversas situações, que vão desde questões ambientais, como a vulnerabilidade causada por catástrofes naturais, até mesmo a vulnerabilidade a problemas de saúde devido a condições sanitárias do lugar em que vive determinada população. Além disso, é importante ressaltar que vulnerabilidade difere de pobreza, apesar de incluí-la (EUROSOCIAL, 2015).

Ao analisar-se o contexto brasileiro e tratando-se de políticas públicas, a Norma Operacional Básica da PNAS, de 2004, coloca a vulnerabilidade como algo que se constitui no cotidiano da vida das pessoas, e estabeleceu seu público alvo como cidadãos e grupos sociais que se encontram em condições de vulnerabilidade. De acordo com Pedra (2016), vulnerabilidade é conceito e categoria de análise que permite medir as possibilidades de se viver situações de risco e violação de direitos, o que se assemelha à definição colocada pelo EUROsociAL (2015), que implica na possibilidade de padecer no futuro devido as condições/fraquezas do presente .
No quadro em que o migrante indocumentado está inserido, podem ser elencadas outras circunstâncias nas quais ele pode ser enquadrado pelo conceito de vulnerabilidade. Observamos isso através do próprio idioma, que dificulta a comunicação e até mesmo o acesso aos instrumentos da justiça. O status de migração irregular de alguns migrantes no seu país de destino agrava sua vulnerabilidade, pois, muitas vezes, têm medo ou são relutantes em contatar autoridades locais (UNODC, 2012a).O limitado acesso a recursos financeiros e, muitas vezes, a solidão enfrentada por estarem em outro país, distantes da família e de amigos, podem ser observados como fatores que contribuem significativamente para a vulnerabilidade desses migrantes. De acordo com a UNODC (2012b), o isolamento, a dependência e, por vezes o status legal irregular, são vulnerabilidades que podem ser criadas pelo explorador, a fim de maximizar o controle sobre a vítima. Além disso, é importante observar porque a mão-de-obra do migrante indocumentado é em muitos casos absorvida pelas oficinas de costura, o que será visto no terceiro capítulo.

O migrante indocumentado se encontra em um novo país, de forma irregular, em busca de emprego para garantir a sua sobrevivência. Muitas vezes, sozinhos e receosos sobre o futuro. Conforme Misztal (2011), a vulnerabilidade pode ser conceituada quanto a necessidade do outro, bem como quanto a incerteza em relação ao futuro. Tais características são constantes na vida do migrante indocumentado. Assim, além da situação econômica e das diferenças culturais, existem angústias intrínsecas a condição em que se encontra esse grupo.

2.2. Discussão do conceito de Trabalho Escravo Contemporâneo

O conceito de trabalho escravo contemporâneo é amplamente discutido visto que não há uma definição precisa do mesmo. No passado colonial brasileiro, a escravidão estava relacionada principalmente com a restrição da liberdade, o pertencimento a outrem e a utilização do indivíduo como mercadoria. Atualmente existem outras formas de trabalho, que vão além da restrição de liberdade, e podem ser entendidas como TEC, como o trabalho forçado, a restrição da liberdade em função de dívida ou não, jornadas degradantes de trabalho, trabalho em condições desumanas, entre outros. É importante que se observem as abordagens utilizadas tanto pelas convenções internacionais quanto pela legislação brasileira no que concerne ao tema, de modo que seja traçado um breve panorama histórico e perceba-se a evolução do termo “escravidão” como é colocado por Esterci (2008, p. 30-31)

O termo “escravidão” foi seguindo sua trajetória no tempo. Designando conceitualmente o tipo extremo de sistema repressivo da mão-de-obra, foi sendo, no entanto, integrado aos textos dos acordos internacionais e às leis nacionais dos países signatários de forma ambígua: por um lado, diferente de servidão, imobilização por dívida, trabalho forçado; por outro, como um tipo referencial ou inclusivo de todos os outros. É o que se percebe em expressões como “instituições e práticas similares à escravidão” (Suplementary Convention, 1956); ou “formas contemporâneas de escravidão” – nome que designa o órgão das Nações Unidas especializado nesses assuntos; ou, ainda, redução de “condição análoga a de escravo” – tal como se define a prática como crime no Código Penal brasileiro (art. 149).

O Brasil era até recentemente considerado pela OIT como sendo referência no combate ao trabalho escravo. Segundo representantes da organização, para o país o enfrentamento as práticas de trabalho escravo se configurariam como uma política de Estado e não de governo, visto que existe no Brasil um compromisso para esse combate desde o ano de 1995 (RIBEIRO, 2014).
Apesar do artigo 149 do Código Penal Brasileiro ser utilizado pela OIT como modelo de legislação progressista no combate a prática do TEC (MIRAGLIA E FINELLI, 2017), existem projetos de modificação do mesmo. Tanto o projeto de Lei 3.842/2012 da Comissão da Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, quanto o Projeto de Lei do Senado 432/2013 possuem em comum a retirada das condições degradantes e da jornada extenuante do conceito legal de trabalho em condições análogas às de escravo. Tal condição passaria a existir somente nos casos em que fosse violada a liberdade de ir e vir (MIRAGLIA E FINELLI, 2017).

Para o programa “Escravo, nem pensar!”, que consta no 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, o TEC se caracteriza pela supressão da dignidade e/ou privação da liberdade do trabalhador. No que concerne à supressão da dignidade, o programa elenca situações como alojamento precário, falta de saneamento básico e de higiene, falta de assistência médica e jornada exaustiva. Quanto à privação de liberdade, estão listadas a retenção de salário, o isolamento geográfico, maus tratos e ameaças, dívida ilegal e a retenção de documentos. Além disso, existem outras violações aos direitos trabalhistas, como a falta de registro na carteira de trabalho, baixa remuneração, horas extras não remuneradas, doenças ocupacionais e assédio moral, que isoladamente não configuram situações de trabalho escravo (REPORTER BRASIL, 2015, p. 2).
Esterci (2008) aponta que são diversas as denominações utilizadas para se referir ao TEC, como “escravidão”, “semi-escravidão”, “trabalho forçado” e outros nomes similares (ESTERCI, 2008, p.4). Além disso, ainda segundo Esterci (2008, p. 31), os próprios acordos e textos legais foram rompendo com os parâmetros estritos das distinções formais, enquanto, na prática, escravidão passava a designar um conjunto de situações das quais se pode dizer guardam identidades entre si, mas também apresentam particularidades relevantes e, sobretudo, diferem, sob aspectos significativos, da escravidão tal como predominante nos séculos passados

Dessa forma, apesar de toda a discussão teórica que envolve o conceito, a autora evidencia que a escravidão se tornou uma categoria política (ESTERCI, 2008, p.31), pois faz parte de um campo de lutas, e é utilizada para designar toda sorte de trabalho não-livre, de exacerbação da exploração e da desigualdade entre os homens. Muitas vezes, sob a designação de escravidão, o que se vê mais enfaticamente denunciado são maus-tratos, condições de trabalho, de remuneração, de transporte, de alimentação e de alojamento não condizentes com as leis e os costumes.

Para a autora, ultrapassar a classificação dos nomes é a primeira barreira, pois seus significados vão além dos usos dos termos, eles desvendam lutas que se escondem detrás dos nomes – lutas essas em torno da dominação, do uso repressivo da força de trabalho e da exploração (ESTERCI, 2008, p.5). A autora ainda destaca que determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização (ESTERCI, 2008, p. 31). Dessa forma, percebe-se que o TEC é muito mais abrangente do que apenas a restrição de liberdade, visto que fere também a dignidade do indivíduo. O TEC é, portanto, não somente um conceito jurídico, mas também político.

3.A INDÚSTRIA TÊXTIL E A MODA 3.1. O caráter estratificador da Moda

Inicialmente, o vestuário não era utilizado como forma de diferenciação ou conforto, mas sim como um instrumento técnico, seja de defesa contra as adversidades, como o clima ou a vegetação, ou como indumentária utilizada para rituais (POLLINI, 2007). Com o passar do tempo, o vestuário passou a ser um fator que, de acordo com Crane (2006), desempenha um papel da maior importância na construção social da identidade, demarcando, ainda segundo a autora, diversos aspectos como a ocupação laboral, a identidade regional, religião, gênero e classe social.
O vestuário nem sempre existiu para atender aos caprichos da moda. Para Lipovetsky (2009), a moda é um processo que está intrinsicamente ligado ao desenvolvimento do mundo moderno ocidental, pois esse processo não estaria presente em todas as épocas e nem em todas as civilizações. Segundo o autor, só a partir do final da Idade Média é que podemos reconhecer a existência da moda como um fenômeno gerador de diferenciação. Fenômeno este que, ainda segundo as definições do autor, se constitui por movimentos bruscos, metamorfoses incessantes e extravagâncias (LIPOVETSKY, 2009).
Para Lipovetsky (2009), a moda é uma forma específica de mudança social que independe de qualquer objeto particular, sendo um mecanismo social que se caracteriza por intervalos de tempo e mudanças ditadas até certo ponto apenas pelo capricho. Durand (1988), argumenta que o vestuário serve para passar ao outro uma definição de condição social, etária, sexual e emocional. Para Veblen (1983), principalmente, uma definição de condição social. Além disso, Durand (1988, p. 11) coloca que:

Se alguém não se sente bem em sua classe social, condição de sexo ou faixa de idade, ou se, por algum motivo particular, precisa passar incógnito, então pode se travestir, ou seja, vestir-se de modo a perturbar a possibilidade de identificação instantânea.

Dessa forma, o vestuário demonstra ter não somente um caráter diferenciador de grupos, mas também funciona como uma forma de expressar a singularidade do indivíduo. Veblen (1983), a partir de uma análise econômico-social credita à moda a função de diferenciação social, evidenciando que o principal motivo de se vestir é o consumo conspícuo. A moda não é simplesmente uma demanda de fluxo e mudança continua sem sentido, essa demanda existe porque a novidade, o fluxo e a mudança são necessários para que ocorra o consumo conspícuo.
Para entender o que é colocado pelo autor se faz necessária a explicação do conceito de consumo conspícuo. De acordo com Veblen (1983), o consumo “ostentoso” – termo usado pelo autor como sinônimo de consumo conspícuo – é a representação do status da classe ociosa, possuidora de propriedades devido à apropriação de bens. Enquanto resta à classe trabalhadora desejar ter o que pertence à classe ociosa,

Nas comunidades modernas civilizadas, as linhas divisórias entre classes sociais tornaram-se vagas e transitórias, e onde isso ocorre a norma de reputação imposta pela classe mais alta estende sua influência coercitiva quase sem empecilhos em sentido descendente, para a estrutura social dos estratos inferiores. O resultado é que os membros de cada estrato aceitam como ideal de decência o esquema de vida em voga no estrato imediatamente superior, e canalizam suas energias para viver de acordo com tal ideal (VEBLEN, 1983, p. 83)

Para o autor, a moda, assim como o ócio, é uma representação do consumo conspícuo, que serve para demonstrar o status da classe ociosa. Percebe-se que a principal forma que a classe trabalhadora possui para tentar alcançar a representação de status da classe ociosa é por meio de sua vestimenta. A análise econômico-social realizada por Veblen (1983) é aqui utilizada para explicar de que maneira a indústria têxtil ao se utilizar do fast-fashion propaga o consumo exagerado e, consequentemente, a necessidade de mais mão-de-obra para a sua produção.
Isso pode ser compreendido ao se analisar a velocidade com que as estações de coleções de moda vão sendo trocadas, o que faz parte do próprio entendimento sobre o funcionamento da moda. Por isso, se faz necessário o surgimento de novas tendências para que ocorra a diferenciação. No contexto atual existem grandes redes de vestuário que estão constantemente imitando essas tendências e tornando elas acessíveis ao consumidor das classes inferiores. Acredita-se que o movimento de coleções se tornou ainda mais rápido, pois as tendências estabelecidas acabam sendo alcançadas pela grande massa de uma forma mais eficiente, com o auxílio das lojas de departamento e a rápida propagação dessas tendências, devido a difusão do acesso à tecnologia e meios de comunicação digitais, como blogs, que permitem que novas tendências sejam alcançadas pelas classes com menos poder econômico. Assim, como colocado anteriormente, ao ser alcançado por mais pessoas aquilo que antes era moda, deixa de ser, e é necessário que surjam novas tendências para possibilitar a existência da moda e da diferenciação, o que culmina no modelo fast-fashion.

3.2. A indústria da moda e sua universalização

A universalização da moda é colocada por Avelar (2011) como a instauração da disponibilidade dos produtos e também a pulverização da produção. Dessa forma, se faz necessário observar como esses processos ocorrem e as suas repercussões, visto que esse fenômeno modificou a organização da indústria, o que se deve principalmente, segundo a autora, ao desejo da novidade e a entrada em cena de novos mercados consumidores. Essa modificação que ocorre na indústria termina por difundir o fast-fashion com suas tendências cada vez mais voláteis, suas modificações incessantes, e a utilização de mão-de-obra barata, geralmente encontrada em países subdesenvolvidos.

Em relação as diferenças locais, a globalização e o consumo, podemos inferir que são processos pelos quais passa também a indústria da moda. O consumo propagandeado e a sedução da moda propagada nos meios de comunicação, ao mesmo tempo gera, principalmente nos países em desenvolvimento, a exploração da mão-de-obra. Para o autor, o uso da informação estaria sendo feito de forma despótica por alguns Estados e empresas, o que agrava ainda mais os processos de desigualdade. Desse modo, o trabalhador dessa indústria, com seu pequeno salário, distancia-se cada vez mais de quem consome o seu objeto de trabalho.
O momento atual seria um novo patamar da internacionalização, no qual existe a mundialização do crédito, da dívida, do consumo e da informação (Santos, 2000). Tais fatores influenciaram o modo como ocorre a concorrência entre as empresas mundiais, e para Santos (2000), as que sobrevivem nesse processo são aquelas que conseguem obter a maior mais-valia. Na busca por essa mais-valia, as empresas difundem-se pelo planeta. Ao procurar por mão-de-obra cada vez mais barata as empresas passam a confeccionar seus produtos em lugares nos quais é possível oferecer menores salários, maiores jornadas de trabalho, onde provavelmente os direitos trabalhistas são mais brandos, ou conseguem burlá-los.

Ademais, quanto a universalização da moda, é notória a importância que carrega o prêt-à-porter e a indústria da cópia para que esse fenômeno aconteça, pois estas difundem as tendências criadas pela alta-costura, tornando o produto acessível em todas as partes do mundo, além de espalhar a sua produção em diversos países, que oferecem mão-de-obra barata e são capazes de baratear o custo dessa produção.

4. FAST-FASHION E O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

4.1. O fast-fashion e a demanda por mão-de-obra barata

A partir da evolução da indústria da moda, com a difusão do pret-à-porter, nota-se também o surgimento do modelo fast-fashion e a sua introdução no setor. Para Almeida et al (2016), o intuito do fast-fashion é disponibilizar com rapidez roupas com moda e estilo atuais, vendidas a preços acessíveis, mas também com um ciclo de vida mais curto. No estudo de Almeida et al (2016), que analisa as estratégias de inserção no mercado de uma determinada marca, conclui-se que a estratégia de venda do fast-fashion é utilizada para que as lojas sejam abastecidas com novos produtos semanalmente, de modo que o consumidor e a marca estejam em um relacionamento frequente. Esta é uma situação que difere do que ocorre quando as coleções são lançadas somente de forma trimestral, pois, sem que haja novas peças a serem oferecidas, o cliente só retorna à loja após 90 dias.

Para Cietta (2010), é justamente nessa capacidade de oferecer novidades em prazos muito curtos e ofertar constantemente ao consumidor aquilo que é projetado pelas grandes marcas de acordo com as tendências de consumo, que reside o grande trunfo do modelo fast-fashion, pois dessa forma o sistema consegue gerenciar melhor os riscos envolvidos com o lançamento de determinada coleção (CIETTA apud SHINAMURA E SANCHES, 2012, p. 69). A ideia do fast-fashion, de democratização da moda, torna acessível para a classe média aquilo que é idealizado por estilistas de grandes marcas, de modo que o consumidor possa encontrar nas lojas novas tendências conforme estas surgem. O que costuma passar despercebido ao pensar o modelo fast-fashion é o processo de produção dessas roupas, no qual, segundo a Repórter Brasil (2016), existe, em parte, condições de trabalho precárias, principalmente nas oficinas de costura que funcionam como fornecedoras terceirizadas para as grandes marcas, terceirização esta que é a base da organização da indústria fast-fashion.

Ressalta-se a necessidade crescente das pessoas por estarem constantemente na moda, pois assim sentem-se inseridas em determinados grupos. Segundo Agamben (2009), a moda é definida pela sua peculiar descontinuidade, dividida pela sua atualidade ou inatualidade. A moda estaria sempre em um limiar inapreensível entre um “ainda não” e um “não mais” (AGAMBEN, 2009). Para ilustrar esse limiar, o autor se refere as manequins como as únicas que estariam realmente na moda. Mas, por estar portando a tendência e por esta não ter sido ainda reconhecida pelo público, a mesma ainda não seria considerada como moda, o que exemplifica esse estar e não estar mais na moda. A moda comportaria uma dissociação, em que a sua atualidade incluiria dentro de si uma pequena parte do seu fora, um matiz de démodé (AGAMBEN, 2009).

Para Shinamura e Sanches (2012), por exemplo, o sucesso do modelo fast-fashion está diretamente ligado ao contexto atual, tratado por Lipovetsky (2004) como a hipermodernidade. O que no passado era tratado como consumismo, hoje é uma realidade para um número muito maior de pessoas. Para Lipovetsky (2004, p. 80), tanto a angústia da existência quanto o prazer associado a mudança nutrem esse desejo de consumo, no qual o consumidor hipermoderno se insere devido a necessidade de renovar a sua vivência no tempo.

De acordo com a Repórter Brasil (2016), ao se analisar o mercado de moda brasileiro, verifica-se que este sofreu uma alavancagem graças à introdução do modelo fast-fashion. Ao invés de fábricas voltadas para a produção de coleções de inverno e verão, estas passaram a se organizar através de múltiplas referências, como símbolos da cultura pop, circuitos internacionais de moda e também megaeventos esportivos. Além disso, a Repórter Brasil (2016) ressalta que entre as marcas mais conhecidas estão a Zara, a C&A, a H&M, a Riachuelo e a Renner. Estas empresas não precisam necessariamente de fábricas próprias, mas sim de fornecedores que possam atuar sob sua demanda (REPORTER BRASIL, 2016, p. 3)

É comum que as fiscalizações em sua cadeia de produção encontrem casos de Trabalho Escravo Contemporâneo. Em 2011, em São Paulo, uma operação de fiscalização de oficinas subcontratadas, organizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), resgatou quinze pessoas que foram libertadas das condições de TEC (PYL E HASHIZUME, 2011). Dessa forma, podemos perceber que o exemplo positivo de democratização da moda torna-se irrisório quando analisado em conjunto com o exemplo negativo da utilização do TEC para tornar o preço de seus produtos mais atrativos para o consumidor.
A terceirização se mostra uma das principais bases que possibilitam a existência do modelo fast-fashion bem como a sua expansão, além de facilitar a existência do TEC na cadeia de produção têxtil. Essa longa cadeia de produção acaba por dificultar a fiscalização pelos órgãos responsáveis e a responsabilização das grandes marcas tomadoras dos serviços dessas confecções têxteis que empregam essa mão-de-obra. Somente em novembro de 2017, por exemplo, a Zara, umas das precursoras do modelo fast-fashion, foi responsabilizada pelo TRT de São Paulo por trabalho análogo ao escravo encontrado em sua cadeia de produção no ano de 2011 (MPT NOTÍCIAS, 2017), o que mostra a dificuldade que existe para que uma grande rede seja responsabilizada. De acordo com o desembargador do trabalho responsável pelo relatório do acordão, “é impossível” aceitar a ideia de que a Zara não sabia o que estava acontecendo nas oficinas de costura, em uma espécie de “cegueira conveniente” (MPT NOTÍCIAS, 2017).

De acordo com CARVALHO (2015, p. 20), para que os custos de produção fossem reduzidos e a empresa se tornasse enxuta, diversas etapas periféricas de produção eram descentralizadas, o que levou ao surgimento de pequenas e médias empresas que se tornaram responsáveis por realizar as atividades desvinculadas da empresa principal. As empresas terceirizadas se inserem na relação empregador e empregado, distanciando e afrouxando o vínculo, pois esta passa a assumir o papel de empregador (BELMONTE apud CARVALHO, 2015).
É justamente na diminuição desse vínculo empresa e empregado que se insere o TEC e a dificuldade de responsabilização das empresas tomadoras de serviço. Como colocado por DELGADO (apud CARVALHO 2015, p.22) os trabalhadores de menor qualificação têm adentrado o mercado por meio da subcontratação e da contratação temporária, permitindo uma maior difusão da terceirização trabalhista.
Dessa forma, percebe-se como o modelo fast-fashion utiliza-se da terceirização para tornar possível a sua demanda por mão-de-obra barata, prezando de tal maneira a pouco qualificada e vulnerável, como a do migrante indocumentado, que representa um grande número dos trabalhadores de pequenas oficinas de costura que prestam serviço a grandes empresas. Assim, a produção consegue alcançar números que não seriam possíveis antes, as lojas são abastecidas com uma frequência muito maior, o consumidor é sempre provocado a realizar a compra, devido à tentação provocada pela moda, e ocorre um dispêndio menor de recursos por parte das grandes empresas para o pagamento dos seus empregados, tornando o lucro ainda maior.
Mesmo com o processo de terceirização podendo ser visto como um fenômeno que torna precária as relações de trabalho, ao facilitar práticas que podem ser enquadradas como TEC, devido à dificuldade que existe para a fiscalização de percorrer essa longa cadeia de produção, a lei de terceirização foi aprovada e com isso empregadores poderão terceirizar as suas atividades fins. Significa no caso das redes fast-fashion,¬ que a produção de suas roupas poderá ser terceirizada e até mesmo quarteirizada. Portanto, infere-se que com a aprovação dessa legislação os empregados estarão ainda mais vulneráveis as práticas do TEC.

4.2. A utilização da mão-de-obra do migrante indocumentado

Dentro do quadro da utilização de práticas do TEC pelo modelo fast-fashion, encontra-se a utilização da mão-de-obra do migrante indocumentado. Esses trabalhadores demonstram suscetibilidade a essas práticas devido as condições de vulnerabilidade apresentadas pelos mesmos. As dificuldades que seriam naturalmente enfrentadas em um novo país em conjunto com a situação econômica e a ausência de documentos são fatores que contribuem para o emprego de sua mão-de-obra pelas oficinas de costura. No caso dos trabalhadores das confecções têxteis do estado de São Paulo, constituem-se, em sua maioria, de cidadãos que conseguiram atravessar a fronteira e vieram em busca de novas oportunidades, muitas vezes com o objetivo de enviar dinheiro para as suas famílias que ficaram nos seus países de origem.
Nesse sentido, em 2009, foi criado o “Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções”. Assinado por diversas entidades, como a Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo, Ministério Público do Trabalho, a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, o Centro de Apoio ao Migrante, a ONG Repórter Brasil, entre outros, os quais ficaram responsáveis por envidar todos os esforços, no âmbito de suas competências e atribuições, para a ERRADICAÇÃO do TRABALHO DEGRADANTE E/OU FORÇADO, PRECÁRIO, IRREGULAR E/OU INFORMAL de imigrantes na prestação de serviços de costura no ramo de confecções, em qualquer ponto de sua cadeia produtiva, em São Paulo (REPORTER BRASIL, 2010).

O pacto reconhece a existência de um grande número de trabalhadores migrantes indocumentados no estado de São Paulo, a sua utilização na cadeia produtiva das confecções, o extremo estado de vulnerabilidade por esses trabalhadores não possuírem documentação, que ocasiona o surgimento de focos de trabalho degradante e forçado, bem como os problemas ocasionados pela terceirização, principalmente a precarização na contratação de mão-de-obra estrangeira indocumentada (REPORTER BRASIL, 2010).

A vulnerabilidade dos trabalhadores migrantes é analisada por Pedra e Barbosa (2014), e estes ressaltam não somente a condição de vulnerabilidade que contribui para a exploração desses migrantes, mas esta como sendo também um dos principais fatores que levam a saída das pessoas de seus países de origem.
De acordo com Bentemuller (2012), nas oficinas de costura esses trabalhadores recebem salários inferiores aos dos outros trabalhadores, possuem longas jornadas de trabalho e trabalham sem garantias sociais. Côrtes e Silva (2014), afirmam que entre os brasileiros os salários costumam ser maiores, apesar destes exercerem jornadas menores se comparado aos migrantes. Os autores utilizam dados retirados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano de 2010, para ilustrar as diferenças salariais e de jornada semanal entre bolivianos, paraguaios e brasileiros, e observam:

Entre os três grupos, a grande maioria recebia em 2010 de um a dois salários mínimos, mas destaca-se que para todos era muito elevado o percentual dos que auferiam apenas até um salário mínimo, sendo 31,0% dos bolivianos, 31,8% dos brasileiros e 44,5% dos paraguaios. Dos que ganhavam mais de dois salários mínimos, os brasileiros representavam 18,0%, enquanto bolivianos e paraguaios representam 12,1% e 10,6%, respectivamente. Ou seja, relativamente há um percentual maior de brasileiros entre os que ganhavam mais, apesar de exercerem jornadas menores comparativamente com os migrantes (CÔRTES E SILVA, 2014, p. 45)

Souchaud (2012) constata que existe uma diferença significativa de idade entre os trabalhadores brasileiros e os trabalhadores migrantes, pois enquanto os nacionais são geralmente do sexo feminino e mais velhos, os trabalhadores migrantes são homens na faixa dos trinta anos. Este fato representa para o autor a probabilidade de uma tendência da substituição da força de trabalho, visto que é comum que trabalhos menos remunerados e mais precários sejam ocupados por migrantes.

Schwarz (2011 apud Gomes, 2013), coloca a clandestinidade como um fator de reinvenção da escravidão, pois, segundo ele, esta acentuaria ainda mais a insegurança e a vulnerabilidade desses migrantes, e estes tornam-se dependentes do empregador e submissos a arbitrariedade das autoridades.

Para a Repórter Brasil (2016), os casos de desrespeito à legislação trabalhista tornam-se mais graves quando se tratam de trabalhadores migrantes em situação irregular. A entidade observa que devido à grande quantidade de migrantes bolivianos, paraguaios e peruanos que vão para São Paulo em busca de trabalho nas oficinas de costura, a ausência de documentos torna-se algo comum, e ressalta que muitos se submetem a condições degradantes devido ao medo de serem denunciados a autoridades locais.

Barros (2016) elenca elementos como a ausência de recursos financeiros, laços sociais, e a desorientação espacial como fatores que contribuem para a dependência dos trabalhadores pelos seus empregadores, tornando-os ainda mais suscetíveis às condições degradantes. Ainda, de acordo com o autor, os costureiros muitas vezes moram no mesmo local em que desempenham a sua função, que consiste em alojamentos precários. Em muitos casos, o trabalhador ainda deve o aluguel dessas moradias ao empregador. Como os migrantes indocumentados não podem abrir contas bancárias, o empregador retém esses salários com o pretexto de guardá-los, como forma de coerção psicológica (BARROS, 2016, p.5).
A Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, visando mapear os casos de tráfico de pessoas e de trabalho análogo à escravidão que passaram pelo MPF e pelo MPT no Estado de São Paulo, elaborou em 2015 um estudo onde foram analisados os procedimentos judiciais e extrajudiciais do Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Federal. Os dados referentes ao local de saída das vítimas podem ser visualizados nas tabelas a seguir:

Tabela 1: País de saída das vítimas por setor – MPF
País de Saída Setor Número de casos
Coréia do Sul Exploração Sexual 1
Bolívia Têxtil 14
Trabalho doméstico 1
Biodiesel 1
Paraguai Têxtil 2
Peru Têxtil 1
Total 20
Fonte: Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo

Tabela 2: País de saída das vítimas por setor – MPT
País de saída Setor Número de casos
Bolívia Têxtil 3
Peru Têxtil 1
Portugal Construção Civil 1
Total 5
Fonte: Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo

Mesmo com um pequeno número de casos em que consta a nacionalidade das vítimas devido à ausência de padronização nos documentos de resgate, a SJDC/SP reconhece que existe uma tendência entre as vítimas provenientes da América do Sul para o trabalho no setor têxtil, composto em sua maior parte por oficinas de costura terceirizadas ou até mesmo “quarteirizadas” (SJDC/SP, 2015, p.50). Dessa forma, os números ilustram a capacidade do setor têxtil de absorver uma mão-de-obra indocumentada, pouco qualificada e vulnerável.

Apesar da utilização do TEC, a forma como as informações são difundidas contribuem para a crescente necessidade de consumo da população, principalmente em relação ao vestuário, que se configura como um símbolo de status. A moda, por ser criada não somente por grandes marcas, mas também nas ruas, está sempre em constante processo de evolução e destruição. De acordo com Araújo et al (2014, p. 47), por seguir as tendências, a moda possui um ciclo de vida programado, e mesmo em bom estado esses produtos são descartados pois deixam de “estar na moda”.
Como mostram os dados anteriores, os meios para tornar essas tendências acessíveis contam com uma longa cadeia de produção e terceirizações, na qual é encontrada a mão-de-obra do trabalhador migrante indocumentado. Este é submetido, muitas vezes, ao TEC. Dessa forma, para a continuidade de um modelo cíclico de criação e destruição – a moda –, que consiga acompanhar a ascensão e queda de suas tendências, tornou-se necessário para o modelo de produção a utilização de mão-de-obra vulnerável, submetida a relações de trabalho que podem ser entendidas como TEC.

5. Considerações Finais

Através dos dados e conceitos expostos é possível entender de forma analítica como o migrante indocumentado, sem ou com pouca qualificação, torna-se suscetível ao TEC na indústria têxtil. Esta se molda através do fast-fashion, que tem como base o trabalho de vulneráveis. Trata-se de uma mão-de-obra que, no presente, vive a angústia de poder sofrer no futuro. Essas pessoas em busca da sobrevivência e da permanência em um novo país, são coagidas e absorvidas como funcionárias das oficinas de costura. O nicho têxtil torna-se um dos que mais se utiliza do TEC devido as configurações próprias do seu setor. Apesar da sedução do consumo e a criação de novos instrumentos para encantar o consumidor serem fatores característicos do capitalismo, a moda possui esse caráter per se.

Anteriormente, essa propagação das tendências e imitação das classes mais altas por parte das classes mais baixas ocorria de forma mais lenta. Atualmente, com o fenômeno da globalização, o surgimento de novas tecnologias e ferramentas de acesso a informação, as tendências difundem-se instantaneamente. A moda se consolida na sua característica efêmera, ao surgir, desaparecer e ressurgir de forma muito mais rápida. A universalização da moda incita o fast-fashion, busca propagar as tendências pelo mundo e o acesso democrático ao vestuário. No entanto, para ser cada vez mais lucrativo, submete os seus trabalhadores a condições de trabalho precárias, jornadas de trabalho prolongadas, salários irrisórios e, até mesmo, à privação de liberdade. Dessa forma, apesar de possuir o valor da democratização, aprofunda a desigualdade, principalmente nos países em desenvolvimento, onde geralmente ficam localizadas as suas oficinas de costura terceirizadas, característica que está atrelada a Divisão Internacional do Trabalho.
Além da necessidade de vestir-se conforme as tendências, o século XXI, tornou mais fácil não somente o acesso a informação, mas também aos próprios produtores de tendências. Aprofundou-se a necessidade existente na sociedade de mostrar ser não necessariamente aquilo que se é, mas sim o que é socialmente aceitável, ou invejável, não só em termos de vestuário, mas de lifestyle. Assim, as redes sociais e a exibição constante das pessoas e sua felicidade gera uma necessidade crescente de padrões a serem seguidos, de objetos e roupas a serem consumidos e da exibição de tudo isso. O simples consumo não é suficiente, ele tem que ser exibido.

A indústria da moda aumenta a lucratividade das grandes empresas, submete trabalhadores ao TEC, e vende a aparência do pertencimento a uma classe mais alta àqueles que consomem os seus produtos. À sombra das pequenas oficinas de costura terceirizadas escondem-se as grandes marcas de fast-fashion que, através desses meios conseguem burlar, em muitos casos, os direitos trabalhistas e as fiscalizações dos órgãos responsáveis. O migrante indocumentado funciona nessa cadeia de produção para tornar todo esse processo possível, visto que seus salários são inferiores aos dos trabalhadores originais do país. Através da exploração de migrantes indocumentados, suscetíveis ao TEC devido a sua vulnerabilidade, a indústria da moda consegue propagar o seu consumo. Torna possível as classes mais baixas o acesso às tendências utilizadas pelas classes mais altas. Com o intuito de copiar, e sentir-se incluído, esses produtos são consumidos, mesmo que para possibilitar esse consumo haja a exploração de um outro ser humano.

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RUPTURAS E CONTINUIDADES NO PROCESSO DE CONSCIÊNCIA EM ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO ASSOCIADO

RUPTURES AND CONTINUITIES IN THE CONSCIOUSNESS PROCESS IN COOPERATIVE ENTERPRISES

Tiago de García Nunes

Resumo: O objetivo do artigo é problematizar as rupturas e continuidades do trabalho associado a partir da comparação entre as distintas perspectivas autogestionárias identificadas em quatro OTAs (Organizações de Trabalho Associado) , tanto nas suas dimensões institucionais como no que se relaciona à experimentação desta pelos/as trabalhadores/as. Para tratar da questão foi utilizada a abordagem teórica de Mauro Iasi (IASI, 1999; 2007; 2012) sobre os processos de consciência e a metamorfose da consciência de classe, que o autor elabora a partir de algumas categorias de Marx, Jean-Paul Sartre (1979), Norbert Elias (1994) e Sigmund Freud (1978). As experiências das OTAs são construídas por certas condições sociais que levam as marcas do momento histórico e da totalidade social concreta assentada sobre determinadas relações de poder que forjam um determinado tipo de comportamento e consciência nos trabalhadores. Assim, a presente abordagem não prioriza a compreensão do comportamento e da consciência como algo que o trabalhador deva alcançar como essência para constituir-se num sujeito transformador, ou seja: o que a consciência deveria ser para ser de classe, como uma fórmula cartesiana.

Palavras-chave: Processo de Consciência; Consciência de Classe; Organizações de Trabalho Associado; Economia Solidária.

Introdução
O padrão de sociabilidade forjado pelo capital não pode ser superado por decreto, como num passe de mágicas, ou ainda pela simples socialização dos meios de produção. Assim, não se pode afirmar que a constituição de OTAs, é por si só, indício de um processo contra-hegemônico e que seus objetivos são antagônicos aos de uma sociedade estratificada em classes. No entanto, dependendo dos elementos institucionais forjados dentro das OTAs, é possível compreender a experimentação autogestionária como um conjunto de mediações mais ou menos propícias para o desenvolvimento da consciência e da práxis que avance inclusive para outras esferas econômicas e políticas da realidade concreta. Assim, algumas OTAs podem apresentar elementos favoráveis ao surgimento de uma nova consciência (consciência revolucionária ou de classe), pois que sustentam suas experiências em bases favoráveis a formação de outra forma de perceber o mundo e de interagir neste. O objetivo específico desta pesquisa foi o de verificar se e em que medida o processo autogestionário altera as transformações cotidianas das relações de trabalho, e se está relacionado a outras perspectivas de luta política; interpretando o impacto desta relação e os condicionantes institucionais daí resultantes no processo de consciência dos trabalhadores, verificando assim os limites e as possibilidades da autogestão como mediação para a sua emancipação, ou seja: as rupturas e as continuidades merecem ser desvendadas.

1. Metodologia
Foram selecionadas, intencionalmente, OTAs com significativas diferenças, como o ramo e a atividade fim, o envolvimento dos trabalhadores no seu surgimento, a organização territorial, a configuração institucional/formato jurídico, a forma de ingresso e associação de novos integrantes, a organicidade e a maior ou menor autonomia em relação a agentes externos . Tais diferenças refletem as distinções concretas entre os diversos tipos de OTAs na atualidade. A autogestão no Trabalho Associado foi o elo analítico que permitiu equacionar experiências tão ricas e diversas. Assim, as conclusões apresentadas para os quatro casos estudados podem ser estendidas, com cuidado, a um universo mais amplo que o estudado. A pesquisa foi realizada a partir de um recorte histórico-sociológico com intuito comparativo que combinou a análise documental, audiovisual e eletrônica das organizações a outras fontes históricas escritas às técnicas de pesquisa de campo. Assim foi possível relacionar duas unidades dialeticamente relacionadas, a saber: (1) a organicidade de cada OTA e (2) o comportamento individual e coletivo dos trabalhadores.

2. A autogestão como referencial teórico-analítico para compreender o Trabalho Associado na vigência do Capital

No que diz respeito às análises sobre o Trabalho Associado (TA), percebe-se uma polarização entre as interpretações que enaltecem, por um lado, que tudo mudou como num passe de mágicas e as leituras que denunciam, por outro, que nada mudou, como se estes coletivos nem tivessem existido. Em que pesem algumas importantes exceções, tal maniqueísmo ainda pauta boa parte da discussão acadêmica e política sobre as experiências e processos de trabalho associativo.
Henrique Novaes (2011), ao analisar a alienação e a desalienação em associações de trabalhadores, sinaliza a existência de inúmeros problemas na análise destas experiências pelos pesquisadores latino-americanos e aponta três tendências dominantes nas pesquisas realizadas até o momento: (1) tudo mudou, (2) nada mudou e (3) visão microscópica da realidade social. De um lado, alguns pesquisadores afirmam que tudo mudou depois do arrendamento ou aquisição dos meios de produção pelos trabalhadores de fábricas recuperadas e cooperativas de trabalhadores. No outro extremo, existe uma linha argumentativa do nada mudou, pois as associações e cooperativas estão diante do sistema produtor de mercadorias e a relação capital-trabalho se reproduz dentro de todas as empresas, sejam elas de trabalhadores ou de patrões. Em relação à terceira tendência, embora composta por perspectivas que não caem na falácia do enquanto não tomarmos o poder, nada mudará, e de mostrar as permanências e mudanças nas fábricas recuperadas e cooperativas de trabalhadores, tende a adotar uma visão microscópica da realidade social (NOVAES, 2011). Neste sentido, Novaes aponta a existência de uma ainda incipiente quarta via argumentativa. Esta via – que apresenta consequências não só analíticas, mas para a ação política – é esboçada a partir das trilhas deixadas por Marx, quando este faz a dialética da parte com o todo: das rupturas com a antiga forma e a reprodução da antiga forma, para sinalizar as possibilidades de ruptura social do movimento associativo reconhecendo-o como uma das forças transformadoras da sociedade atual baseada em antagonismo de classes, mas sem, contudo deixar de apontar a suas limitações para derrubar o sistema social do capital.

Assim, os horizontes de percepção construídos por Vieitez e Dal Ri (2001; 2011; 2010), Gaiger (2003) e Novaes (2011), são interessantes exemplos de superação das limitações analíticas e políticas das três tendências investigativas sobre o TA, abrindo caminho para a quarta via. Para Vieitez e Dal Ri há mudanças nas fábricas recuperadas, principalmente na organização e nas relações de trabalho, bem como na gestão. Contudo, os autores afirmam que as modificações realizadas até agora não dão conta de transformar a essência das fábricas – produção de mercadorias, supremacia dos quadros etc.; assim a possibilidade de avanço estaria na articulação das fábricas recuperadas, cooperativas e associações de trabalhadores com o movimento de luta mais geral dos trabalhadores, e de uma visão e um programa de modificação da sociedade, e não apenas de unidades produtivas. Para Gaiger, as formas de produção da Economia Solidária são atípicas, porém podem conviver – sem abalar – o capitalismo; para que estas se convertam num novo modo de produção que transcenda a alienação do trabalho, são necessárias mudanças significativas. Entende-se que a leitura desses quatro autores permite superar as limitações analíticas das três tendências apontadas, conectando o campo analítico ao elemento político do TA na medida que as OTAs – quando concebidas como sujeitos políticos -, prefiguram ou nos mostram alguns dos elementos do que seria uma forma superior de produção, baseada no trabalho coletivo: com sentido social e com possibilidades de emancipação humana e política. Evidentemente que as OTAs não conseguem se realizar em sua plenitude porque estão imersas no modo de produção capitalista; apresentam descontinuidades na continuidade e continuidades na descontinuidade, conforme apontado por Mészáros na caracterização dos avanços e retrocessos do cooperativismo e associativismo no século XXI (2011).

Na literatura mais atual, o TA aparece mais frequentemente como uma expressão equivalente a cooperativas populares, empreendimentos solidários, empresas recuperadas, fábricas ocupadas. E de fato, na vigência do capitalismo e em razão do marco jurídico existente no país, a maioria das OTAs está sob o formato jurídico de cooperativa. No período da memória curta, o TA reemergiu com grande força na década de 1990 em praticamente toda a América Latina. Seja pelo protagonismo dos trabalhadores na luta pela sobrevivência ou mesmo pelo viés institucional, como política pública ou privada; o TA está ainda inserido num sistema de cooperação com o capital.
Já para Tiriba e Fisher (2012, p.615) as categorias produção associada e autogestão “podem ser apreendidas e problematizadas se consideradas as condições objetivas/subjetivas em que, nos diversos espaços/tempos históricos, as classes trabalhadoras tomam para si os meios de produção”. E acrescentam que no embate contra a exploração e degradação do trabalho, não é suficiente aos trabalhadores se apropriarem dos meios de produção.
Relevante destacar que, na perspectiva de Marx e Engels e do materialismo histórico, a produção é concebida numa dimensão de totalidade dos processos de criação e recriação da realidade humano-social mediados pelo trabalho, pelos quais o ser humano confere humanidade às coisas da natureza e humaniza-se com as criações e representações que produz sobre o mundo. Marx e Engels utilizaram os termos trabalho associado, produção coletiva, sociedades cooperativas e associação cooperativa para definir uma célula no interior do modo de produção fundada na negação do trabalho assalariado, na propriedade e gestão coletiva dos meios de produção e na distribuição igualitária dos frutos do trabalho dentro do contexto da sociedade capitalista.
Ao se conferir desproporcional atenção ao tema das decisões democráticas realizadas dentro dos muros de cooperativas populares, associações de trabalhadores e fábricas recuperadas em detrimento de uma crítica profunda dos mecanismos de mercado, acaba-se por negligenciar o tema da alienação e da desalienação dos trabalhadores e a sua potencialidade enquanto horizonte de transformação social. A plasticidade do termo autogestão comporta designações analíticas que vão desde aquelas que incitam o controle das empresas pelos trabalhadores competindo no mercado; as que defendem o socialismo de mercado; até as que postulam a necessidade de se combinar ataques duplos , ou seja: mudanças na divisão do trabalho nas fábricas e associações até o planejamento global da produção e distribuição. Não surpreende que a retomada do TA enquanto prática popular tenha revigorado o debate histórico acerca dos seus limites e potencialidades, tanto no campo acadêmico como na esfera política.

Nestes termos, os clássicos debates entre o socialismo utópico e científico e sobre a natureza degenerativa das cooperativas vêm incorporando novos elementos, como o aspecto da consciência dos trabalhadores das OTAs e a crítica da alienação como possibilidade de questionamento das (des)continuidades da perda do controle do produto do trabalho numa sociedade regida pelo capital, mesmo em associações de trabalhadores, onde aparentemente a questão da transferência da propriedade dos meios de produção já se encontra realizada.

3. Rupturas e continuidades no processo de consciência em Organizações de Trabalho Associado – A consciência como processo

A subjetividade é um assunto muito relevante ao debate marxista. Durante um largo período a leitura positivista das obras de Marx negligenciou a relevância do tema da subjetividade, tratando-a como desimportante na análise dos fenômenos sociais. No debate sobre a consciência de classe não havia muito a se dizer – cada classe com sua consciência própria, se esta não estava a manifestando propriamente, bastava despertá-la.
O debate sobre a consciência se estende em diversas direções e se orienta por distintas matrizes epistemológicas: Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Émile Durkheim, Claude Lévi-Strauss, além de Marx, trabalharam, conservadas as suas peculiaridades, questão relacionadas ao exterior/interior, objetivo/subjetivo. Alguns deles empregam ainda outras noções como reflexividade, discursividade, racionalidade, habitus; mas todas comungam da noção de subjetividade.

O Processo de Consciência foi produzido em 1985, mas no prefácio da versão do texto publicada em 1999, o autor já registrava sua preocupação com o caminho da militância e seus objetivos transformadores frente ao impasse gerado pela burocratização das entidades sindicais e das administrações democrático-populares, ainda em fase incipiente. Falar em Processo de Consciência na atual conjuntura,

[…] é enfrentar algumas questões centrais para o movimento dos trabalhadores. A forma como se deu nossa história mais recente, poderia nos levar à falsa impressão de um movimento em ascenso constante desde a retomada dos sindicatos, a formação da CUT e do PT e a consolidação de um movimento nacional. No interior deste processo, tornar-se consciente equivalia a assumir um papel militante em algum ponto do movimento. Os impasses que hoje enfrentamos, expressos na defensiva da luta dos trabalhadores, a burocratização das entidades sindicais, nas administrações democrático-populares, nos levam a repensar de forma mais ampla sobre a militância e nossos objetivos transformadores. A falsa visão de linearidade tem feito com que muitos daqueles que viam de forma triunfalista o caminho da consciência, agora resvalem para um pessimismo desmobilizador (IASI, 1999, p.1).

Na obra As metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o consentimento Iasi analisa a história do Partido dos Trabalhadores. Neste estudo, o autor aprofunda os caminhos do PT, que surge como um partido derivado das lutas operárias dos anos 1970, que prega o socialismo e o anti-capitalismo; e se converte após eleito em um partido da ordem que estaria, segundo a conclusão do autor, hegemonizado pela política pequeno-burguesa e abaixo mesmo da social-democracia, porque nem reformas que acumulasses forças sociais conseguira realizar. Nesse sentido, o autor destaca que é imperativo entender o fenômeno da consciência como um movimento e não como algo dado. Só é possível conhecer algo se o inserirmos na história de sua formação, ou seja, no processo pelo qual ele se tornou o que é; assim também é com a consciência: ela não é, ela se torna. Esta amadurece por fases distintas que se superam, através de formas que se rompem, gerando novas, que já indicam elementos de seus futuros impasses e superações. E quando menos se espera, o movimento traz consigo elementos de fases superadas, retomando, aparentemente, as formas que abandonou. Outra questão preliminar muito importante: o processo é ao mesmo tempo múltiplo e uno.

Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõe a base material de sua concepção de mundo. Como então podemos falar em processo como um todo? Acreditamos que a partir da diversidade de manifestações particulares podemos encontrar, nitidamente, uma linha universal quando falamos em consciência de classe. Essa consciência não se contrapõe à consciência individual, mas forma uma unidade, em que as diferentes particularidades derivadas do processo próprio de vida de cada um sintetizam pois, sob algumas condições, um todo que podemos chamar de consciência de classe (IASI, 2007, p.13).

Neste sentido, nenhum ser ou nenhuma classe é portadora metafísica de um tipo determinando de consciência. Em a Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que a consciência é:
[…] pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens […] naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível mais imediato e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que se vai tornando consciente de si […] por outro lado, a consciência da necessidade de entrar em ligação com os indivíduos à sua volta é o começo da consciência do homem de que vive de fato numa sociedade. Esse começo é tão animal como a própria vida social dessa fase […] (MARX; ENGELS, 2009. p.44-45).

Assim inicia-se a primeira forma de consciência.

3.1. A primeira forma de consciência – alienação subjetiva

Iasi utiliza Freud para desvendar como se dá a transformação das relações sociais em funções psicológicas, ou seja, “como se formaria essa representação que todos possuem?” (IASI, 2007, p.13). Freud desenvolveu uma noção da psiquê cujo fio condutor de realização se dá em termos da relação dialética id-ego-superego. Desta forma, inicialmente, a consciência seria o processo de representação mental (subjetiva) de uma realidade concreta e externa (objetiva), formada neste momento, mediante um vínculo de inserção mais imediato, a percepção. Ou seja: uma realidade externa que se interioriza. A questão se torna complexa na medida em que essa representação não é um simples reflexo da materialidade externa que se busca representar na mente, mas é a captação de um concreto aparente, limitado: uma parte do todo e do movimento de sua entificação (o processo em que algo torna-se o que é). O novo ser ao ser inserido no conjunto das relações sociais, que tem uma história que antecede a do indivíduo e vai além dela, capta, assim um momento abstraído do movimento, e busca compreender o todo pela parte, é a ultrageneralização. Até este momento não é possível falar em relação, somente de instintos somáticos. A partir do momento em que o indivíduo percebe que não pode controlar aquilo que supõe ser parte da sua anatomia, o seio materno, é que surge uma relação e a noção do eu. É na interação com o mundo que se forma o psiquismo, a estrutura básica do universo subjetivo do ser. Os indivíduos chegam ao mundo apenas com instintos e impulsos básicos, o que Freud chama de ID (FREUD, 1978). A vivência nas relações de família, permite o início da construção do universo interiorizado. “Sob influência do mundo externo que nos cerca, uma porção do ID sofre um desenvolvimento especial […] que atua como intermediário entre o ID e o mundo externo, o EGO” (p.199-200). O mecanismo primordial dessa intermediação, entre o EGO e o mundo externo, é o chamado princípio do prazer, pela qual se busca o prazer e se evita o desprazer. Na busca do prazer, o EGO satisfaz as exigências do ID, levando em conta a limitada realidade perceptível nesta fase da vida. A ação dos pais mediatiza as exigências sociais, histórica e socialmente determinadas, apresentando-se ao “EGO em formação como uma força a ser levada em conta na sua busca de equilíbrio e adaptação” (IASI, 2007, p.16). Essa ação dos pais cumpre o papel de formação de um agente especial no prolongamento da influência parental sobre o indivíduo, que somadas às influências da família (que para Freud simboliza o núcleo de tipo burguês tradicional – pai, mãe e prole), e das tradições vivenciadas por esta, o SUPEREGO. Tal movimento permite compreender que o controle social e a dominação são subjetivados como autocontrole e como carga afetiva e não como meras ideias que podem ser facilmente substituídas. O externo se interioriza, uma relação entre o EGO e o mundo externo interioriza-se, formando uma parte constitutiva do universo subjetivo do indivíduo. Neste momento reside um fenômeno de extrema importância para a formação da primeira forma de consciência:

Acontece que aquilo que é visto pela pessoa em formação como mundo externo, como objetividade inquestionável, portanto, como realidade, é apenas uma forma particular, historicamente determinada, de se organizarem as relações familiares. No entanto, esse caráter particular não é captado pelo indivíduo, que passa a assumi-lo como natural. Assim, o indivíduo interioriza essas relações, as transforma em normas, estando pronto para reproduzi-las em outras relações através da associação (IASI, 2007, p.17).

Por conseguinte, na luta do EGO para administrar as exigências pulsionais do ID, diante das condições estabelecidas os instintos se diferenciam em dois grupos fundamentais: alimentação (ligada à sobrevivência física) e o sexo (ligada a atividade de desejo, vinculada à reprodução). Toda criança elege um objeto de seu desejo e fantasia sua perfeita integração com ele. Na estrutura triangular da família monogâmica essa ação é interrompida pela presença de uma terceira pessoa. Assim, a fantasia e a possibilidade de eliminação do concorrente são contidas em função da sobrevivência imediata. Neste momento da vida, a sobrevivência física é mais imediata que o desejo e por uma série de mecanismos, a criança desenvolve um sentimento de impotência e culpa que o EGO sente como desprazer e busca eliminar. A saída encontrada é dada pela própria natureza dos impulsos: reprime-se o desejo para garantir a sobrevivência imediata. A partir daí, a cada passo o novo indivíduo vai criando a base sobre a qual estruturará seu psiquismo e sua personalidade, ao mesmo tempo em que amolda à sociedade da qual está interiorizando as relações e formando, a partir delas, a consciência de si e do mundo. É claro que o que fica interiorizado não são as relações em si, mas os padrões de conduta, normas, valores, concepções. Os elementos descritos até aqui são os principais componentes da primeira forma de consciência, que Iasi sintetiza na forma de sete elementos:

(1) A vivência de relações que já estavam preestabelecidas como realidade dada; (2) a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente como uma realidade pontual, torna-se a realidade (ultrageneralização); (3) por esse caminho, as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de que sempre foi assim e sempre será; (4) a satisfação das necessidades, seja da sobrevivência ou do desejo, deve respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como; (5) essas relações não permanecem externas, mas se interiorizam como normas, valores e padrões de comportamento, formando com o SUPEREGO, um componente que o indivíduo vê como dele, como autocobrança e não como uma exigência externa; (6) na luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência, o indivíduo tende a garantir a sobrevivência, reprimindo ou deslocando o desejo; (7) assim, o indivíduo submete-se às relações dadas e interioriza os valores como seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e reprodução (IASI, 2007, p.18-19).

As relações familiares são complementadas, reforçadas ou revertidas pela inserção nas diversas relações sociais pelo qual o indivíduo passa durante a vida. Nessas o indivíduo pode assumir um papel mais ativo, menos dependente e até protagonista da sua história. No entanto, nem sempre esse protagonismo se manifesta e a tendência é que essas vivências secundárias (escola, trabalho, comunidade) à formação da personalidade, acabem por reforçar as bases axiológicas lançadas na família. Na escola tradicional prussiana, por exemplo, as regras são determinadas por outros que não os estudantes, com o poder para defini-las. Salvo exceções, os alunos submetem-se diante da necessidade de sobrevivência imediata. As normas internas são naturalizadas e a disciplina torna-os cidadãos disciplinados. Algo similar ocorre no ambiente de trabalho assalariado, pois as regras são predeterminadas: vender a força de trabalho a um patrão em troca de salário não é percebido como absurdo, mas como natural. A lógica imposta pelo capital (externa aos indivíduos) interioriza-se e naturaliza-se. Os indivíduos alegram-se quando algum capitalista dispõe-se a comprar sua força de trabalho, e pregam as ideias do capital como se suas fossem. Para Iasi, “formada essa primeira manifestação de consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e particularizado, generalizando-o. Tomando a parte pelo todo, a consciência expressa-se como alienação” (IASI, 2007, p.20). Assim, a alienação é a forma de manifestação inicial da consciência. Essa forma será a base concreta onde será plantada a ideologia como forma de dominação.

A ideologia não pode ser compreendida apenas como um conjunto de ideias que são introjetadas na cabeça dos indivíduos pelos mais distintos meios como a mídia, a escola ou a religião. Essa compreensão levaria ao equívoco de rotular uma ação anti-ideológica com a possibilidade de trocar velhas por novas ideias – substituir ideias conservadores por ideais revolucionárias. Marx e Engels, quando destacaram a importância do ser social e da consciência social, para a compreensão materialista da história, oportunamente destacaram:

A consciência (das Bewunntsein), nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente (das bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera escura, é porque esse fenômeno deriva do seu processo histórico de vida da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida. Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos (Reflexe) e ecos ideológicos desse processo de vida. Também as fantasmagorias (Nebelbildungen) no cérebro dos homens são sublimações necessárias de vida material empiricamente constatável e ligado e premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica, e toda outra (sonstige) ideologia, e as formas de consciência que lhe correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia […]. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência (MARX; ENGELS, 2009, p.31-32).

A alienação cede terreno para a ideologia, mas diferencia-se desta. A alienação que se expressa na primeira forma de consciência é subjetiva, profundamente enraizada como carga afetiva, baseada em modelos e identificações de fundo psicológico. A ideologia agirá sobre a alienação e se servirá de suas características fundamentais para exercer uma dominação que agindo de fora para dentro, encontrará nos indivíduos um suporte para estabelecer-se subjetivamente.
Quando numa sociedade de classes, a que uma delas detém os meios de produção, tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais de produção que garantem sua dominação cultural e econômica. Em relação aos meios de comunicação em massa, se dizer que estes representam os interesses da classe dominante já é ultrapassado; atualmente os meios de comunicação são a própria classe dominante, tamanho é o avanço das fusões empresariais que redundam em grandes conglomerados econômicos. Assim, as ideias da classe dominante são em cada época as ideias dominantes:

Ora, se na concepção do curso da história separarmos da classe dominante as ideias da classe dominante, se lhe atribuirmos uma existência autônoma, se nos limitarmos a que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições de produção e com os produtores dessas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então podemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram os conceitos honra, lealdade etc., durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. […]. Em média, é isso que a própria classe dominante imagina. Essa concepção da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século 18, há de necessariamente chocar com o fenômeno de que dominam ideias cada vez mais abstratas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma de universalidade (MARX; ENGELS, 2009, p.68-69).

Em suma: cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela é obrigada, para realizar o seu propósito, apresentar o seu interesse como universal de todos os cidadãos, ou seja: dar à sua ideia aparência de universalidade, apresentando-a como verdade racional e com validade universal.
As relações sociais baseadas na propriedade privada e no assalariamento da força de trabalho são determinantes do modo de produção capitalista e não propiciam condições para emancipação humana, muito pelo contrário, são relações que potencializam e intensificam a alienação, que se manifesta em pelo menos três níveis: (a) o ser humano está alienado da natureza; (b) o ser humano está alienado de si mesmo; (c) o ser humano está alienado de sua espécie (MARX, 2010). Ao viver o trabalho alienado, o ser humano aliena-se da sua própria relação com a natureza, pois é pelo trabalho que o ser humano se relaciona com a natureza, a humaniza e assim pode compreendê-la. Vivendo relações em que ele próprio se coisifica, onde o produto do seu trabalho lhe é algo estranho e que não lhe pertence, a natureza se distancia e se fetichiza. Marx exemplifica o primeiro nível de alienação:

[…] o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquina, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador (MARX, 2010, p.82).

Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria atividade. O trabalho transforma-se, deixa de ser a ação própria da vida para se converter num meio de vida. Ele trabalha para o outro, contrafeito o trabalho não gera prazer, é a atividade imposta que gera sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que o humaniza, o ser humano se aliena de si próprio (autoalienação). Como resultado necessário desta relação, “encontramos a relação de propriedade do não-trabalhador com o trabalhador e com o trabalho” (MARX, 2010, p.82).
Isso nos leva ao terceiro aspecto. Alienando-se de si próprio como ser humano, tornando-se coisa (o trabalho não me torna um ser humano, mas é algo que eu vendo para viver), o indivíduo afasta-se do vínculo que o une à espécie. Em vez de o trabalho tornar-se o elo entre os indivíduos, a produção social da vida, metamorfoseia-se num meio individual de garantir a própria sobrevivência particular. Neste sentido, “o não trabalhador faz contra o trabalhador tudo o que o trabalhador faz contra si mesmo, mas não faz contra si mesmo o que faz contra o trabalhador” (MARX, 2010, p.90).
Iasi aduz que a materialidade dessas relações produtoras da alienação (em seus três aspectos) são expressas no universo das ideias como ideologia. São relações materiais concebidas como ideias. A ideologia encontra na primeira forma de consciência uma base favorável para a sua aceitação. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de sua aceitabilidade (IASI, 2007).

As referências mais singelas e corriqueiras como ter sucesso, ser alguém na vida, ser pobre, ser rico e a própria felicidade, já são ancoradas no imaginário da criança com base em um conjunto de valores interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estão referenciados nas relações concretas e nos vínculos afetivos familiares e de vizinhança que ela possui antes mesmo que tenha qualquer informação mais sistematizada.
A percepção generalizada da vivência particular não apenas se baliza em valores como deforma a realidade pela transposição de juízos presos à particularidade. Os valores que aparecem como sendo de uma criança quando manifesta suas percepções infantis sobre ter sucesso ou ser alguém na vida, não foram interiorizados pelo contato perceptivo com as relações sociais determinantes na sociedade onde vive. Os valores são mediatizados por pessoas que servem de veículo de valores, são modelos – modelos de sucesso e de pessoas que são alguém na vida, de acordo com a limitada cadeia de valores-referência que a criança já possui; mesmo que não conheça pessoalmente ninguém com tais características, mas baseada na forma como outras pessoas se posicionam em relação a tais valores. “Não se trata da identificação com a sociedade, as relações capitalistas ou as ideias; são as relações de identidade com outros seres humanos, seus modelos, que a pessoa em formação assume valores dos outros como sendo seus” (2007, p.24). Assim o indivíduo vai construindo uma visão do mundo que julga como sendo própria.
Essa visão acrítica, desistoricizada, sem um inventário, é o que Gramsci chama de senso comum:

Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas […] o início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um conhece-te a ti mesmo como produto do processo histórico até hoje desenvolvido (GRAMSCI, 1978, p.12).

Esse conjunto que une desordenadamente e contraditoriamente elementos do senso comum e instituições de um pensamento crítico (conforme a noção de Gramsci) é a base do que Iasi chama de primeira forma de consciência. Ela apresenta-se como alienação não porque se desvincula da realidade, mas pelo fato de naturalizá-la, por desvincular os diversos elementos componentes da visão de mundo do seu contexto e de sua história.
A relevância da base dessa primeira forma de consciência leva Iasi a procurar outras fontes de compreensão do fenômeno. Assim, o autor passa a considerar os estudos de Norbert Elias na obra A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994). Nesta, Elias se debruça sobre a relação entre a pluralidade de pessoas e a pessoa singular a que chamamos indivíduo, e da pessoa singular com a pluralidade de pessoas a que chamamos sociedade. Neste desenvolvimento histórico particular, o controle social é internalizado como autocontrole e como repressão dos impulsos (a dominação é subjetivada como carga afetiva), visando oportunizar uma realização do ideal de ego.

Esse ideal de ego do indivíduo, esse desejo de se destacar dos outros, de se suster nos próprios pés e de buscar a realização de uma batalha pessoal em suas próprias qualidades, aptidões, propriedades ou realizações, por certo é um componente fundamental da pessoa individualmente considerada. Trata-se de algo sem o qual ela perderia, a seus próprios olhos, sua identidade de indivíduo. Mas não é, simplesmente, parte de sua natureza. É algo que se desenvolveu nela através da aprendizagem social. Como outros aspectos do autocontrole ou consciência, só emergiu na história, dessa maneira pronunciada e difundida, gradativamente (ELIAS, 1994, p.118).

De acordo com Elias, o ideal de ego está relacionado ao processo histórico de individualização. Quer se aperceba disso ou não, o indivíduo é colocado numa constante luta competitiva (parcialmente tácita e parcialmente explícita) em que ele possa dizer a si mesmo: “esta é a qualidade, posse, realização, ou dom pelo qual me difiro das pessoas que encontro a meu redor, aquilo que me distingue delas”.
Em outras palavras, esse ideal faz parte de uma estrutura de personalidade que só se forma em conjunto com situações humanas específicas com sociedades dotadas de uma estrutura particular, com alto grau de diferenciação. É algo da esfera pessoal e ao mesmo tempo, específico de cada sociedade. O ser não escolhe por livre convicção o ideal individualista entre diversos outros existentes. De acordo com Elias, esse ideal individual é socialmente exigido e inculcado na grande maioria das sociedades altamente diferenciadas. É claro que existe possibilidade de resistir a tal exigência social, decidindo por si só e destacando-se dos demais. Mas em geral, essa forma de ideal de ego e o alto grau de individualização a ela correspondente são parte integrante de seu ser, uma parte de que não podem livrar-se assim tão facilmente.
Normalmente, as pessoas criadas dessa maneira aceitam o ritual de batalha e o comportamento que o acompanha como naturais. A margem de escolha (aparentemente ampla) nestas sociedades se limita às metas possíveis – primeiro através da posição de seus pais e depois através da que ela mesma atinge – para realizar atividades que destaquem os indivíduos dos demais, seja de esporte ou lazer.

No entanto, a probabilidade de se chegar à realização desses fins são sempre ínfimas em relação ao número de pessoas que buscam. Isso também estimula uma batalha pessoal aprendida, produzida no indivíduo por instituições sociais e experiências específicas; sendo que as próprias instituições sociais não satisfazem a realização dos desejos criados. Assim, essa luta só poderá ser vencida por uma minoria.
Se por outro lado, o indivíduo sofre um processo crescente de autonomização, por outro, “é característico da estrutura das sociedades mais desenvolvidas de nossa época que as diferenças entre as pessoas, sua identidade-eu, sejam mais altamente valorizadas do que aquilo que elas têm em comum, sua identidade-nós” (ELIAS, 1994, p.130). Em estágios anteriores do desenvolvimento era muito comum a balança nós-eu ser inclinada para o lado da identidade-nós em vez da identidade-eu. Tal guinada exige reposição social de autocontrole em doses ainda maiores. A preponderância da identidade-eu sobre a identidade-nós produz uma forma de ser-estar particular da modernidade, o das cápsulas de individualidade. Iasi aponta que essa forma particular de ser-e-estar é generalizada pelas engrenagens do capital ao longo de um processo no qual a generalização do ser social particulariza-se e particularidade universaliza-se.

A individualização do ser social é uma precondição para que os livres vendedores de força de trabalho se apresentem ao mercado, assim como é essencial para a forma privada de apropriação dos meios de produção e, mediante este ato, também do valor excedente gerado no processo de consumo da mercadoria força de trabalho. No reino da igualdade todos os indivíduos disputam entre si, seja uma vaga no mercado de trabalho, seja na livre concorrência entre capitalistas, e esta guerra é disciplinada pelas leis do mercado e suas mãos invisíveis (IASI, 2012, p.195).

Por tal razão, na sociedade das cápsulas de individualidade, a consciência imediata só pode assumir a forma de consciência do eu, e um eu que tenderá a (re)produzir, continuamente, os parâmetros da primeira forma de consciência. A (re)produção social, mesmo de uma consciência encapsulada na forma do eu, não tem outra maneira de se processar senão coletivamente. “A consciência é relacional e por isso mesmo que está plenamente permeada pelas contradições e antagonismos típicos das relações sociais sob o sociometabolismo do capital” (FERRAZ, 2015, p.128). Os valores liberal-burgueses, subjetivados afetivamente, acarretam uma situação em que os trabalhadores vislumbram na venda de sua força de trabalho a única possibilidade de subir na vida e ascender de classe. Trabalhar cada vez mais horas; para mais de um empregador; ser autônomo; desenvolver competências; trabalhar informalmente. Contudo, essas práticas, que são estratégias de valorização da força de trabalho, e de acordo com Ferraz tendem a produzir duas consequências:

(1) Por mais criativos, talentosos e flexíveis que sejamos, é inerente ao processo de (re)produção do capital que não haja trabalho para todos; os obstáculos da mobilidade social são, em geral, creditados ao sistema de méritos, o que faz encobrir a questão realmente determinante – é a posição ocupada pelo indivíduo no processo produtivo o condicionante do acesso ou não à qualificações, networks e postos de trabalhos mais rentáveis, limitando a muito poucos chances efetivas de vencer na vida;
(2) Um possível aumento na renda se faz acompanhar pelo aumento do desgaste físico-psíquico, que deteriora a mercadoria vendida (força de trabalho), reduzindo sua possível vida útil para o capital. […]. Por outro, aquele aumento não ocorre sem a correspondência proporcional no aumento da produtividade do trabalho que, por sua vez, intensifica a concorrência intra-classe trabalhadora, tendendo a um decréscimo do valor da mercadoria no mercado de trabalho, isto é, efetiva-se a tendência do decréscimo do possível primeiro aumento do rendimento no âmbito geral. Tal luta heroica e individualizada para vencer na vida evolui numa crescente de agressividade e tende a resultar em cada vez menos e menores vantagens reais para os vendedores de força de trabalho (FERRAZ, 2015, p.129).

No exemplo citado a respeito do senso comum sobre o sonho da mobilidade social observa-se que ele é sustentado: (a) pelos valores constituintes da consciência encapsulada que redundam no vencer na vida; (b) pelas ideias aceitas pelo grupo imediato do que representa vencer na vida; e (c) pelas possibilidades concretas no mercado de trabalho – não raro, algum trabalhador que atinge o sucesso será exaustivamente propagandeado (FERRAZ, 2015, p.128-129). No entanto, a exceção confirma a regra. Num contexto onde o trabalhador-indivíduo percebe o outro mediado por relações sociais alienadas fixadas na primeira forma de consciência, há o obscurecimento de que o crescimento de alguns só é possível à custa do descarte de outros.

3.2.3 As contradições da primeira forma de consciência

Os argumentos que até agora sustentaram a consciência como um processo, permitem reconhecer que esta é formada a partir de uma relação dialética entre as representações ideais dos indivíduos e as relações concretas por estes assumidas. O universo ideológico não pode ser entendido como mero reflexo mecânico das relações sociais, o que colocaria no caminho armadilhas do tipo: Quem determina a alienação? A família ou as relações de trabalho? A leitura dialética possibilita entender que a família, que antecipa sua ação no indivíduo em relação às atividades de produção, é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as mediatiza: aquilo que determina é determinado. A família, que ao mesmo tempo reproduz e reforça relações sociais de produção, fornece o suporte necessário para que a ideologia frutifique e garanta a reprodução destas.
Não pode haver dominação ideológica perfeita. A ideologia e as relações sociais de produção formam um todo dialético, não estabelecem simples relações de complementariedade, mas uma união de contrários. Por mais elaborada, sofisticada ou eficiente que seja a ideologia, ela é ainda a representação mental de certo estágio das forças produtivas historicamente determinadas. Uma visão de mundo interiorizada não torna-se irrevogável pois a estrutura produtiva e as relações que lhe deram vida podem alterar-se; inclusive tais alterações constantes das condições materiais são marcas do modo de produção capitalista, portanto vitais para os interesses dominantes. Eis aqui uma contradição insolúvel da sociedade capitalista que pode virar o germe de uma crise ideológica:

Enquanto as forças produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem permanecer estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as relações interiorizadas como ideologia e forma concreta como se efetivam na realidade em mudança (IASI, 2007, p.27).

Tal contradição pode ser vivida como um conflito subjetivo pelo indivíduo. Se sua consciência inicial é formada pela interiorização de normas, valores e comportamentos sentidos a partir das relações imediatas que estabeleceu desde sua mais tenra idade, o mecanismo provocador da contradição na primeira forma de consciência não é outro senão o próprio que lhe deu existência. Em tese, as relações vividas com novos conteúdos têm similar potencial de interiorização que as anteriores, podendo gerar novos valores que servirão de base para novas condutas e comportamentos.
No mesmo sentido da reflexão anterior: se alguém que acreditasse que trabalhando cada vez mais horas por dia, para mais de um empregador, desenvolvendo competências, poderia alcançar tudo o que quer, mas não consegue o suficiente para viver tampouco possuir um lar próprio; vivencia uma contradição que pode levá-lo à revolta. Suas relações concretas passam a não corresponder à base de valores interiorizada, contudo, tal contradição ainda é vivida na subjetividade e está condicionada aos limites da própria estrutura da sua primeira forma de consciência.
A primeira forma de manifestação dessa contradição não é ainda a superação da alienação, é mais uma forma transitória que se expressa de maneira mais nítida, no estado de revolta.
Nesse momento da vida, as relações são vividas como injustas e talvez exista a disposição subjetiva de não se submeter a algo. No entanto, pela complacência própria da primeira forma de consciência ou pelo instinto de sobrevivência, as contradições acabam sendo mentalmente convertidas a fatalismos inerentes à realidade do trabalhador.

É apenas sob certas condições que a insatisfação pode se tornar uma passagem para a nova etapa do processo de consciência.

3.2. O processo dialético de totalização mediado pelos grupos
Na busca por pistas dessas condições de superação da primeira forma de consciência (como visto, marcada pela alienação subjetiva do indivíduo), Iasi faz uma conexão entre a situação da autonomização do indivíduo nas cápsulas de individualidade de Elias e a noção de serialidade de Jean-Paul Sartre na obra Crítica da Razão Dialética (SARTRE, 1979). O capital produz um novo tipo de escassez por meio da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. Na sociabilidade do capital o seu humano é empurrado para uma luta pela busca do fim estipulado pela materialidade capitalista fetichizada onde os indivíduos concorrem entre si pelas possibilidades de uma vaga na divisão social do trabalho – a única maneira de garantir a sobrevivência no contexto da luta de todos contra todos. Tal sociabilidade é o que Sartre denomina de “campo prático-inerte” (IASI, 2012, p.215). Nesse campo ainda existe reciprocidade, mas de forma invertida, pois a forma social coletiva é a da ocupação do mesmo espaço de luta, “como multiplicidade de individualidades, como pluralidade de solidões”. Essa forma de expressão inicial do coletivo é que Sartre denominará de serialidade (SARTRE, 1979, p.396). Cada indivíduo vem de sua inserção em grupos, mas a série em que se encontra não é um grupo, é um coletivo serial no qual cada parte está acidentalmente ocupando um lugar, cada um é indeterminado, estão reunidos, mas não integrados. Sartre exemplifica a questão com duas situações cotidianas vivência de serialidade: pessoas numa fila do ônibus (vivência presencial direta) e ouvintes de uma rádio (situação de ausência). – e que poderia ser perfeitamente compreendida, de forma a atualizar o exemplo de Sartre, como a serialidade de um grupo qualquer de pessoas que recebe as mesmas informações por algum aplicativo conectado às redes sociais.

A consciência imediata do ser sob esta ordem só pode se apresentar como uma consciência individual, naturalizada e atemporal, desagregada e ocasional, formada bizarramente, mas revelando uma coerência irretorquível àquela que a possui, herdada de uma sociabilidade objetiva imposta, mas que o indivíduo julga como sua autêntica subjetividade. Cada um buscando seu próprio interesse realiza o interesse geral, mas este não é a harmonia e a felicidade do conjunto como quer o pensamento liberal, mas o capital total e a reprodução das condições gerais de sua perpetuação. Neste sentido, a alienação não estaria apenas na objetividade do ponto de partida e na forma objetivada ao final, mas igualmente na mediação pela própria atividade dos indivíduos, constituindo não propriamente uma práxis, mas uma antipráxis na qual o espaço da liberdade é nulo (IASI, 2012, p.217).

Em suma, a interiorização de uma objetividade social particular se mostra como subjetividade singular, como traço diferencial da personalidade, quando na verdade cada um se comporta de acordo com o interesse do próprio sociometabolismo do capital, na convicção que realiza uma escolha permitida pela igualdade formal internalizada como conquista social.
Para Sartre, a dialética dos grupos é uma dialética da totalização, momento no qual se instituem totalidades a partir de totalidades instituídas, momento de mediação subjetiva entre duas objetividades: (1) aquela na qual o ser humano se encontra como ponto de partida e (2) aquela que é produto de sua objetivação. Assim, este movimento descreve uma negação da negação, de forma que a primeira objetividade, o chamado campo prático-inerte, é negada pela ação subjetiva da livre práxis, que produz uma nova objetivação que se aliena em um novo campo prático-inerte.
Essa totalização dialética reproduz no grupo a negação da negação, assim “o grupo é a mediação que permite à universalidade encontrar o caminho de sua própria recondução como totalidade; por isso, o grupo é o momento particular desta totalização” (IASI, 2012, p.285). Para Iasi, o grupo é pré-condição de passagem entre a vivência de uma contradição entre antigos valores assumidos e a realidade das novas relações vividas; é a possibilidade da primeira negação da serialidade e constitui o meio pelo qual a práxis livre age sobre a materialidade objetiva e pode transformá-la. No entanto, o autor alerta para um risco: ao se construir enquanto grupo-organização, o grupo passa a ser objeto de sua própria ação objetivando-se e, sob certas condições, se institucionalizando de modo a negar sua negação e retornar a serialidade (IASI, 2012, p.84).
Os momentos pelos quais o grupo constitui-se em sua totalização dialética, na abordagem de Sartre, é o que se discutirá a seguir.

O primeiro momento do percurso de totalização dialética é a situação de serialidade, ou o coletivo serial. Assim, a força que age sobre o coletivo serial e pode transformá-lo em grupo assume a forma de uma impossibilidade:

[…] até aqui, de fato, – na dimensão do coletivo -, o real se definia por sua impossibilidade. Aquilo que chamam de sentido de realidade significa exatamente: sentido daquilo que por princípio, está proibido. A transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou, se preferirem, quando um acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver. O que tem como efeito direto que a impossibilidade de mudar se volta como objeto que se tem que superar para continuar a vida (SARTRE, 1979, p.14).

Noutras palavras: a situação de serialidade é produzida por algo que não depende da vontade de cada indivíduo do coletivo serial, como no exemplo do passageiro de ônibus na relação com o objeto ônibus e no caso do eleitor na relação com objeto eleição (outro exemplo utilizado por Sartre); mas tanto o passageiro como o eleitor veem seus atos como expressão particular da sua vontade e acreditam estarem em situação de alteridade serial para com o outro. Assim, o mesmo fator (espera na fila/eleições) produz a alteridade serial (passageiros/eleitores) e a unidade de conjunto como coletivo (fila/colégio eleitoral). Como o real é aquilo que está proibido pela situação de serialidade (entrar diretamente no ônibus ou fazer política com as próprias mãos não passa na cabeça do indivíduo serial), o fator que age na transformação do coletivo serial em grupo é uma impossibilidade da impossibilidade que atua em algum ponto essencial à sobrevivência. O coletivo serial é colocado diante da impossibilidade de manter uma restrição que ele mesmo produz em cada um e no todo, e vê a necessidade de romper o campo prático-inerte. Ao agir o “coletivo verifica com surpresa como em um momento de sua atividade passiva foi um grupo” (SARTRE, 1979, p.14). Tal momento pode marcar a quebra da serialidade em direção ao grupo em fusão – segundo momento do percurso. Esse momento se dá quando a necessidade individual ou o perigo são sentidos como problemas comuns e agrupam os indivíduos, dissolvendo a serialidade. Não se trata de um simples enxergar-se no outro, pois além da formação do grupo, a fusão dá-se na ação de romper com a serialidade em direção à práxis aberta à totalização. A partir desse momento o grupo vive uma permanente tensão entre o caminho aberto pelo grupo em fusão, no sentido de totalização e a ameaça de se dissolver na serialidade. Se o grupo não se dissolve há uma tendência de afirmação da práxis livre mediante uma reciprocidade com capacidade para reproduzir sua própria inércia na direção do objetivo comum para negar a serialidade. É como se fosse uma primeira “negação da dialética no coração da dialética” (SARTRE, 1979, p.14). É a fase do novo estatuto que Sartre chama de juramento (terceiro momento do percurso de totalização dialética). Mas a diferença qualitativa deste momento de inércia dentro do movimento de totalização é que a identidade do grupo não é mais dada por uma entidade externa, é fruto da mediação do próprio grupo, que trata de alcançar a práxis livre ao mesmo tempo em que limita livremente esta liberdade. O projeto já é um projeto recíproco do grupo, e o compromisso já é mediado por um terceiro, pois o juramento de cada um é também juramento dos outros e do grupo ao mesmo tempo. Sua solidez se explica pela manutenção de algo externo, por um perigo, pelo medo. Enquanto ameaça externa, este objeto de perigo está na base da fusão do grupo; no entanto, num segundo momento de relaxamento dessa situação de perigo externo produz em cada um do grupo a persistência de uma nova ameaça e um novo perigo: “o de progressivo desaparecimento do interesse comum e do reaparecimento dos antagonismos individuais e da impotência serial” (SARTRE, 1979, p.14). O juramento é o produto que deriva desse momento da vida do grupo e o demarca agora como grupo jurado. Nesse sentido, o juramento pode ser compreendido como pacto coletivo permanente (seja explícito ou implícito) que carrega as marcas da motivação e da intensidade do envolvimento dos seus integrantes na sua criação. As Organizações de Trabalho Associado também possuem seus juramentos, e estes costumam refletir os movimentos e bandeiras de luta representadas e as principais motivações dos seus integrantes (geração de renda, alternativa ao desemprego, direito ao trabalho, integração social etc.). As OTAs menores tendem a ter juramentos mais vívidos, enquanto as mais numerosas dificilmente logram escapar da burocratização, mesmo que em proporções mínimas. As OTA que passaram por situações de conflito intenso tendem a carregar consigo esta tatuagem como elemento que fortalece os laços identitários do grupo. Um simples exemplo capturado na entrevista de um integrante da CooperActiva pode exemplificar a questão:

[…] no passado fomos mais flexíveis com quem ficava aqui, as vezes nem sabíamos quantos estavam dormindo, atualmente somos mais seletivos e mandamos embora quem não comunga dos nossos princípios libertários. Não somos muito rígidos quanto a leituras específicas do anarquismo, mas não aceitamos um cara machista ou homofóbico aqui dentro. Isso já ocorreu e mandamos ele embora.

Nesse caso a natureza do juramento reflete a identidade política desse sujeito coletivo e sua rigidez é diretamente proporcional ao tamanho das ameaças e dos perigos que atormentam o grupo cotidianamente. Tal perspectiva está relacionada ao próximo momento do percurso de totalização dialética, como reação direta do grupo jurado e que o encaminha no sentido do quarto movimento do percurso de totalização dialética definido por Sartre como fraternidade-terror (IASI, 2012, p.290). Para Iasi, por mais paradoxal que possa parecer, este é o momento de mais elevada liga solidária e unidade do grupo, pois é um momento de unidade de contrários fundamental que lhe confere identidade. O grupo em fusão que se transforma no grupo jurado reforça os laços que mantém o grupo unido e solidifica os mecanismos de identidade horizontal (entre os membros dos grupos) e vertical (com as eventuais lideranças); assume o ser-no-grupo como limite insuperável: fora dele há morte. O não juramento de um terceiro elemento no interior do grupo passa a representar a possibilidade concreta de sua dissolução novamente em serialidade (regredindo ao primeiro momento do sistema de Sartre). Quando esta ameaça ao grupo manifesta-se internamente, desencadeia-se um violento processo de terror, mas precisamente no fato de que o grupo tem o direito de matar o traidor (nas palavras de Iasi), seja diretamente – dependendo da temperatura histórica – seja por sua expulsão do grupo, considerado limite fora do qual a vida é impossível. A figura do dissidente, ou do traidor, funciona internamente na situação do grupo como substituto da ameaça externa, permitindo, pois a utilização da força comum, até então comprometida contra o adversário e que agora é considerada legítima por intermédio do pacto coletivo estabelecido. O membro do grupo que representa essa situação pode não ser imediatamente eliminado, pode inclusive ser mantido no grupo para que possa ser constantemente aniquilado em nome da solidariedade do grupo. No exemplo dado anteriormente da CooperActiva, além de proceder a retirada de um visitante machista ou homofóbico tal eliminação (de quem poderia inclusive tornar-se membro futuro do grupo) cumpre papel de afirmação dos valores do coletivo, definindo as fronteiras daquilo que é aceito e o que não pode ser aceito – uma espécie de pedagogia da coerência, pois não bastam acordos formais se tais acordos não são reforçados concretamente, é necessário ter coerência nas relações cotidianas do grupo. Organizações que não demonstram as fronteiras de sua solidariedade em momento algum das relações concretas; são solidárias a quê? Nessa direção, Lia Tiriba põe na ordem do dia importante questionamento, quando discute a fragmentação da cultura nas organizações econômicas populares e as distintas origens e influências dos grupos: economia solidária, mas solidária a quê? Na sequência da pergunta, a autora desenvolve o argumento:

Não se pode afirmar que a formação de grupos de trabalhadores associados é, em si mesma, indício de um futuro processo de contra-hegemonia e que seus objetivos são antagônicos aos de uma sociedade estruturada em classes sociais. Não há, necessariamente, a intenção do partido político ou do intelectual coletivo de lutar contra os antagonismos estruturais do modo de produção capitalista. Devido à experiência associativa anterior (eclesial, sindical, de vizinhança etc.), alguns grupos já surgem com a intenção de um projeto embrionário; outros vão acontecendo ao longo do caminho e pouco a pouco seus atores dão-se conta de que não querem voltar à forma anterior ao trabalho, de que não querem voltar a ter um patrão. […] Por certo, quando o grupo surge com um vínculo estreito com os movimentos populares (ou, pelo menos, com a comunidade local), quando os trabalhadores viveram experiências anteriores ou o associativismo é algo que, embora novo, é intensamente refletido pelos seus integrantes, maior é a possibilidade de construção de um processo de trabalho calçado em relações mais amplas de solidariedade (TIRIBA, 2001, p.346-347).

Durante o trabalho de campo, teve-se notícia de outra situação ocorrida numa das OTAs pesquisadas, conveniente para elucidar o momento fraternidade-terror descrito por Sartre e a sua importância para o grupo. Após o polêmico processo de aprovação do pedido de impeachment da Presidente Dilma Rousseff na câmara dos deputados em abril de 2016 , integrantes de um empreendimento da Associação Bem da Terra manifestaram apoio ao posicionamento do deputado; iniciando uma sequência de manifestações nas redes sociais com a publicação de conteúdos supostamente incompatíveis com a proposta da Associação, que manifestavam discursos de ódio a minorias, posicionamentos racistas, sexistas e homofóbicos; odiosos inclusive aos próprios movimentos que integram a Associação. Quando questionados pelas razões das manifestações os associados reafirmaram seu posicionamento, destacando que não havia sido um posicionamento inocente e sim uma opinião consciente . Assim, o comportamento foi considerado incompatível com os princípios éticos da associação por uma das categorias que compõe a associação – o Conselho de Consumidores. O conselho apresentou a questão na reunião geral da Associação por meio de uma carta que além de sugerir atividades formativas que tratasse da conjuntura política nacional, destacava:

[…] precisamos nos pautar firmemente por valores que se alicercem numa ética de solidariedade e tolerância para reforçar os princípios éticos e preceitos ideológicos afirmados pelo regimento da Associação a fim de rejeitar qualquer manifestação que fira estes valores, seja por parte dos consumidores ou dos produtores […] defendemos a revogação da participação do associado que não respeite as premissas da Associação conforme o seu regimento.

Não se teve notícia do resultado das repercussões do fato, mas esse pode ser compreendido como situação capaz de fortalecer ou enfraquecer a unidade de contrários. Se o fato não for gerador de qualquer represália ou desconforto no grupo, esta inércia pode ser interpretada como um sinal de regresso à serialidade, ou mais sutilmente: que o momento da fusão não foi bem consolidado no grupo. Recorde-se que o processo de totalização mediado pelos grupos tem natureza essencialmente dialética, sendo importante o cuidado de não considerar os diferentes momentos ou movimentos de forma etapista ou linear.

Para Iasi, a condição para o juramento é a fusão, e o juramento é a base para a fraternidade-terror, que anuncia os elementos do quinto momento do processo de totalização: o grupo organizado ou a organização (IASI, 2012, p.291).
Se o direito à violência que cada um tem sobre o outro fundamenta a solidariedade do grupo, esse direito, dependendo da forma de controle do seu exercício também pode ameaçá-lo de desintegração. A fim de alicerçar o que Sartre denomina de poder difuso de jurisdição (SARTRE, 1979, p.14), o grupo, diante de um juramento, um objetivo comum, de um projeto comum, do perigo comum; especializa funções e distribui tarefas. As particularidades de cada organização, seus distintos percursos de luta, a existência de distintos órgãos e coordenações mais ou menos formalizadas, instâncias de poder, divisão do trabalho, interferência de agentes externos, canais de participação e de deliberação direta, tipos de gestão; todos componentes que traduzem distintas perspectivas autogestionárias presentes nas OTAs que em outras palavras traduzem a repartição do poder jurídico de uma forma difusa.

Para Iasi, é nesse momento que o poder jurídico difuso assume forma de regulamento, estatuto, normas comuns. Ainda que já baseado em uma diferenciação de funções na qual são definidas as estruturas básicas nas quais o grupo define e inventa suas instituições a partir de rupturas e continuidades com o campo prático-inerte do qual partiu, como atividade-estruturada, o ciclo ainda não se fechou sobre a práxis livre do grupo. A diferença em relação à etapa anterior é que agora se trata de uma “práxis organizada”, “uma ação do grupo sobre si mesmo, com a ação de seus membros sobre o objeto” (SARTRE, 1979, p.114).
Atenção: aqui reside um divisor importante e central para a compreensão do argumento de Sartre! Se encerra o ciclo sobre a práxis livre do grupo. Mas, por quê?
Ao proceder como práxis organizada, o grupo se objetiva em um produto – o grupo organizado – de forma que essa objetivação comum não é senão a realização do objeto. Contudo, “o grupo se temporaliza em uma objetivação que o suprime como organização ativa em benefício do resultado como realidade produzida” (SARTRE, 1979, p.125). Para Iasi, a implicação final deste movimento é que a totalização, no interior da qual os agentes produziam a si mesmos mediante a atividade, se totaliza por meio da organização em seu estágio mais elevado e a “livre práxis de converte em processo” (IASI, 2012, p.293). Enquanto a práxis se desdobra a si mesma diante de um campo de possibilidades em direção a um fim, ou seja, é projeto, o processo, por seu turno, é práxis constituída, mediada por instrumentos que se tornaram seus próprios fins, enquanto o fim, antes projeto, se converte em outro em-um-outro-lugar evanescente: virtualiza-se.
Este é o momento em que o grupo se converte em Instituição, sexto momento do processo de totalização. A livre práxis do grupo organizado se cristaliza e é convertida em práxis constituída,

[…] o grupo se institucionaliza, endurece, envelhece; o que era movimento se torna rotina, o que era ação converte-se em procedimentos, o que era poder jurisdicional difuso se tornam instâncias, o que eram laços de solidariedade se torna disciplina, o que era projeto se torna programa. Não se apresenta mais como uma força que, diante da impossibilidade da impossibilidade, se move para a ação, mas constitui, ele próprio, parte de um novo campo prático-inerte que se move pela reprodução da inércia de certas impossibilidades (SARTRE, 1979, p.125).

Para Sartre, a práxis orgânica instituída “se manifesta como inércia insuperável, isto é, como exterioridade explosiva” (SARTRE, 1979, p.223).
Neste ponto ocorre o retorno à serialidade inicial, pois aquilo que era uma atividade em si repleta de significação é substituída por uma função institucional – é a livre práxis transformada em procedimento institucional: uma ação cada vez mais mediada por procedimentos e normas, tempos e ritmos, necessidade de coordenar o esforço de vários indivíduos numa ação disciplinada, ou seja, “cada vez mais assumindo uma racionalidade que conhecemos muito bem desde Weber, cada vez mais impessoal e rotineira, a decrescente importância do carisma e sua substituição pela disciplina racional: a organização burocrática”, sétima situação da totalização. (IASI, 2012, p.295).
Pela lógica dialética-circular de Sartre, a forma institucional do movimento do grupo o leva, no ponto máximo de sua manifestação, à negação do próprio ser do grupo por meio da forma burocrática e esta reconduz de volta à serialidade, pelo processo de negação da negação desta.
Assim, importa visualizar os distintos momentos do processo dialético de totalização por meio dos grupos: a serialidade (coletivo serial), o grupo em fusão, o grupo jurado, a fraternidade-terror, o grupo organizado, a instituição, a organização burocrática e o retorno à serialidade. Para tanto segue uma ilustração:

Figura – Processo dialético de totalização mediado pelos grupos (Sartre e considerações de Iasi)
Fonte: FERRAZ, 2010.

A ilustração apresenta interessante síntese do argumento. Sartre vê o fim do movimento sendo imposto pela negação da negação, ou seja: pelo retorno à serialidade. Encerra-se o ciclo sobre a práxis livre do grupo que é cristalizada em práxis constituída; aquilo que era uma atividade em si repleta de significação é substituída por uma função institucional burocrática – uma ação mediada por procedimentos e normas, tempos e ritmos, necessidade de coordenar o esforço de vários indivíduos numa ação disciplinada.
Neste sentido, Iasi apresenta importantes ressalvas ao raciocínio de Sartre , a que mais interessa ao tema desta tese é o caráter imutável da dialética circular de Sartre em relação ao fim do movimento do grupo. Quando os indivíduos seriais, após constituírem-se como grupo e edificarem a organização burocrática, opera-se o retorno da serialidade, mas não o fechamento de um ciclo, pois para Iasi a dialética do movimento ocorre seguindo um espiral e não de forma circular. Assim, a negação da negação apresenta duas possibilidades do grupo: (1) a cristalização da práxis livre em práxis constituída – a burocratização; (2) o salto em direção à classe pela percepção de que o complexo de contradições no qual estão inseridos vai além do seu autointeresse. A impossibilidade da impossibilidade como fator de transformação não reside num ponto essencial à sobrevivência do grupo (como o que ocorre no movimento do coletivo serial em direção ao grupo); agora a impossibilidade da impossibilidade reside na produção social da existência humana enquanto espécie, permitindo a constituição da consciência como consciência humana e de classe, em si e para si.

Os distintos momentos da totalização dialética dos grupos correspondem a momentos da consciência em seu próprio movimento – a consciência individual do ser social imersa na serialidade. A crise de objetividade é interiorizada na forma desta consciência inicial como senso comum diante das contradições da realidade em movimento. A possibilidade de enxergar no outro esta sua contradição forja uma identidade coletiva que permite ao ser romper sua cápsula de individualidade é ver-se como ser social pela mediação do grupo. Sua ação como grupo pode produzir um salto em sua consciência, podendo levá-lo a um segundo momento e a uma primeira negação do senso comum. Assim, o que se segue depende da natureza do grupo em que as pessoas estão inseridas e da radicalidade da contradição expressada na impossibilidade da impossibilidade, e do tipo de sobrevivência. Pelo movimento dialético, o ser jamais será o que era, porém, transformar-se em algo completamente diferente pressupõe a existência de condições materiais diferentes. O tipo de mudança depende essencialmente da radicalidade das contradições que ensejam as mediações concretas necessárias para assegurar a continuidade da produção da vida. Quando a ameaça é aquela que fere e se confronta com um interesse pontual (como a precariedade nas condições de uma rua, o autoritarismo da direção de um estabelecimento de ensino, as condições das instalações de um hospital), a consciência do grupo corresponderá ao limite do universo da demanda e dos interessados em jogo nessas situações. Apesar de necessários, esses grupos têm duração determinada no tempo, que são dissolvidos, uma vez solucionada a demanda. A consciência dos participantes sofre sutil oscilação durante a ação grupal pontual. Essa poderá ser sensivelmente alterada nas situações onde a mobilização coletiva se sustenta no tempo, como no caso de um coletivo setorial, possibilitando a passagem – grupo fusão, juramento, fraternidade-terror (nos termos de Sartre) – e pode gerar na consciência um incremento mais significativo. O desenvolvimento mais significativo se dá quando grupos estabelecem organizações mais complexas exigidas para enfrentamentos relacionados aos interesses de categorias como a dos estudantes, das mulheres, dos professores, dos trabalhadores de determinado ramo. Esse é o momento privilegiado para a potencial alteração da consciência, a consciência derivada da ação coletiva contra um inimigo em comum, e atinge seu grau máximo quando o inimigo é o próprio sistema, como no caso movimentos com tendências anticapitalistas.
Nesse ponto é que segundo Iasi, a dialética circular de Sartre coloca uma camisa de força, pois além de estar adstrita a inteligibilidade individual presa ao grupo – do ponto de vista abstrato o movimento se resolve na tendência de a organização se institucionalizar e daí dissolver a livre práxis em processo de práxis constituída e o grupo em nova serialidade. Apesar de o desfecho mais provável ser mesmo a burocratização, a dimensão da análise adstrita ao grupo isolado negligencia a teia de interrelações da ação coletiva que pode advir da contradição mais abrangente que ameaça a continuidade da vida em distintos níveis societários. Para Iasi essa particular circunstância “produz uma identidade, ação e correspondente momento da consciência que não podem simplesmente ser reduzidos aos mecanismos do grupo, muito menos derivados de mecanismos individuais. Este seria o salto em direção à classe” (IASI, 2012, p.307). A partir de Iasi, percebe-se que a circularidade dialética de Sartre que leva à organização e à instituição, e desta à burocracia não desaparece, mas assume outra dimensão, um patamar superior em seu ciclo de negação da negação. Talvez a principal diferença esteja nos recursos de poder com os quais o grupo ou a classe enfrentam o campo-prático inerte instituído como real.
Neste sentido, questiona-se: não haveria diferença qualitativa entre um grupo de artesãs impulsionado por necessidades imediatas que decide associar-se para produzir conjuntamente e posteriormente fundar uma associação; ou um grupo de operários oprimidos por uma situação de iminente despedida em massa e em seu caminho acaba constituindo-se num coletivo que controlará uma fábrica de forma autogestionária, passando a lutar pelo direito ao trabalho autodeterminanado e não apenas por mais direitos trabalhistas; ou um grupo de estudantes sem teto que se aproxima de um movimento anarquista e decide ocupar um imóvel ocioso da cidade para habitação, contestando conscientemente a especulação imobiliária e convertendo-o em espaço artístico-cultural livre e aberto à população de seu bairro; e um grupo de produtores agroecológicos que decide construir um restaurante para escoar sua produção e propiciar uma alimentação saudável à classe trabalhadora, difundindo assim seus ideais agroecológicos?

Ainda que pelo movimento abstrato descrito por Sartre os processos possam ser os mesmos (serialidade, fusão, organização, instituição, burocracia e o eventual retorno à serialidade), a natureza e dimensão dos processos nas quatro OTAs pesquisadas são muito distintos, e não apenas em termos quantitativos. O movimento proposto por Sartre parece excelente para identificar o momento da ação grupal com a possibilidade de práxis livre. Mas essa práxis não pode ser classificada como livre a priori e precisa também ser analisada a partir de um contexto mais amplo do sociometabolismo, relacionando a parte com o todo, ou seja: sua incidência em um campo prático-inerte maior. Uma coisa é conseguir negociar com a gerência patronal o aumento do salário dos operários; outra bem diferente é ocupar a fábrica a assumir uma gestão operária da fábrica e discutir entre operários a remuneração justa; e outra ainda mais difícil é superar a relação capital-trabalho como eixo de sociabilidade.
Iasi acrescenta alguns questionamentos centrais para a questão: se é verdade que um grupo em confronto com certa objetividade se coloca em movimento livre e institui uma nova objetividade na qual volta a se estranhar, o que determina este amoldamento? Qual a força ou forças que agem sobre a organização e a transformam em instituição? O que se institui nesse momento que condena os seres sociais ao retorno da serialidade alienada? Por que ao nos organizarmos contra certa ordem acabamos por instituí-la por outros meios? (IASI, 2012). O O autor reage às suas perguntas de forma simples e direta: “A velha realidade permanece ou volta a se instituir pelo simples fato de que não a superamos direito. O novo tem dificuldades em surgir porque não rompemos de fato com o velho e não construímos as novas relações, talvez acreditando que elas, assim como as velhas, seriam naturais” (2012, p.311). As velhas foram feitas e instituídas pela ação da humanidade e as novas precisam ser construídas ao mesmo tempo em que as velhas forem destruídas. E acrescenta:

Quando um grupo rompe com um aspecto do campo prático-inerte e se constitui enquanto práxis livre, pode abrir caminho para instituir o novo, mas, tratando-se de formas sociais mais amplas (mais que amplas, determinantes), o ser do grupo pode se moldar por formas inertes mais abrangentes do que aquelas com as quais se defronta em sua ação particular e acabar por encontrar um novo jeito de ser escravo ou sobreviver na barbárie assalariada. Só pode haver um salto de qualidade quando a impossibilidade que se apresenta diante do grupo é uma impossibilidade geral, ou seja, uma ameaça geral à produção social da existência (p.311).

Isso significa que, neste trajeto de construção das condições para a emancipação humana, a resistência caminha dentro da ordem sociometabólica do capital, e antes de ser contra essa ordem já precisa iniciar seus passos para além desta.
Florestan Fernandes desenhara o quadro da difícil combinação de uma revolução dentro da ordem que desemboca em uma revolução contra a ordem:

A revolução dentro da ordem possui um conteúdo bem distinto do que ela assumiu na órbita histórica dos países capitalistas centrais. As classes burguesas não se propõem as tarefas históricas construtivas, que estão na base das duas revoluções, a nacional e a democrática; e as classes trabalhadoras têm de definir por si próprias o eixo de uma revolução burguesa que a própria burguesia não pode levar até o fundo e até o fim […] Os que repudiam tais tarefas históricas do proletariado por temor do oportunismo e do reformismo ignoram duas coisas. Primeiro, que, sem uma maciça presença das massas destituídas e trabalhadoras na cena histórica, as potencialidades nacionalistas e democráticas da ordem burguesa não se libertam e, portanto, não podem ser mobilizadas na fase em transcurso de organização do proletariado como classe em si. Segundo, que o envolvimento político das classes trabalhadoras e das massas populares no aprofundamento da revolução dentro da ordem possui consequências socializadoras de importância estratégica […] o proletariado cresce com a consciência de que tem que tomar tudo com as próprias mãos e, a médio prazo aprende que deve passar tão depressa quanto possível da condição de fiel da democracia burguesa para a de fator de uma democracia da maioria, isto é, uma democracia popular ou operária […] a noção de revolução tem que ser calibrada pelas classes trabalhadoras em termos de relações antagônicas entre a burguesia e o proletariado dentro do capitalismo da era atual (FERNANDES, 1984, p.13).

A ideia de Florestan induz que a constituição da identidade de classe passa por momentos que vão desde o seu amoldamento à ordem até a sua transformação em classe em si, na construção de uma alternativa para além do capital.
A reflexão realizada por Iasi elaborada a partir de Sartre sobre o processo dialético de totalização mediado pelos grupos provoca importantes reflexões sobre o processo de consciência dos trabalhadores das Organizações de Trabalho Associado. Assim, destaca-se três argumentos que podem servir de síntese para o tratamento dos dados obtidos pelo trabalho de campo.
(a) A constituição de cada OTA como processo dialético de totalização mediado pelo grupo implica considerar o trabalho associado como um arranjo político-econômico sensivelmente contraditório e com importantes limitações estruturais sob o sociometabolismo do capital que ocasionam a existência de rupturas e continuidades no interior das organizações;
(b) Ainda que pelo movimento abstrato descrito por Sartre os processos possam ser os mesmos (serialidade, fusão, organização, instituição, burocracia e o eventual retorno à serialidade), a natureza e dimensão dos processos concretos nas quatro OTAs pesquisadas são muito distintos. Assim é possível identificar elementos autogestionários internos e ampliados que favorecem e que impedem a manifestação da livre práxis;
Na medida em que os próprios mecanismos da organização se instituem, se fixam e se perpetuam, o grupo-organização deixa de ser o meio para a livre práxis dos seres humanos e passa a cristalizar-se em práxis constituída com vistas a institucionalização dos procedimentos burocratizados que obedecem às suas próprias leis de organização, restabelecendo assim a serialidade. O processo autogestionário pode sob algumas condições desempenhar importante papel quando limita livremente a liberdade, na direção do projeto coletivo e pode estimular a criação e a renovação de embriões da livre práxis (no sentido do salto em direção à classe, apontado por Iasi). Apenas algumas OTAs apresentam elementos indicadores do salto em direção à classe. Estes ocorrem principalmente em OTAs que mantém relação orgânica com movimentos e organizações populares, incorporando interesses de classe aos objetivos econômico-corporativos das OTAs.

Conclusões

Na sociedade sob domínio do Capital, enquanto seu sociometabolismo alcança todas as esferas da vida, não é possível alcançar uma nova consciência, a não ser de forma embrionária. Os trabalhadores são, no máximo, indivíduos inseridos nesta sociedade e dispostos a destruí-la. Uma nova consciência não se desenvolve sem uma nova ordem de relações sociais. Não se pretende com isso afirmar que a transformação material da atual sociedade só ocorrerá quando as novas consciências estiverem aptas a fazer a transformação material, e que após isso, ela ocorrerá automaticamente. Ainda que preservada certas determinações materiais, as esferas objetivas e subjetivas combinam-se, assim que a luta de ideias e a capacidade de uma classe demonstrar suas concepções e valores de forma estratégica, preparam o terreno para transformações, até revolucionárias.
Compreender a consciência como um processo permite reconhecer que esta não é estática ou que se desenvolve de forma linear; é formada a partir da relação dialética existente entre as representações ideais dos indivíduos e as suas relações concretas. Os resultados apontaram como ocorrem os processos de consciência no interior das OTAs. Assim, as experimentações autogestionárias podem, sob algumas condições, engendrar mediações propícias para o desenvolvimento de práticas democratizantes no processo de trabalho, com a eventual socialização dos avanços obtidos no interior das unidades produtivas. No entanto, as rupturas não eliminam as continuidades com a lógica heterogestionária do trabalho: o horizonte da emancipação dos trabalhadores não está totalmente assegurado. Por outro lado, as continuidades não aniquilam as rupturas. Para tanto, as condições e mediações relacionadas às rupturas e continuidades precisam ser criticamente apuradas. Alguns componentes institucionais das OTAs evidenciam um posicionamento politicamente engajado, favorecendo o despertar de uma nova consciência nos trabalhadores (consciência para si ou de classe). Algumas OTAs sustentam suas experiências em bases favoráveis a outra forma de perceber o mundo e de interagir neste. Alguns componentes institucionais das OTAs evidenciam um posicionamento politicamente engajado, favorecendo o despertar de uma nova consciência, especialmente, em OTAs que sustentam suas experiências em bases favoráveis a outra forma de perceber o mundo e de interagir neste. Os indicadores comportamentais evidenciam que a solidariedade de classe está presente no imaginário dos trabalhadores destas OTAs, inclusive numa perspectiva internacionalista. A consciência e a solidariedade dos trabalhadores se confirmam na prática concreta de algumas OTAs, que apresentam perspectivas de confluência dos seus objetivos corporativos com bandeiras de lutas políticas mais amplas e com a socialização dos avanços obtidos no interior da sua organização, especialmente pela integração sociopolítica das unidades produtivas à comunidade nas quais estão inseridas. É a livre práxis estabelecida na autogestão ampliada: da resistência e reivindicação na produção à contestação social do capital.

Numa segunda tipologia de OTAs, a cooperação, a autonomia, a disciplina e a participação também se encontram em níveis avançados. OTAs deste tipo são organizações consolidadas que já superaram momentos muito difíceis. Nestas existe uma interessante sintonia entre os trabalhadores e o trabalho coletivo flui. No entanto, a estabilidade no processo de trabalho e a boa situação financeira podem levar OTAs que se encaixam nesta tipologia a uma condição de estagnação: esta situação pode ser perigosa e precisa ser contornada. Algumas vezes os canais de comunicação e participação perdem funcionalidade porque tudo vai bem e não há mais o que discutir. São OTAs que apresentam um histórico de intenso engajamento político com práticas formativas diversas, mas com o passar dos anos passaram a priorizar tarefas de gestão do empreendimento e demandas econômico-corporativos, desatentando para as práticas formativas dos seus trabalhadores e o seu relacionamento com a comunidade local. Para Sartre, é a livre práxis do grupo organizado cristalizada em práxis constituída: quando o grupo se endurece e o que era movimento se torna rotina, o que era ação converte-se em procedimentos (1979). As OTAs com este perfil tendem a estimular um comportamento do tipo autogestionário/autonomista, como equivalente, na tipologia de Iasi (2012), à segunda forma de consciência – a consciência em si. A resistência na produção é o traço marcante destas OTAs.

Os resultados relacionados aos aspectos sociopolíticos da pesquisa (obtidos a partir de 83 perguntas dirigidas aos trabalhadores) demonstraram que alguns trabalhadores ainda têm um conhecimento muito superficial de assuntos relevantes à classe trabalhadora. Esses resultados são um tanto alarmantes e podem evidenciar uma terceira tipologia de OTA, com predominância de trabalhadores com comportamentos típicos da primeira forma de consciência, como a ultrageneralização e a reprodução de perspectivas conservadoras. O fragilizado entendimento dos aspectos políticos e sociais mais relevantes, somado à falta de compreensão mínima sobre o que venha a ser a autogestão, mesmo no sentido de autonomia ou de autodeterminação, revela a fragilidade dos componentes institucionais de algumas OTAs e põe em dúvida as perspectivas emancipatórias destas na constituição dos sujeitos envolvidos. Mesmo existindo diferentes maneiras de cooperar, participar e protagonizar no interior das OTAs; são duvidosas as potencialidades emancipatórias das OTAs com este perfil. O fortalecimento da sua organicidade é tarefa urgente e necessária. Alguns trabalhadores apresentaram dificuldades em compreender que o seu trabalho está inserido num contexto mais amplo do sociometabolismo do capital ou de forma mais simplificada, que os acontecimentos no interior da OTA também são influenciados pelo movimento de outros atores importantes como o Estado e o Mercado.
O distanciamento ocorrido nas últimas décadas entre os movimentos populares e o campo do Trabalho Associado no Brasil, ocasionou um afastamento das OTAs do campo do enfrentamento político. Neste sentido, a pesquisa revelou que a relação entre as OTAs pesquisadas e os movimentos-referência ocorre de várias maneiras: desde uma forma mais orgânica e integrada (primeira tipologia), ou como uma mera referência (segunda e terceira tipologia) – quando os movimentos populares são mencionados no sentido de representarem um horizonte abstrato ou uma bandeira de luta idealizada.
Quando os entrevistados foram consultados sobre o seu percurso militante, constatou-se que em cada OTA havia no mínimo um/a trabalhador/a com percurso militante resultante de experiências anteriores ao trabalho associado na OTA e que ingressaram nesta em razão da militância política. No entanto, um interessante elemento diferencia as OTAs n° 1 e n° 2 das demais. Nas OTAS 1 e 2 constatou-se percurso militante em mais de um trabalhador, e que se efetivou após o ingresso do trabalhador na OTA. Ou seja: é possível que as mediações políticas nestas OTAs tenham sido capazes de despertar a consciência dos seus trabalhadores e provocar a superação da primeira e por que não dizer, da segunda forma de consciência; inserindo-os organicamente em alguma luta mais ampla, para além da atividade na unidade produtiva. O mesmo não ocorreu nas OTAs da tipologia 2 e 3, nas quais os únicos militantes existentes tinham percurso militante constituído anteriormente ao ingresso na OTA e declararam estar afastados das atividades nos movimentos há um bom tempo.

Conclui-se que o indicador institucional “participação institucional da OTA em movimentos populares ou organizações sociais” e “participação destes na OTA” combinado com qualificados índices de “repartição do poder” tornam-se variáveis determinantes num duplo sentido: (1) como mediação necessária para o surgimento de embriões da nova consciência dos trabalhadores; (2) como vetor indispensável para a superação dos objetivos econômico-corporativos das OTAs.
As evidências do campo sugerem que a incorporação das OTAs às lutas políticas mais amplas (reivindicação e contestação) a partir da relação orgânica com movimentos e organizações populares torna-se um indispensável caminho para a possibilidade de superação dos objetivos unicamente corporativos das OTAs; elevando-as à condição de sujeito político capaz de incidir na correlação de forças com eventuais possibilidades de disputa pela implantação de seu projeto político.

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CASO TAQUARI: A QUESTÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS COM FINS DE TRABALHO ESCRAVO EM SERGIPE

TAQUARI CASE: THE ISSUE OF TRAFFICKING IN PERSONS FOR PURPOSES OF SLAVE LABOR IN SERGIPE

Nataly Mendonça dos Santos
Stefany Caroline Santos

Resumo: A fazenda Taquari, grande produtora de cana de açúcar em Sergipe, foi protagonista da primeira condenação por trabalho escravo no estado. A partir de uma denúncia, que ocasionou em uma inspeção nos alojamentos da empresa, foram encontrados 44 trabalhadores alagoanos em condições subumanas. Diante disso, foi indagado, a partir de reflexões coletivas, se haviam elementos que caracterizassem a ocorrência de tráfico de pessoas no caso em questão. Através da análise da legislação nacional e internacional, dos autos processuais do caso da fazenda Taquari e reflexões teóricas, foi possível analisar e aprofundar os conceitos de tráfico de pessoas, trabalho escravo contemporâneo, aplica-los ao acontecimento relatado e chegar a uma conclusão satisfatória.

Palavras chave: Tráfico de pessoas, Trabalho Escravo, cana-de-açúcar, Sergipe, exploração, capitalismo

Abstract: The Taquari farm, a major producer of sugar cane in Sergipe, was the protagonist of the first conviction for slave labor in the state. Based on a complaint, which resulted in an inspection of the company’s accommodation, 44 Alagoas workers were found in subhuman conditions. Faced with this, it was asked, from collective reflections, if there were elements that characterized the occurrence of trafficking in persons in the case in question. Through the analysis of national and international legislation, the procedural records of the case of Taquari farm and theoretical reflections, it was possible to analyze and deepen the concepts of human trafficking, contemporary slave labor, apply them to the event reported and reach a satisfactory conclusion.

Keywords: Trafficking in persons, Slave Work, sugarcane, Sergipe, exploitation, capitalism

1. Introdução

O tráfico de pessoas, conceituado no Protocolo de Palermo, é previsto pela legislação brasileira, no artigo 149-A do código penal com as seguintes finalidades: remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo; submissão a trabalho em condições análogas à de escravo; adoção ilegal; exploração sexual. Esta prática continua tão presente no Brasil e no mundo quanto esteve nos séculos passados e, apesar da menor evidência, se mantém com a mesma carga de violação aos direitos humanos.

Este texto discorrerá especificamente sobre o tráfico com a finalidade de trabalho escravo contemporâneo. A temática foi suscitada a partir da reflexão coletiva do grupo de pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo (GETEC), da Universidade Federal de Sergipe, o que possibilitou a descoberta do caso da Fazenda e Usina Taquari, protagonista da primeira condenação por trabalho escravo contemporâneo no estado de Sergipe, na Justiça do Trabalho. Atualmente, o processo está em grau de recurso.

Na empresa em questão, foram resgatados, pelo Ministério Público do Trabalho em Sergipe (MPT-SE), em parceria com a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, 44 trabalhadores em condições sub-humanas trabalhando no corte da cana-de-açúcar nos municípios de Capela e Neópolis (SE).

Nesse sentido, este artigo tem por objetivo principal analisar o caso da Fazenda e Usina Taquari, identificando se houve tráfico de pessoas com fins de trabalho escravo. Para isso, é preciso explorar os conceitos de trabalho escravo contemporâneo e de tráfico de pessoas, a fim de analisar a relação entre eles e compreender se realmente o tráfico de pessoas de apresenta no caso e de que maneira ele se desenvolveu na Fazenda e Usina Taquari.
Como metodologia, em sentido amplo, partiu-se da análise das categorias do materialismo histórico dialético, que tem como pressuposto a ideia de que toda transformação social é embasada na História e o seu desenvolvimento a se dá através da luta de classes.

Em sentido estrito, foi utilizado o método de pesquisa bibliográfica para o aprofundamento conceitual. Também foram analisados documentos da legislação nacional e internacional. Por fim os dos autos da Ação Civil Pública que envolveu a Fazenda de Cana de Açúcar Taquari e a Usina Agro Industrial Capela foram examinados como principal fonte de pesquisa, juntamente com a pesquisa que contém observação participante sobre o processo.
O presente artigo é proveitoso para o mapeamento desse tipo de ocorrência, principalmente no estado de Sergipe, ao pretende-se romper com a invisibilidade a que estão submetidos esses casos, ambicionando que, com a divulgação desta ocorrência, sejam estimuladas novas denúncias de casos semelhantes. Visando um caso como o da Fazenda e Usina Taquari como exemplo, há o propósito de intensificar o combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo, que ainda é muito presente no país e em Sergipe, observando também que neste último há pouquíssimas ações de combate.

2. O que é tráfico de pessoas, afinal?

2.1 Histórico

Historicamente, o Brasil e vários outros países da América receberam, de forma intensa, escravos africanos por cerca de quatro séculos. No auge da escravatura e num país predominantemente agrário, era vantajoso ter um bom número de escravos. A maioria deles era fruto de tráfico humano, considerado aceitável pois se tratavam de negros tidos como sem alma.

No nosso país, a partir da abolição da escravatura, houve a impressão inicial de que o problema estaria resolvido. Todavia, a forma que este rompimento se deu, ocorreu de forma desestruturada, o que deixou os recém-libertos expostos à margem social em uma situação de vulnerabilidade. Posteriormente, estes indivíduos foram forçados pela sobrevivência a trabalharem em meio a condições, mais uma vez, degradantes.

O tráfico de pessoas, do ponto de vista do senso comum, está relacionado, primeiramente a este contexto histórico. Posteriormente, esta temática foi reduzida à ideia de que o tráfico de pessoas, atualmente, existe apenas para fins de exploração sexual, o qual se tornou de conhecimento geral através da mídia. Esta visão é muito restrita, uma vez que o fenômeno envolve muitas variantes, a exemplo, também, para fins de venda de órgãos e adoções ilegais.

Um longo caminho foi percorrido, tanto no plano internacional quanto brasileiro, desde a assinatura do Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, em 1904, até a incorporação do Protocolo de Palermo pelo Brasil, 100 anos depois. Nesta trajetória, podem ser observadas duas características: primeiro, uma intrínseca vinculação do tema com a questão criminal e, segundo, o enfoque quase que exclusivo na exploração sexual. (Nogueira; Novaes; Bignami; Plassat. 2014. p. 8)

Na atualidade, a problemática do tráfico de pessoas continua presente no Brasil e no mundo; não explicitamente como nos séculos passados, mas com a mesma carga de violação aos direitos humanos. Esta prática está intimamente ligada ao Trabalho Escravo Contemporâneo, havendo, inclusive, uma considerável inter-relação entre o conceito de ambos.

2.2 Conceito

O Protocolo de Palermo, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2003, definiu como tráfico de pessoas O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. (BRASIL, DEL 5.017)

Ademais, o artigo Art. 149-A do Código Penal Brasileiro também define, de forma bastante similar, o tráfico de pessoas:

Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III – submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual. (BRASIL. DEL 2.848/1940, Art 149-A)

Por sua vez, o Trabalho Escravo Contemporâneo, tendo suas quatro situações de definidas no caput art. 149 do Código Penal Brasileiro, rege que este se caracteriza a

Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.” (BRASIL. DEL 2.848/1940, Art 149)

Nota-se que estes conceitos caracterizam situações que, em vários pontos são similares, especialmente no que tange a restrição de locomoção. Assim, todos as definições aqui tratadas não devem ser vistas de forma desconexa, tendo em vista a inter-relação que entre eles coexistem.
Um ponto importante destas definições e que auxilia na compreensão de como ocorre o tráfico de pessoas na atualidade é a questão da vulnerabilidade. Na maioria dos casos em que se detecta a presença de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo, o indivíduo, tecnicamente tem autonomia para se locomover. Não se trata da liberdade de ir e vir.

O fenômeno atual é diferente do tráfico humano em tempos coloniais, no qual haviam grilhões e vigilância armada. Todavia, deve-se levar em conta as diversas vulnerabilidades em que ali se passam: geograficamente, pelo indivíduo estar longe de seu local de origem; financeiramente, pois os salários geralmente são ínfimos; e pela própria situação de exploração. Assim, o sujeito se vê preso em uma situação sem alternativas plausíveis para seguir.

Para fins conceituais, Medeiros afirma (2013, p. 14) que a vulnerabilidade está associada à violação de direitos humanos, ‘em especial de direitos econômicos, sociais e culturais’ e destaca, dentre os fatores contributivos, ‘insegurança econômica e social; desigualdades e discriminação contra as mulheres e negros; desemprego, serviços de saúde e de educação precários, péssimas condições de moradia e alimentação, migrações, entre outros’. (Medeiros, 2013, p. 14 apud Barreiros Junior, 2017, p. 120)

Outro tópico interessante, que une as duas problemáticas, é a questão da migração. No Brasil atual, é bastante comum a migração interna definitiva ou temporária, especialmente de nordestinos para regiões latifundiárias, tendo destaque a região Norte e Centro-Oeste do país. Há também inúmeros casos na Construção Civil e na Indústria Têxtil, tendo destaque o estado de São Paulo. “Constitui-se um apelo forte para a migração temporária ou definitiva de trabalhadores empobrecidos do nordeste e do norte do país, devidamente aliciados por mirabolantes promessas.” (Nogueira; Novaes; Bignami; Plassat. 2014. p. 8)

Estes trabalhadores, geralmente aliciados por intermediários (os “gatos”), são movidos por falsas promessas de uma melhoria de vida a partir de um salário melhor. No entanto, não é incomum a ocorrência de casos de péssimas condições de trabalho, jornadas intensas e até mesmo morte por exaustão.
Esta situação descrita é a mais corriqueira dentre os casos de tráfico humano. Não há, pois, muitas ocorrências de um tráfico forçoso em que a vítima foi sequestrada ou algo similar. Nota-se que esta situação se enquadra com a definição de tráfico de pessoas presente no Protocolo de Palermo, além de se identificar como fato típico descrito no art. 149 do CPB.

3. Trabalho Escravo Contemporâneo

O trabalho escravo é uma prática bem presente em praticamente todos os momentos da história da humanidade, sofrendo inclusive alterações ao longo do tempo, que seguiam e, de certa forma, se adequaram às mudanças na sociedade moderna e contemporânea, tais como a evolução de direitos, a globalização, o desenvolvimento da comunicação, dentre outras. Com essas modificações, o trabalho escravo persiste até os dias atuais, com algumas especificidades dos tempos hodiernos.
Adotaremos neste artigo a denominação “trabalho escravo contemporâneo” ou “TEC”, sua abreviatura, para nos referir à prática que ocorre nos tempos mais recentes que, como será explicitado, se desenvolve de maneira diferente do trabalho escravo tradicional, o qual chamaremos aqui de “trabalho escravo moderno”.

Uma das primeiras regulamentações de combate ao trabalho escravo (muito importante, inclusive, para a compreensão do TEC) é a Convenção Sobre a Escravatura, criada pela Liga das Nações, em 1926. Definindo a escravidão como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”, esta convenção já começa a delinear e esclarecer o trabalho escravo contemporâneo, dando um conceito abrangente, relacionando-o à ideia de dignidade, que é algo também adotado e protegido como princípio fundamental pelo ordenamento jurídico brasileiro, presente no artigo 1º da Carta Magna.
Em 1930 o TEC entra novamente em regulamentação pela Convenção 29 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta convenção, que orientou por décadas o conceito de Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil, visto que o Código Penal do país era bem impreciso, e até hoje influencia profundamente as decisões dos magistrados brasileiros. A convenção utiliza o termo “trabalho forçado”, que é proibido, com exceção de casos extremamente excepcionais com propósitos públicos.

Considerado como todo o trabalho submetido a qualquer sanção ou coação e que a pessoa não tenha se oferecido espontaneamente, o emprego de somente o trabalho forçado como conceito de TEC inflama a questão sobre se o consentimento da vítima descaracteriza o trabalho escravo e sobre liberdade de locomoção.
Apesar de importante para a limitação da exploração humana, a convenção tolhe a discussão sobre TEC. É bem presente na convenção 29 a ligação direta entre o trabalho escravo e a liberdade de locomoção, o que acreditamos que seria até bem colocado se fosse referente a trabalho escravo moderno, mas, como se trata de trabalho escravo contemporâneo, a convenção prejudica bastante o debate, involuindo-o, se comparado à convenção da Liga das Nações. O trabalho escravo na contemporaneidade não diz mais respeito somente a falta de possibilidade de locomoção, mas sim à grave ofensa a dignidade do trabalhador, a liberdade não somente de ir e vir, mas de pensamento, de decisão, dentre outras maneiras em que a liberdade se manifesta.
Algumas décadas depois, em 2003, o Código Penal Brasileiro (CPB) é reformulado e esclarece, na nova redação do artigo 149, o crime de redução a condições análogas a de escravo, que seria exatamente o que chamamos aqui de trabalho escravo contemporâneo. A partir da mudança, o delito é caracterizado em quatro situações essenciais: trabalhos forçados; jornada exaustiva; restrição, por qualquer meio, da locomoção em razão de dívida contraída pelo empregado e condições degradantes de trabalho.
O artigo também define formas equiparadas: cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, vigilância ostensiva ou retenção de documentos ou objetos de uso pessoal do(a) trabalhador(a), sempre com o fim de reter o(a) trabalhador(a) no local de trabalho. De acordo com as situações delineadas no CPB há alguns aspectos que caracterizam o delito.
O primeiro aspecto dado é que deve haver uma relação de trabalho entre os envolvidos, com graves ofensas aos direitos; outros aspectos dados são os bens jurídicos tutelados, que não é somente a liberdade de locomoção, mas também a dignidade, que é gravemente lesada quando há uma sujeição quase que completa do trabalhador ao empregador.

Das quatro situações principais o trabalho forçado é a mais reconhecida de todas, sendo por décadas o que norteou o conceito de TEC. Nesta situação, seguindo a definição da convenção 29 da OIT, deve ser analisada a vontade do(a) trabalhador(a) de se submeter ao trabalho, mas defendemos aqui que que o conceito é mais amplo, abrangendo a obrigatoriedade do trabalho decorrente da anulação da vontade do trabalhador(a) por circunstâncias quaisquer, seguindo o conceito dado por Brito Filho (2011, p. 245) (Apud ANDRADE, 2015, p. 835).
Destarte, o trabalho forçado é relacionado a liberdade de escolha, não a limitando ao arbítrio do trabalhador, mas ampliando-a, quando introduz o debate sobre a anulação da consciência do trabalhador, o que é bem razoável, dado que o TEC existente nas fazendas brasileiras atualmente se manifesta de forma muito mais sutil do que através da limitação da locomoção do(a) trabalhador(a).

O trabalho escravo por dívidas também não é uma novidade no Brasil. Tendo sido uma modalidade muito adotada no passado no norte do país e abandonada por conta da grande quantidade de denúncias, o TEC por dívidas consiste na submissão do empregado a uma dívida com o empregador, que diminui o poder de decisão do ser humano que está subordinado a essa relação de trabalho.

Outra modalidade determinada no artigo 149 é a de jornada exaustiva, definida por Brito Filho (2010, p. 70) como aquela além dos limites legais extraordinários, que pode prejudicar a saúde física e mental do(a) trabalhador(a) e que ocorre de forma forçada ou em que se anule a vontade do(a) trabalhador(a) (ANDRADE, 2015, p. 835), a jornada exaustiva já é uma das modalidades questionadas do TEC.
De todas as quatro situações, a mais difícil de conceituar e, portanto, mais questionada, é a de trabalho degradante. Com uma definição menos objetiva, esta categoria de TEC é bem pouco compreendida por uma grande parte da sociedade. Muitos questionam se tal modalidade realmente caracteriza trabalho escravo, por haver relação direta somente com a dignidade, sendo que há até uma parte do Poder Judiciário que enjeita essa situação como tipo de TEC, acreditando que ele não dispõe sobre dignidade, mas apenas a liberdade de locomoção.

O trabalho degradante, sendo uma modalidade que desrespeita não necessariamente a liberdade de locomoção, mas sim a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental, incita um debate sobre a liberdade de forma mais ampla, não somente de poder se locomover, mas liberdade de pensamento e de decisão, que certamente são tolhidas quando não há nem mesmo mínimas condições de sobrevivência. Há casos que se encaixam nessa modalidade em que trabalhadores são tratados de maneira pior a que tratam animais, em que não são oferecidas nem mesmo água tratada e comida de qualidade, como poderia o trabalhador(a) manter suas liberdades sem serem ofendidas se não há o mínimo respeito à sua dignidade?
Há também no artigo as modalidades equiparadas, que se encaixam na limitação da liberdade de locomoção ou no trabalho forçado, que são o cerceio do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho e a vigilância ostensiva no local de trabalho ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o mesmo fim.
O artigo 149 esteve presente como tema de acalorados debates no país nos últimos anos. Recentemente houve um debate de reforma do Código Penal Brasileiro, que tem a parte especial um tanto defasada. Nesse projeto há várias propostas em discussão, e uma delas é a mudança do artigo em pauta, sendo acatadas emendas que modificam a redação, inclusive, com a exclusão das categorias de jornada exaustiva e trabalho degradante.

O artigo 149 esteve no centro de acalorados debates no país nos últimos anos e, com a discussão de uma reforma no Código Penal Brasileiro (que tem a parte especial um tanto defasada), há a proposta de uma mudança na redação do artigo em pauta, com a exclusão das categorias de jornada exaustiva e trabalho degradante.

Os defensores dessa proposta afirmam que os conceitos de jornada exaustiva e trabalho degradante são conceitos obscuros e que não se aplicam ao TEC, demonstrando a disputa política em torno da medida, visto que a maior parte do TEC existente no Brasil se encaixam nessas duas modalidades e considerando também a emenda constitucional nº 81, que determina que terras onde for localizada exploração de trabalho sejam expropriadas e destinada à reforma agrária e a habitação social.
É nítido o interesse da classe proprietária de terra na aprovação dessa nova redação, já que se estima que em diversas fazendas brasileiras haja trabalho escravo, sobretudo nessas duas modalidades. A posição deste grupo é representada e defendida também no poder judiciário, visto que vários magistrados têm preterido as duas modalidades em pauta nas suas decisões e admitindo como Trabalho Escravo somente as práticas que se encaixam na descrição da Convenção 29 da OIT, preterindo a legislação nacional que determina um conceito mais amplo, que inclui as duas categorias.

Analisando profundamente a prática do trabalho escravo, é notável também que se trata de uma expressão explícita do sistema de classes, próprio do modo de produção capitalista, que tem na exploração do trabalho uma base que sustenta toda a estrutura econômica, que tem como característica também a propriedade privada dos meios de produção. Através da precarização extrema do trabalho explorado e de subterfúgios já descritos neste artigo, a classe dos proprietários de terra (classe dominante) exerce uma intensa dominação sobre os trabalhadores, de forma tal que chega a atingir a dignidade do(a) trabalhador(a) enquanto ser humano.

4. O Caso Taquari

O estado de Sergipe é o único que não possui registro de existência ou condenação por Trabalho Escravo Contemporâneo no país, segundo dados do Ministério do Trabalho (MT). Em setembro e outubro de 2014, uma ação promovida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), com apoio da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Federal encontrou e libertou 44 trabalhadores em situação de escravidão na Fazenda Taquari. Mesmo após a condenação, os dados MT continuaram apontando o estado como o único sem trabalho escravo.
A Fazenda de Cana Taquari e Agro Industrial Capela é uma grande empresa sergipana produtora de cana e de seus derivados. Localizada na cidade de Capela-SE, emprega uma quantidade significante de trabalhadores das regiões circunvizinhas e de outros estados.

De acordo com os autos processuais, após a denúncia da Federação de Trabalhadores Rurais de Alagoas – FETAG feita ao Ministério Público do Trabalho, foi realizada por este uma inspeção nos alojamentos da fazenda. O que era descoberto não foi agradável: 44 trabalhadores estavam alojados em casebres superlotados, sem a mínima condição de higiene; a comida tinha pouca qualidade, faltava de saneamento básico, a água era suja, faltavam EPI’s (Equipamentos de Proteção Individual) e os transportes eram precários.

A partir disso, foi instaurada uma ação civil pública contra a empresa que, além de não assegurar condições mínimas de trabalho, foi acusada de trabalhadores aliciados no interior de outros Estados, notadamente Alagoas e Pernambuco, utilizando expedientes fraudulentos e sem assegurar o retorno ao local de origem; compelindo os empregados, dessa maneira, a se sujeitarem às condições de trabalho por si impostas, as quais teriam se revelado degradantes.
A denúncia consistia na alegação de que trabalhadores rurais alagoanos tinham sido recrutados para trabalharem para a empresa Taquari e, ao chegarem em Sergipe, foram colocados em alojamentos sem condições mínimas de habitabilidade. Ao verem a situação, o grupo se recusou a trabalhar nessas condições e por este motivo foram dispensados sem receber os dias trabalhados e a empresa ré também não se prontificou a providenciar transporte ou custeio de despesas para o retorno.

Aqui se encontram duas vulnerabilidades: primeiro, financeira, pois sequer receberam seus salários por dias trabalhados; segundo, geográfica, uma vez que estavam longe de seu local de origem. Nota-se nos autos processuais que as vítimas não tiveram o cerceamento de liberdade, não estavam literalmente presos na fazenda, todavia, estavam extremamente vulneráveis. Fica claro a presença de diversos elementos contidos nas definições de tráfico humano aqui citadas: a questão do aliciamento, do transporte para outra localidade, e a própria vulnerabilidade.
Os trabalhadores foram transportados irregularmente em ônibus de propriedade do aliciador do caso em questão de madrugada, para fugir da fiscalização da Polícia Rodoviária Federal. O “gato” havia recrutado pessoas de pelo menos cinco cidades alagoanas. Os trabalhadores foram trazidos de Alagoas de forma irregular, sem a emissão da CDTT (Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores), documento obrigatório para este tipo de transporte.

As condições de labor a que estavam submetidos os trabalhadores rurais migrantes eram explicitamente degradantes. Os alojamentos não possuíam a mínima condição de saúde, segurança, higiene, tampouco de habitabilidade; as carteiras de trabalho dos alagoanos estavam retidas e não anotadas; na frente de trabalho não haviam equipamentos de proteção individual – EPI, não foram disponibilizadas garrafas térmicas ou qualquer recipiente adequado para armazenamento de água fresca e potável para consumo, não haviam marmitas térmicas para conservação do almoço levado para as frentes de trabalho no início da jornada diária de trabalho, fato que ocasionava o azedamento das refeições, não haviam local para abrigarem-se por ocasião das refeições e sem que a empresa disponibilizasse instalações sanitárias.

Nas casas não havia móveis ou utensílios domésticos. Apenas havia colchões sujos e rasgados espalhados pelo chão e um amontoado de sacolas de viagens empilhadas umas sobre as outras para que sobrasse algum espaço, ainda que ínfimo, para a colocação de colchões e circulação.
Os procuradores do Trabalho fizeram inspeções nos quatro alojamentos e nas frentes de trabalho, além de terem colhido depoimentos de trabalhadores e do aliciador responsável pelo recrutamento destes e produzirem vídeos e fotografias desses alojamentos e das frentes de trabalho.
Aos trabalhadores não foram fornecidas cama ou roupas de cama, a maioria dormindo diretamente em colchões e colchonetes sujos e espalhados pelo chão. As instalações também não dispunham de armários para a guarda de pertences e roupas pessoais, tampouco de alimentos, que ficavam estavam expostos diretamente no chão, sem higiene, sujeitos à ação de insetos e animais roedores. Não havia fogão, geladeira, mesa, banco ou cadeira.

A alimentação era precária, produzida no próprio alojamento e em fogões improvisados, não havendo local apropriado para guarda e conservação de alimentos, lavagem das roupas de trabalho, etc. Não era fornecida água potável aos trabalhadores, que utilizavam água amarelada, visivelmente imprópria para o consumo humano e proveniente de uma cacimba existente em uma propriedade ao lado do alojamento em que foram encontrados.
Todos estes elementos claramente caracterizam condições degradantes de trabalho, previstas no artigo 149 do Código Penal como uma das categorias de Trabalho Escravo Contemporâneo, violando profundamente dignidade humana, princípio norteador do direito.

Outro ponto importante é a questão da jornada exaustiva, também tipificado no art. 149 CP. O trabalho no corte de cana é naturalmente insalubre, pois acarreta necessariamente à exposição ao calor, à riscos laborais e de saúde, além de demandar um esforço físico acima dos limites humanos, para que se possa adquirir um mínimo de dinheiro necessário para a sobrevivência.
Isto foi evidenciado ao examinar o caso em questão e pode ser enquadrado como jornada exaustiva, pois a empresa não mediu nenhum esforço de proteção a esses riscos ou tomou qualquer medida que amenizasse a insalubridade, uma vez que não dispuseram de nenhum equipamento de proteção individual, tampouco coletivo. Por exemplo, nas frentes de serviço, constatou-se que quase todos os trabalhadores estavam trabalhando de sandália, calçados danificados e adquiridos por eles próprios, ou até mesmo descalços, e sem qualquer equipamento de proteção individual.

A acusação apresentou como provas diversas fotos dos alojamentos, as quais evidenciavam com clareza as condições degradantes que ali eram encontradas; documentos, dentre eles recibos, cadastros dos empregados, contratos e afins; além de depoimentos.
Em contrapartida, a defesa alegou que as provas apresentadas pela acusação não tinham caráter inequívoco, portanto, não havia possibilidade de conceder a tutela antecipada que antes foi requerida pela acusação. Ademais, afirmaram jamais descumpriram quaisquer dos preceitos invocados pelo, que os fatos eram inverídicos portanto de fatos inverídicos, pois não a empresa não teria descumprido normas trabalhistas, tampouco recrutado e alojado trabalhadores rurais alagoanos, e que esses teriam sido colocados em alojamentos sem condições mínimas de habitabilidade.

A versão da empresa, de acordo com a contestação apresentada, era de que os trabalhadores vinham de Alagoas e Pernambuco em busca de emprego nas fazendas da reclamada e providenciaram transportes por eles próprios. Afirmaram, também, que não há qualquer promessa de emprego ou recrutamento desses trabalhadores em seus estados de origem. No entanto, os documentos apresentados pela acusação desbancavam todas estas afirmações.
Com todos esses dados apontados percebemos a prática do tráfico de pessoas, de acordo com o Protocolo de Palermo e o Código Penal Brasileiro, visto que os trabalhadores foram aliciados, agenciados, recrutados e transportados mediante engano, sem o devido esclarecimento das condições de trabalho e de alojamento e sem garantias de proteção à integridade física e psíquica dos trabalhadores; além da exposição dos trabalhadores à situação de vulnerabilidade quando eles se recusaram a se submeter àquelas condições de trabalho, dispensando-os sem pagar os dias trabalhados e sem providenciar transporte para o retorno dos trabalhadores às suas casas.
Combinando essas condições com as que caracterizaram trabalho escravo no trabalho na usina (jornada exaustiva e trabalho degradante) fica nítido que o caso pode também se encaixar na hipótese disposta no inciso II do Artigo 149-A do CPB, além do artigo 149, que já consta no processo.

Por fim, em 25 de novembro de 2016 foi divulgada a sentença pelo MPT, de que as empresas foram condenadas por danos morais coletivos na quantia de R$ 500 mil, a serem destinados ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Também foram obrigadas a pagar R$ 440 mil aos 44 trabalhadores flagrados em trabalho escravo, cada um recebendo a quantia de R$ 7.360,00 por danos morais individuais.

Outras obrigações também foram impostas às empresas, como proibição de recrutar e transportar trabalhadores vindos outras localidades sem emissão dos documentos obrigatórios e da prévia assinatura da Carteiras de Trabalho.
Além disso, a sentença determinou a inclusão da Fazenda e Usina Taquari no cadastro de empresas flagradas em situação de trabalho escravo, a “lista suja” do trabalho escravo. Por fim, vale ressaltar que, atualmente, o processo se encontra em grau recursal.

5. Conclusões

A partir da análise dos dados do caso que envolve a Fazenda e Usina Taquari fica evidente a presença de trabalho escravo de maneira intrinsecamente ligada ao tráfico de pessoas, violando diversos princípios constitucionais nas relações com seus trabalhadores, sendo o principal deles a dignidade da pessoa humana, que é um norte para todas as relações jurídicas e fonte primária dos direitos fundamentais, necessários para a proteção dos indivíduos e que foi gravemente ofendido no caso, observadas as violentas lesões à dignidade dos trabalhadores quando foram privados de manter condições mínimas para sobrevivência nos alojamentos enquanto se submetiam a jornadas de trabalho extremamente extenuantes.

Além disso, a questão do tráfico de pessoas está diretamente ligada não apenas ao cerceamento da liberdade de ir e vir, o que é comumente pressuposto pelo senso comum, mas também a exposição do trabalhador a alta vulnerabilidade, que é nítida no caso que é objeto da nossa análise, dados os abusos sofrido pelos trabalhadores que se recusaram a se sujeitar às (péssimas) condições de trabalho oferecidas.

6. Referências Bibliográficas

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NOSSOS CORPOS SUPORTAM O MUNDO: DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E A PROSTITUIÇÃO NO CONTEXTO NEOLIBERAL

OUR BODIES SUPPORT THE WORLD: THE SEXUAL DIVISION OF LABOR AND PROSTITUTION IN THE NEOLIBERAL CONTEXT

 

Andressa Somogy de Oliveira

Resumo: O mercado de trabalho é palco onde se expressa a desigualdade de gênero. As diferenças entre homens e mulheres nesse cenário são reveladas e corroboradas em diversos aspectos, dentre os quais está a naturalização de algumas qualificações como tipicamente “femininas”. Essa determinação de certos nichos ocupacionais para as mulheres é característica da divisão sexual do trabalho. O acesso masculino aos corpos das mulheres é garantido através do contrato sexual e aprofundado com a divisão sexual do trabalho, estando a dominação dos corpos e da sexualidade das mulheres diretamente ligada à sua exploração econômica. A subjetividade da mulher prostituída será debatida, estudando a prostituição como uma atividade que, inserida no contexto neoliberal, constitui mais uma forma de dominação-exploração das mulheres. Buscarei compreender, através da revisão bibliográfica e análise de dados, qual o papel do trabalho sexual das mulheres prostituídas no capitalismo, analisando a exploração sexual das mulheres em um cenário de miséria e pauperização feminina, de não garantia dos direitos sociais e de responsabilização das trabalhadoras e trabalhadores pela sua sobrevivência.

Palavras-Chave: Prostituição; Divisão sexual do trabalho; Neoliberalismo; “Sexagem”.

Abstract: The labor market is the scene where gender inequality is expressed. The differences between men and women in this scenario are revealed and corroborated in several aspects, among which is the naturalization of some qualifications as typically “feminine”. This determination of certain occupational niches for women is characteristic of the sexual division of labor. Male access to women’s bodies is guaranteed through the sexual contract and deepened with the sexual division of labor, with the domination of women’s bodies and sexuality directly linked to their economic exploitation. The subjectivity of the prostituted woman will be debated, studying prostitution as an activity that, inserted in the neoliberal context, constitutes another form of domination-exploitation of women. I will try to understand, through bibliographic review and data analysis, the role of prostituted women’s sex work in capitalism, analyzing the sexual exploitation of women in a scenario of misery and female impoverishment, of not guaranteeing social rights and empowering women workers workers for their survival.

Keywords: Prostitution; Sexual division of labor; Neoliberalism; “Sexing”.

Para ele, ela era uma mercadoria fragmentada cujos sentimentos e escolhas raras vezes eram consideradas: sua cabeça e seu coração estavam separados de suas costas e mãos, e divididas de seu útero e vagina. Suas costas e músculos eram forçados no trabalho do campo (…) às suas mãos se exigia cuidar e nutrir o homem branco (…) sua vagina, usada para o prazer sexual dele, era a porta de acesso ao útero, lugar para os investimentos dele – o ato sexual era o investimento de capital, e o filho, a mais-valia acumulada. (OMOLADE apud FEDERICI, 2017).

1. Introdução

O mercado de trabalho é palco onde se expressa a desigualdade de gênero. As diferenças entre homens e mulheres nesse cenário são reveladas e corroboradas em diversos aspectos, dentre os quais está a naturalização de algumas qualificações como tipicamente “femininas”.
A determinação de certos nichos ocupacionais para as mulheres, nichos esses que tendem a ser desvalorizados tanto economicamente quanto no imaginário social (CUNHA; FUENTES, 2006), é característica da divisão sexual do trabalho. Em tempos neoliberais, a informalidade, o desemprego estrutural, a precarização do trabalho e a flexibilização da legislação trabalhista são fatores marcantes nas relações de trabalho.

O acesso masculino aos corpos das mulheres é garantido através do contrato sexual (PATEMAN, 1996) e aprofundado, ampliado, com a divisão sexual do trabalho, estando a dominação dos corpos e da sexualidade das mulheres diretamente ligada à sua exploração econômica. O objetivo desse artigo será, partindo da bibliografia sobre: divisão sexual do trabalho e suas especificidades no capitalismo neoliberal, e sexagem; contribuir com o debate sobre o lugar que a exploração sexual das mulheres através do “trabalho sexual” ocupa na lógica e no sistema capitalista.
A metodologia será a revisão bibliográfica, visando analisar o que aponta a literatura produzida sobre a atividade das mulheres prostituídas e de que maneira a exploração sexual das mulheres contribui para a reprodução do capitalismo.
A compreensão da prostituição como realidade dentro do sistema capitalista patriarcal é necessária para entender como o capitalismo se utiliza dessa atividade para explorar as mulheres e continuar se reproduzindo. Como analisado por Silvia Federici:

Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época. (FEDERICI, 2017, p. 27)

Assim, buscar-se-á contribuir com o debate sobre o papel do trabalho sexual das mulheres prostituídas no capitalismo, analisando a exploração sexual das mulheres em um cenário de miséria e pauperização feminina, de não garantia dos direitos sociais e de responsabilização das trabalhadoras e trabalhadores pela sua sobrevivência.

2. RAÍZES DA DESIGUALDADE: A divisão sexual do trabalho

O discurso da coação natural sobre as classes dominadas, baseando-se no determinismo de sua existência e na sua própria organização fisiológica, traz uma falsa ideia de que a divisão sexual do trabalho existe independente das relações sociais e da história (GUILLAUMIN, 2014).
Visando desmascarar as tentativas de justificar aquilo que é imposto às mulheres por meio da coação com um “discurso de natureza” (GUILLAUMIN, 2014), Paola Tabet debate a importância da análise dos instrumentos de trabalho, posto que esses são como um prolongamento do corpo físico e “ampliam a sua capacidade de domínio e intervenção da natureza” (TABET, 2014, p. 110).
A autora estuda como o subequipamento histórico das mulheres refletiu numa limitação seja aos seus próprios corpos ou aos instrumentos de trabalho mais simples e precários, enquanto os homens monopolizaram a produção dos instrumentos e armas, assim como o uso das ferramentas mais avançadas. Portanto, através desta dominação dos melhores instrumentos e do monopólio na produção destes, os homens tiveram historicamente assegurada a utilização e a dominação das mulheres (TABET, 2014, p. 113).

Essa “relação política entre os sexos” (TABET, 2014, p. 108) permitiu e permite que os homens escolham quais atividades querem exercer enquanto que, às mulheres, resta o exercício de atividades supostamente naturais. A divisão de tarefas, portanto, não é neutra, é uma construção social que demonstra uma dominação.

O controle, por parte dos homens, da produção e do uso de instrumentos e armas confirma-se como condição necessária da dominação masculina sobre as mulheres, dominação baseada na violência (monopólio masculino das armas) e no subaparelhamento das mulheres (monopólio masculino dos instrumentos). A exclusão das mulheres da fabricação e da utilização de armas e instrumentos é a condição para seu uso no trabalho, na sexualidade, na reprodução da espécie. (TABET, 2014, p. 165-166)

Simone de Beauvoir, no volume II do “Segundo Sexo”, já denunciava como a “feminilidade” é um conceito socialmente construído e que mantem as mulheres em uma posição social de dominadas sobre uma falsa crença de que tal divisão de tarefas seria natural e biológica.

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher “feminina” é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 2016, p. 24).

Interessante conceito para compreendermos a apropriação imposta às mulheres, é o de sexagem. De acordo com Colette Guillaumin, esta é a “relação na qual é a unidade material produtora de força de trabalho que é tomada em mãos, não apenas a força de trabalho” (GUILLAUMIN, 2014, p.34). Para a autora, a sexagem se manifesta em quatro aspectos: apropriação do tempo, dos produtos do corpo, a obrigação sexual, encargo físico e a apropriação da individualidade. Os meios que garantem tal apropriação são diversos, dentre eles as limitações ao e no mercado de trabalho, confinamento no espaço, demonstração de força, coação sexual e arsenal jurídico (GUILLAUMIN, 2014).

A suposta unificação exercida pelo termo “classe operária”, é tema de críticas tecidas por Danièle Kergoat, que afirma que a classe operária tem dois sexos e desenvolve também o conceito de “relação social de sexo” como a relação social entre dois grupos sociais, no caso homens e mulheres, tendo o trabalho como base material.

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; esta forma é adaptada historicamente e a cada sociedade. Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc…) (KERGOAT, 2003, p. 1).

O reconhecimento dos dois sexos da classe operária é essencial para que se reconheça a dimensão da divisão sexual do trabalho e, dentre suas consequências, a predeterminação de algumas atividades como sendo naturais as mulheres. Como, por exemplo, o trabalho sexual. Que sendo feito pela esposa ou pela prostituta, reafirmam a posição das mulheres enquanto instrumentos dos homens no sistema capitalista patriarcal.
A subjugação das mulheres enquanto reprodutoras de herdeiros e de novas reprodutoras, força de trabalho e objeto para satisfazer sexualmente aos homens, é característica do regime patriarcal (SAFFIOTI, 2015).

Importante ressaltar que a essencialidade do recorte de gênero no presente debate, não exclui a necessidade da compreensão das relações de produção para explicar como os caracteres de sexo (assim como os raciais) são utilizados para hierarquizar os membros dentro da sociedade.

No processo de individuação inaugurado pelo modo de produção capitalista, ela contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas (…). (SAFFIOTI, 2013, P. 66).

A marginalização da mulher na sociedade se relaciona diretamente com sua discriminação no mundo do trabalho. As relações, tanto de classe como de sexo, organizam as práticas sociais em sua totalidade. Como colocado por Helena Hirata e Danièle Kergoat, “(…) não e só em casa que se e oprimida nem só na fábrica que se e explorado (a).” (HIRATA; KERGOAT, 1994, p. 96, grifo nosso).
A opressão das mulheres e a apropriação de seu trabalho são notáveis nas profundas diferenças de sua exploração enquanto trabalhadora, como a divisão de tarefas e as diferenças salariais entre homens e mulheres, como também no controle de seus corpos e de sua sexualidade pelos homens. As explorações econômica e sexual das mulheres são fatores que se unem gerando marginalização e empobrecimento.

3. UM DOS TRONCOS QUE SUSTENTA O NEOLIBERALISMO: A miséria imposta às mulheres

A estrutura econômica neoliberal é patriarcal em suas raízes. As diferenças entre homens e mulheres em uma conjuntura de crise do capital, resultam em uma situação de maior instabilidade para as trabalhadoras. Muñoz e Madroño (2011), demonstram que as crises econômicas acarretam, para as mulheres, empregos mais precários, informalidade e menores salários.
No mundo do trabalho, em tempos neoliberais, a informalidade, o desemprego estrutural, a precarização do trabalho e a flexibilização da legislação trabalhista são fatores marcantes nas relações de trabalho. Nesse cenário, a piora nas condições de trabalho atingem de maneira diferente as mulheres, que são colocadas em uma situação mais vulnerável.

Las crisis económicas provocan siempre un empeoramiento de las condiciones de trabajo de las mujeres, que suelen salir de las crisis con peores salarios, empleos más precarizados y con la conversión de muchos empleos en trabajos realizados desde la economía informal o en trabajos a tiempo parcial precarizados. A nivel mundial, la OIT (2012) estima que el número de trabajadores en situación de vulnerabilidad en el empleo se ha incrementado en 136 millones desde 2000 a 2011, y en casi 23 millones desde 2009. Y la proporción de mujeres en situación de vulnerabilidad laboral excede siempre a la de los hombres, 50,5 y 48,2 por ciento, respectivamente. (MUÑOZ; MADROÑO, 2011, p. 122)

Apesar do discurso amplamente divulgado de que a igualdade de gênero tenha sido alcançada e da tentativa de convencimento de que homens e mulheres possuem os mesmos direitos e são, portanto, “iguais”, as diferenças nos salários e nas atividades exercidas continuam sendo evidentes.

Enfim, ouvimos sempre dizer que a igualdade dos sexos nunca esteve tão próxima, ao mesmo tempo em que sabemos que as mulheres, as adolescentes e as sexagenárias constituem a imensa maioria das pessoas mais empobrecidas do planeta. Como explicar isto? (FALQUET, 2008, p. 123)
Relatório lançado esse ano pela Organização Internacional do Trabalho, demonstra que tanto o acesso ao mercado laboral quanto as condições de trabalho são extremamente desiguais.
A participação das mulheres na força de trabalho mundial ficou 26,5 pontos percentuais abaixo da taxa masculina. O desemprego entre as mulheres também é maior, estando 0,8 pontos percentuais acima da taxa entre os homens. Ou seja, para cada 10 homens empregados, apenas 6 mulheres estão empregadas. Nos países em desenvolvimento, 42% dos empregos femininos são não remunerados (ORGANIZACÇÃO MUNDIAL DO TRABALHO, 2018).
Em contrapartida, nos últimos 20 anos (entre 1995 e 2005), o número de lares chefiados por mulheres aumentou de 23% para 40%. Nessas famílias, apenas 34% os cônjuges dessas mulheres continuam morando em casa.
Ou seja, cada vez mais desempregadas e menos remuneradas, as mulheres têm também sido mais responsáveis pelo sustento da casa e dos dependentes.

A situação é ainda mais preocupante quando falamos das mulheres negras, a quem os males do patriarcado capitalista da supremacia branca (HOOKS, 2017) acometem de maneira muito mais violenta. Sueli Carneiro (2011) já denunciava que a pobreza tem cor no Brasil. E não só cor, como sexo.
O “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça entre 1995 e 2005” , pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada comprova que se existe uma diferença de acesso ao mercado de trabalho entre homens e mulheres, essa situação é ainda mais gravosa quando falamos das mulheres negras. Os níveis de analfabetismo das mulheres negras é mais que o dobro do das mulheres brancas (em 2015, entre as mulheres brancas com mais de 15 anos, somente 4,9% eram analfabetas; no caso das mulheres negras, este número sobe para 10,2%).

A taxa de desocupação também é maior entre as mulheres negras. 11,6% das mulheres brancas não estão não mercado de trabalho, entre as mulheres negras esse índice chega a 13,3% (entre os homens brancos a taxa é de 7,8%, enquanto entre homens negros ela aumenta para 8,5%).
O rendimento médio mensal no trabalho principal da população ocupada acima dos 16 anos comprova, novamente, que a desigualdade de gênero é acentuada pela desigualdade racial. No Brasil, esse índice de rendimento médio mensal, em 2015, era de R$ 1.686,80. Entre homens brancos, aumenta para R$ 2.509,70. Cai para R$ 1.765,00 entre mulheres brancas. Cai mais, para R$ 1.434,10 entre homens negros. E, entre as mulheres negras, o rendimento médio mensal fica em R$ 1.027,50. Menos da metade do rendimento dos homens brancos.
Sueli Carneiro (2011) afirma que a exclusão dos negros e negras ao acesso ao trabalho e ao emprego é negar a uma parcela da população uma condição primordial para a reprodução da vida, negando um direito básico de cidadania.

A autora, utilizando-se de termo cunhado por Arnaldo Xavier, poeta negro e nordestino, fala sobre o “matriarcado da miséria” e constata que há, no Brasil, uma

(…) conjugação do racismo com o sexismo [que] produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida, que se manifestam em sequelas emocionais com danos à saúde mental e rebaixamento da autoestima; em uma experiência de vida menor, em cinco anos, em relação à das mulheres brancas; em um menor índice de casamentos; e sobretudo no confinamento nas ocupações de menor prestígio e remuneração. (CARNEIRO, 2011, p. 128)

Portanto, a reestruturação do capital, sua reorganização, as mudanças na oferta de emprego formal, as discrepâncias salarias e a desigualdade social, afetam de maneira diferente trabalhadores e trabalhadoras sendo que, dentre as trabalhadoras, afetam de maneira mais intensa as mulheres negras. O que torna evidente que a emancipação feminina sofre oposição direta do capital, pois a sua preservação enquanto sistema racista e sexista de opressão e apropriação, necessita do trabalho feminino, remunerado ou não.
A polarização dos papéis “masculino” x “feminino” é intensificada no regime capitalista neoliberal em tempos de crise econômica. O que influencia não só na diminuição dos postos de trabalho formais para as mulheres, como também na diminuição de políticas públicas. O fechamento de creches, de escolas, a diminuição de benefícios, a dificuldade de acesso à saúde, moradia e terra, afetam as mulheres enquanto principais responsáveis pelo cuidado e sustento das crianças, dos idosos e doentes na família.

Na sociedade onde os nichos são muito bem divididos em termos de sexo, as assimetrias são acentuadas quando a precarização e a flexibilização atacam o mundo do trabalho. E o neoliberalismo se consolida enquanto tronco, sustentando pelas raízes da desigualdade entre os sexos, do qual, dentre muitos galhos e folhas, estará a prostituição feminina.

4. AS FOLHAS QUE INSISTEM EM NASCER: A prostituição

“(…) desde que se ofereça uma profissão, há quem a siga (…)”. (BEAUVOIR, p. 364).

A miséria e as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, crescentes nas sociedades que adotaram (ou as quais foi imposto) o modelo econômico neoliberal, permitem e incitam a monetização do uso físico sexual das mulheres.
Dentre as três grandes tarefas que a internacionalização da reprodução social tende a condicionar as mulheres, quais sejam: o trabalho de criação das crianças, o trabalho de manutenção da família e de seus membros e o trabalho sexual (FALQUET, 2008, p. 129), trataremos nesse artigo do trabalho sexual.
A prostituição é analisada neste trabalho como uma atividade que, inserida no contexto neoliberal, constitui mais uma forma de dominação-exploração das mulheres, possuindo características específicas que evidenciam e reforçam as diferenças na exploração de trabalhadoras e trabalhadores no sistema capitalista.
Como Pateman (1996) nos alerta, o pacto sexual-social que impõe a sujeição das mulheres aos homens, não está associado somente à esfera privada. De modo que, ao falarmos de trabalho sexual, não trataremos da dominação sexual entre maridos e esposas, mas analisaremos a apropriação coletiva das mulheres prostituídas.

Paola Tabet aborda o “trabalho do sexo” através de um “continuum de troca econômico-sexual” Em uma extremidade estão as mulheres casadas que exercem trabalho sexual, doméstico, emocional e procriativo. Na outra extremidade, estão as mulheres que prestam trabalho sexual em troca de remuneração pecuniária, tal remuneração é a mais alta possível e pertence integralmente a essas mulheres. Na área central, estão as mulheres prostituídas que dependem de cafetões e/ou que tem arrancados de si certos “favores sexuais” seja por emprego ou moradia. (TABET apud FALQUET, 2016, p. 39).

A entrada e permanência das mulheres nesse continnum ocorrem devido a “(…) uma forte restrição de acesso aos recursos e conhecimentos e uma ameaça permanente de violência” (FALQUET, 2016, p. 42).

O controle da sexualidade feminina, assim como de sua capacidade reprodutiva, é uma das faces da base econômica do patriarcado. A segregação ocupacional, a discriminação salarial e sua marginalização dos papéis político-deliberativos e econômicos mais elevados, é a outra face (SAFFIOTI, 2015).

Carole Pateman disserta sobre a diferença entre o trabalho dos homens e das mulheres, criticando a suposta igualdade entre o vender a força de trabalho masculino e o feminino. Diz a autora:

As trabalhadoras não são escravas assalariadas no mesmo sentido em que os trabalhadores, e nem é a subordinação do escravo assalariado a mesma que a da esposa. Tanto o patrão quanto o marido têm o direito de controle do uso do corpo dos trabalhadores e das esposas, mas embora todo marido tenha suas exigências específicas, o conteúdo do trabalho da dona-de-casa é determinado pelo fato de ela ser mulher. O conteúdo de trabalho do trabalhador é determinado pelo capitalista, mas já que o capitalismo é patriarcal, o trabalho das trabalhadoras é diferente do dos trabalhadores. (PATEMAN, 1996, p. 225, grifo nosso)

Portanto, os lugares e papéis atribuídos às mulheres no patriarcado capitalista da supremacia branca (HOOKS, 2017) estão atrelados, especialmente, à sexualidade e ao cuidado. De modo que no sistema onde há dominação duma classe sobre a outra, à classe das mulheres resta a identificação por seus corpos, enquanto que aos homens a identificação se dá por suas práticas. (GUILLAUMIN, 2014, p. 88).

Dentre os questionamentos que impulsionaram o desenvolvimento do presente artigo está a compreensão de por que, das mais de 40 milhões de pessoas prostituídas no mundo, 75% são mulheres entre 13 e 25 anos?

Alguns apontamentos vão traçando os caminhos para encontrar respostas. A divisão da sociedade em classes sociais determinada pelo modo capitalista de produção justifica, dentro dessa divisão, uma marginalização e inferiorização de alguns setores da população. No Brasil, conforme dados supracitados, esses setores são definidos pelos marcadores de sexo e raça, que são essenciais para refletir sobre o acesso e o uso físico-sexual dos corpos das mulheres.
Concordamos com Jules Falquet quando a autora sustenta que:

O importante não é tanto ser a favor ou contra esta ou aquela tarefa, mas conseguir identificar o principal inimigo que organiza todas elas: as coerções materiais e ideológicas que forçam as mulheres a entrar em troca econômico-sexual e nas relações de sexagem, isto é, relações de apropriação individual e coletiva (FALQUET, p. 45)

As mudanças que o modelo neoliberal tem imposto ao mundo do trabalho acentuam as diferenças e exclusões já existentes, como a divisão sexual e racial do trabalho. Nesse contexto, a sobrevivência das trabalhadoras e trabalhadores é dificultada na mesma medida em que é imputada ao âmbito individual, em uma constante desresponsabilização do Estado.
O aumento da miséria feminina, os altos índices de desemprego e o aumento do custo de vida para a classe trabalhadora se ligam diretamente ao exercício, pelas mulheres, de atividades menos remuneradas, precarizadas e, muitas vezes, degradantes.
Acredita-se que, sendo espaço de controle de sua sexualidade e de manifestação de sua exploração econômica, os corpos das mulheres são o “principal terreno de sua exploração e resistência” (FEDERICI, 2017, p. 34). Portanto, faz-se necessário o debate sobre o trabalho sexual apropriados das mulheres, sem ignorar que, no solo capitalista, as raízes da divisão sexual do trabalho firmam e alimentam o tronco da miséria feminina que alimentam, dentre muitas folhas, a prostituição. São os nossos corpos que suportam o mundo, são também os nossos corpos que nos permitirão movê-lo.

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CRÍTICA AOS FUNDAMENTOS DA TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO A PARTIR DA PERSPECTIVA DO FEMINISMO DA REPRODUÇÃO SOCIAL

CRITIQUE OF THE FUNDAMENTALS OF GENERAL THEORY OF LABOR LAW FROM THE PERSPECTIVE OF SOCIAL REPRODUCTION FEMINISM

Ana Luiza de Oliveira
Leila Giovana Izidoro

Resumo: As mudanças no cenário político-econômico do capitalismo global têm resultado na expansão da precarização laboral e na perda de garantias trabalhistas outrora conquistadas. Essa realidade tem impactado, sobretudo, a vida das mulheres. Diante da combinação dessas circunstâncias, faz-se necessário retomar as bases teóricas que sustentam o Direito do Trabalho, enquanto fenômeno social, a fim de repensar seus limites e potencialidades. Nesse sentido, este artigo propõe adotar “gênero” como uma importante categoria de análise histórica da construção da Teoria Geral do Direito do Trabalho, ao evidenciar o caráter paradoxal de seus fundamentos em relação ao trabalho realizado pelas mulheres. Para isso, a pesquisa adotará uma metodologia materialista histórico-dialética e se apoiará nos estudos de teóricas feministas da reprodução social, que, desde a década de 1970, vêm debatendo a questão da remuneração do trabalho doméstico. Também abordaremos o caso das Campanhas pelo salário doméstico – Wages for Housework, nos EUA, a fim de verificar como elas podem contribuir para a discussão atual sobre o Direito do Trabalho enquanto campo de lutas e garantias.

Palavras-chave: trabalho reprodutivo, direito do trabalho, reprodução social, feminismos.

Abstract: The current changes in the political-economic scenario of global capitalism have influenced the expansion of labor precariousness and the elimination of labor guarantees once won. This reality has had a stronger impact on women’s life. Faced with this combination of circumstances, it is necessary to retake the theoretical bases that support Labour Law, as a social phenomenon, in order to rethink its limits and potentialities. In this sense, this article proposes to adopt “gender” as an important category of historical analysis of General Theory of Labor Law, by highlighting the paradoxical character of its protective foundations in relation to the work performed by women. For this, the research will adopt a historical-dialectical materialist methodology and will be based on the studies of feminist theorists of social reproduction that since the 1970s, have been debating the issue of domestic labor remuneration. We will also address the case of Wages for Housework, in the USA, to verify how they may contribute to the current discussion about Labor Law as a field of struggles and guarantees.

Key-words: reproductive work, labor law, social reproduction, feminisms.

Introdução
O presente estudo se inicia a partir de uma série de questionamentos sobre os fundamentos que serviram de base para a construção do Direito do Trabalho, tal como o conhecemos, e sobre as funções contraditórias que desempenham no capitalismo. Podem ser citadas duas motivações que serviram como impulso propulsor desta pesquisa. A primeira delas foi a aprovação de uma série de medidas legislativas pelo governo federal brasileiro e que marcou o ano de 2017 como um período de retrocessos em direitos sociais no país. A segunda foi a expansão de análises que pretendem interpretar os recentes processos de reestruturação produtiva e que apontam, por exemplo, para o avanço do chamado “trabalho imaterial” (Antonio Negri e Michael Hardt) e da “economia do trabalho caseiro” (Richard Gordon) . O panorama apresentado em diversas obras tem sido o mesmo: o de expansão do trabalho subjetivo, feminilizado, ligado ao privado, ou reprodutivo, cada vez mais mal remunerado.

Pode-se dizer que o surgimento do Direito do Trabalho, enquanto fenômeno, está fortemente ligado às relações de força e à luta de classes em um momento bastante específico da história ocidental: a consolidação do modo de produção capitalista industrial. No entanto, só foi possível a existência deste modo de produção a partir de uma divisão social do trabalho, que construiu novas diferenças sexuais entre homens e mulheres, ao separar e hierarquizar a chamada esfera pública e de produção da esfera privada e da reprodução. Conforme aponta Kergoat (2009, pp. 65–75), dá-se como destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, sendo que um trabalho “de homem” (produtivo) vale mais do que um trabalho “de mulher” (reprodutivo).

É nesse sentido que o movimento feminista historicamente tem denunciado que as mulheres realizam uma enorme quantidade de trabalho gratuito, invisível, naturalizado e que, no entanto, é essencial para a (re) produção social e, portanto, para a reprodução do próprio sistema capitalista. O conceito de reprodução social abarca não só a produção dos meios que permitem satisfazer a produção da própria vida material (MARX; ENGELS, 2007, p. 33), mas o papel das mulheres na reprodução biológica e, sobretudo, a questão historicamente específica de seus papéis na reprodução da força de trabalho e na manutenção das relações de dominação e de subordinação da produção capitalista (ARRUZZA, 2017, p. 50).

É por isso que, ao levarmos em consideração a especificidade histórica da organização social do trabalho e sua implicação na construção das diferenças entre homens e mulheres, observamos a importância de situar o conceito de gênero enquanto categoria central de análise do Direito do Trabalho. Este debate, no entanto, tem estado às margens das discussões que norteiam este campo do Direito e até mesmo nos estudos em que é incorporado, gênero é entendido apenas como parte da realidade empírica na qual o Direito do Trabalho atua e não como parte determinante de sua estrutura.

Discutir a intersecção entre gênero e Direito do Trabalho é também demonstrar como a realidade vivenciada por mulheres esteve apartada da discussão da construção do Direito moderno, fundado nos ideais iluministas. A História do Direito nos mostra a construção das mulheres como incapazes, limitadas juridicamente a praticar certos atos da vida civil, equiparadas a crianças, entendidas como objetos de direito e não como sujeitos. Mesmo o direito à propriedade privada, maior triunfo da Revolução Francesa e que guia as bases da maior parte dos direitos conquistados a partir do Iluminismo.
Nesta esteira, torna-se importante situarmos nosso entendimento sobre o que é o Direito ou talvez mais especificamente sobre a forma como ele vem sendo apreendido. Para tanto, faz-se necessário revelar a hegemonia do paradigma positivista-normativista ou positivista legalista presente na suposta “ciência do Direito”.
Em tal paradigma, cujo teórico de maior relevância é Hans Kelsen e sua clássica obra “Teoria Pura do Direito”, o positivismo, segundo Machado:
a) estabelece uma rígida separação entre o mundo do ser e o mundo do dever ser; b) reconhece apenas as leis postas pelo Estado como expressão do direito; c) propõe uma análise jurídica distinta da análise histórica da norma; d) rejeita a análise dos componentes ideológicos da norma; e) visualiza o direito como ciência que estuda apenas os fatos normativos; f) assenta a definição de direito no seus caráter coercitivo; g) aceita o direito positivo ou como expressão do justo, ou como meio de garantir valores como a estabilidade, a segurança e a ordem social.” (MACHADO, 2005, p.128)

Em suma, o paradigma positivista legalista/normativista reduz a ciência do direito ao que se denomina “dogmática jurídica”, como se esta fosse a única forma de conhecimento científica válida para o campo do Direito. Neste sentido, o fenômeno social do Direito é reduzido à norma estatal, cabendo ao jurista a sua interpretação e aplicação.
Por esta razão, o ensino jurídico existente nas universidades brasileiras, locus por excelência da produção e reprodução do conhecimento científico, é classificado pelo autor como de caráter formalista e tecnicista, uma vez que é centrado apenas “no estudo dos códigos e das formalidades legais e nas técnicas jurídicas de interpretação e aplicação dos textos legais sem qualquer articulação com os domínios da ética e da política”. Portanto, como se verá adiante, o presente trabalho, ao criticar o modelo de cientificidade no e do Direito, particularmente na esfera do Direito do Trabalho, também tem por efeito questionar indiretamente como ele é ensinado nos bancos universitários, embora não seja este o seu objeto.
Mas o saber e fazer jurídicos atuais e dominantes ainda têm como pilar de sustentação um outro paradigma, desta vez político-ideológico: o liberalismo clássico, o qual, dentre outras características, apregoa, no campo político, noções de sufrágio universal, democracia representativa, igualdade jurídica, primado da lei e repartição dos poderes. Já no âmbito econômico, tal ideologia defende o livre mercado e a menor interferência do Estado na economia.
Tendo em vista que a dogmática jurídica capta o Direito de forma a distanciá-lo da realidade concreta, o objetivo central deste estudo é, justamente, entender o caráter contraditório da Teoria Geral do Direito do Trabalho, evidenciando os limites de sua finalidade protetiva, ao não estender suas garantias ao trabalho reprodutivo não remunerado . Para isso, abordaremos o conceito de gênero como categoria central de análise histórica e partiremos da crítica à economia política feita pelas feministas da reprodução social. Nesse sentido, utilizaremos como referencial teórico especialmente as obras de Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Cinzia Arruzza, ainda pouco utilizadas na produção crítica do direito.

Como pano de fundo, partiremos dos pressupostos da crítica à epistemologia do direito, levada a cabo pelas Teorias Críticas do Direito, com destaque para a Teoria Dialética do Direito de Roberto Lyra Filho, e sua crítica ao paradigma positivista-legalista da ciência jurídica. Dessa forma, buscamos evidenciar que a crítica feita pelas feministas da reprodução social coaduna, de certa forma, a uma crítica da Teoria Geral do Direito do Trabalho, que elegeu o paradigma do emprego como seu fundamento.
A percepção dessas questões pode ser traduzida nas seguintes indagações a serem respondidas ao longo da pesquisa: Qual é a narrativa inicial que constituiu a Teoria Geral do Direito do Trabalho? Tal narrativa abarca uma categoria de trabalho que tenha ligação com as ocupações realizadas historicamente pelas mulheres a partir da divisão sexual do trabalho? Se não, quais são as chances em se pensar uma reformulação da Teoria Geral do Direito do Trabalho, em um contexto em que as condições e características que organizavam o trabalho reprodutivo se ampliaram para outras formas de trabalho?
O desenvolvimento do artigo se dará em quatro partes. Na primeira delas, intentaremos delimitar nossos pressupostos teóricos quanto à crítica da Teoria Geral do Direito do Trabalho, situando sua construção em um momento histórico específico. Para isso, analisaremos (i) algumas obras de juristas laboralistas tradicionais da doutrina brasileira, a fim de evidenciar a crítica feita por Roberto Lyra Filho à dogmática jurídica; (ii) a constituição do princípio protetivo e (iii) a utilização do emprego como paradigma para a Teoria Geral do Direito do Trabalho.

Na segunda parte, abordaremos a importância da utilização de gênero como categoria de análise histórica da Teoria Geral do Direito do Trabalho, evidenciando certo descompasso entre seus fundamentos e o lugar historicamente construído das mulheres no mundo do trabalho. A terceira parte aprofundará tal argumento, ao analisar as contribuições do feminismo da reprodução social quanto à acumulação do trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres para o desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Na quarta e última parte, tentaremos situar o feminismo da reprodução social para além de um movimento teórico. Para isso, focaremos nas Campanhas pelo salário doméstico – Wages for Housework – a fim de visibilizar as reivindicações feministas de forma mais empírica e embasada em uma revisão bibliográfica e documental dessas campanhas.
As considerações finais versarão sobre a tentativa de responder às perguntas colocadas, focadas no Direito do Trabalho. É importante salientar que o presente trabalho é fruto de indagações que ainda estão em processo de pesquisa, podendo ser considerado apenas como um sopro para que seja desenvolvido futuramente em maior potencial.

1. Os fundamentos da Teoria Geral do Direito do Trabalho

A primeira questão que nos cabe abordar é o próprio conceito de Direito do Trabalho. Partimos do pressuposto, acima já exposto, de que a definição do conceito de Direito do Trabalho, pela doutrina tradicional, assim como do fenômeno jurídico em geral, ainda o identifica com a norma já positivada ou reconhecida pelo Estado. Nesse sentido, é possível supor que a dialética social do Direito do Trabalho não é apreendida e exposta, em sua totalidade, pela Teoria Geral do Direito do Trabalho hegemônica (LYRA FILHO, 2006).
Para comprovar o lastro de tal afirmação, nos debruçaremos brevemente sobre as obras de dois juristas reconhecidos do Direito do Trabalho brasileiro: Amauri Mascaro do Nascimento e Maurício Godinho Delgado . Ressaltamos que a análise dos trechos selecionados não tem a pretensão de enquadrar os autores em alguma corrente filosófica, pois, para tanto, seria necessário o estudo profundo e denso de toda a obra de ambos. O que se pretende, no entanto, é entender o conteúdo de suas falas.

Para Mascaro, em sua obra “Iniciação ao Direito do Trabalho”, Direito do Trabalho é:
O ramo da ciência do Direito que tem por objeto as normas, as instituições jurídicas e os princípios que disciplinam as relações de trabalho subordinado, determinam os seus sujeitos e as organizações destinadas à proteção deste trabalho em sua estrutura e atividade” (MASCARO, 2007, p. 58).

E, ao tratar do pluralismo jurídico, Mascaro explica:

Há duas concepções jurídicas diferentes do direito: o monismo jurídico (Kelsen), que confunde direito e Estado, de modo que todo o direito é produzido pelo Estado, e o pluralismo jurídico (Del Vecchio), segundo o qual nem todo direito é elaborado pelo Estado, coexistindo, ao lado do direito estatal, um conjunto de normas jurídicas criadas pelos particulares entre si, toleradas pelo Estado, daí resultando um ordenamento misto, com normas estatais e não estatais. O direito do trabalho é expressão do pluralismo jurídico. Combinam-se as leis promulgadas pelo Estado e os contratos coletivos pactuados entre os sindicatos e as entidades patronais. Há um direito estatal e um direito profissional, convivendo, formando um complexo de normas jurídicas que se combinam segundo uma hierarquia própria de aplicação, basicamente apoiada no princípio da prevalência da norma que resultar em maiores benefícios para o trabalhador, expressando-se como o princípio da norma favorável, salvo exceções” (MASCARO, 2007, p. 78-79).

Já sobre a unidade ou dualidade de ordenamentos, Mascaro afirma:

Pelo fato de coexistirem leis que o Estado elabora e as normas jurídicas que são produzidas pela vontade dos grupos por meio das suas representações sindicais, há duas concepções opostas, a dualista e a integrativa, a primeira sustentando que são separados os dois sistemas, o estatal e o não estatal, e a segunda compreendendo-os como uma unidade constituída de ambos os tipos de normas, como efetivamente ocorre. (…) Não há dois ordenamentos, mas um só o que o Estado faz e o que o Estado reconhece; portanto, reconhecendo, integra num só ordenamento todos os existentes. Realmente o número de normas é expressivo; há uma infinidade de normas que, como as estrelas do céu, jamais alguém consegue contar. Quantas e quais são as normas jurídicas trabalhistas no Brasil? É possível defini-las pelos tipos, mas não pelo número. É difícil saber quantas leis, convenções e acordos coletivos, regulamentos de empresa, usos e costumes, jurisprudência estão vigentes. “A tarefa do profissional do direito não é contar o número dessas normas, mas conhecer as regras que deve seguir para escolher a norma que deverá aplicar na solução de cada caso concreto” (MASCARO, 2007, p. 102).

Pela visão exposta por Mascaro, até onde compreendemos sua obra, ele define Direito como ordenamento jurídico. No ramo do Direito do Trabalho, tal ordenamento jurídico seria pluralista de tipo integrativo, em que ou o Estado elabora a norma ou a reconhece, cabendo ao/à jurista “conhecer as regras que deve seguir para escolher a norma que deverá aplicar na solução de cada caso concreto” (MASCARO, 2007, p. 102), procedendo a subsunção do fato à norma.
A visão exposta, a nosso ver, é positivista legalista, na medida em que entende o Direito a partir da ordem e da norma elaborada pelo Estado ou por ele reconhecida.

Já para Maurício Godinho Delgado, o Direito Material do Trabalho pode ser definido como: complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que “regulam a relação empregatícia de trabalho e outras relações normativamente especificadas, englobando, também, os institutos, regras e princípios jurídicos concernentes às relações coletivas entre trabalhadores e tomadores de serviços, em especial através de suas associações coletivas” (DELGADO, 2012, p.51).
Note-se que, nos trechos citados, ganha relevo o verbo “regular”, bem como as palavras “princípios, regras e institutos jurídicos”, ou seja, o Direito do Trabalho é reconhecido como algo que regula determinada relação social, uma relação de trabalho subordinado: a relação de emprego. Presente está, pois, a ideia de ordem.

Em tal definição não se encontra, por exemplo, a ideia de conflito, de luta de classes e de grupos, de devir histórico, nem de processo histórico como fonte do Direito do Trabalho. Apesar de Godinho reconhecer a dinâmica do Direito do Trabalho, à ciência jurídica interessa apenas o termo inicial em que o Direito é vertido em norma e positivado pelo Estado em seu ordenamento. É deste momento em diante que se forma o objeto do Direito do Trabalho.
Fica evidente, portanto, que, as ideias ilustradas pelo autor, ao menos nos trechos colhidos, tal como Mascaro, evidenciam que o Direito é tomado como ordem social, ou seja, tal fenômeno apenas se torna jurídico quando é vertido em normas, mas não qualquer norma, a norma estatal ou aquela reconhecida expressa e anteriormente pelo Estado.
Além disso, o jurista citado considera expressamente que o processo de formação do Direito é pré-jurídico, dando a entender que tal momento não é objeto direto do Direito do Trabalho. Assim, ao que parece, não seria função do jurista compreender a fundo a dinâmica das “fontes materiais” do Direito do Trabalho, cabendo-lhe basicamente conhecer com amplidão as suas fontes formais (quando determinadas normas já foram transmutadas em lei ou reconhecidas pelo Estado) e todas as técnicas para a sua compreensão e aplicação.

Entendemos, portanto, que tal forma de conceber o fenômeno jurídico, seja com Mascaro, seja com Godinho, por todo o já exposto anteriormente, é consentâneo à visão positivista-legalista do Direito. Partimos do pressuposto de que tal maneira de captar o Direito é hegemônica na Teoria Geral do Direito do Trabalho, tal como é na Teoria Geral do Direito. Em suma, Direito para a Teoria Geral do Direito e, por consequência, para a Teoria Geral do Direito do Trabalho, ainda é identificado como norma positivada ou reconhecida pelo Estado com o fim de controle e regulação social.
No entanto, apenas identificar a crítica da Teoria Geral do Direito do Trabalho como uma crítica da cientificidade da própria teoria geral do direito não é o suficiente para explicarmos os pontos de tensão entre o trabalho reprodutivo e os fundamentos daquela teoria. Para isso, faz-se necessário abordarmos as especificidades da construção dos princípios e dos paradigmas da Teoria Geral do Direito do Trabalho.

1.1. O princípio da proteção e seus desdobramentos na constituição de uma Teoria Geral do Direito do Trabalho

Quando tratamos dos princípios do direito, estamos versando, portanto, sobre o direito positivado pelo Estado, isto é, vinculado à ideia de normatividade, uma vez que, como já exposto acima, os princípios fariam parte do ordenamento jurídico. Tal fato se dá, em grande parte, pela prevalência do positivismo científico na interpretação do direito e na formulação de sua teoria contemporânea. Dados estes pressupostos, observa-se que muitos dos princípios do Direito do Trabalho são também princípios elencados pela teoria geral do direito. No entanto, enquanto ramo específico do conhecimento, o Direito do Trabalho também possui suas particularidades quanto a princípios que o norteiam.

Dentre os princípios que regem o Direito do Trabalho, não há nenhum que chame mais atenção do que o princípio da proteção. Este princípio pode ser considerado como a espinha dorsal do Direito do Trabalho, justificando a sua própria existência. Nesse sentido, o jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez (1978, pp. 42-43) consagrou uma tríade referencial para o princípio da proteção, que se desdobra nos princípios do in dubio pro operário, da norma mais favorável e da condição mais benéfica. Os três princípios derivados da proteção são autoexplicativos e se relacionam com a aplicação da norma mais favorável ao trabalhador, independentemente de sua hierarquia, e com a proteção de situações pessoais mais vantajosas que se incorporam ao patrimônio do empregado (BARROS, 2007, P. 169).

No entanto, o princípio da proteção tem sido flexibilizado a ponto de ferir outro princípio importante do Direito do Trabalho, o da proibição de retrocesso social. Nesse sentido, há uma nítida tendência a esvaziar o poder da Justiça do Trabalho e a privilegiar a negociação coletiva, com base na prevalência do princípio da autonomia privada coletiva . Tal realidade tem sido interpretada por muitos juristas como um objetivo final de minar a própria existência do Direito do Trabalho em seu caráter protetivo.

Todavia, o que pretendemos demonstrar neste trabalho é que o princípio protetivo, em sua própria constituição, já não abarcada uma parcela importante de trabalhadoras. O objetivo, ao evidenciar essa hipótese, não é o de nos alinharmos a correntes desenvolvimentistas que sustentam a necessidade de adequação do Direito do Trabalho às mudanças da nova economia globalizada. Ao contrário, buscamos retomar às bases da Teoria Geral do Direito do Trabalho, a fim de visibilizar uma contradição existente em sua estrutura e a realidade histórica, e que tem se intensificado em tempos de crises, para tentar corrigi-la ou superá-la.

Nesse sentido, a crítica exposta aos limites do princípio protetivo está diretamente relacionada à construção do emprego como paradigma da Teoria Geral do Direito do Trabalho. Por isso, para entender os reflexos de tal princípio, cabe-nos analisar no que consiste a relação empregatícia, tal como ela é entendida na tecnologia jurídica da Teoria Geral do Direito do Trabalho. É o que intentaremos empreender no próximo item deste artigo.

1.2. A constituição do emprego como paradigma da Teoria Geral do Direito do Trabalho

É bem verdade que, atualmente, com os ajustes estruturais propostos pelos governos ao redor do mundo, os contratos de emprego não estão na ordem do dia . No entanto, eles fazem parte das bases do Direito do Trabalho, pois simbolizam, segundo a dogmática tradicional, o acordo tácito ou expresso que cria a relação jurídica entre empregado e empregador. É acordo expresso – escrito ou verbal – ou tácito firmado entre uma pessoa física e outra pessoa física ou jurídica, por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em favor do segundo um serviço de natureza não-eventual, mediante salário e subordinação jurídica (BARROS, 2007, p. 230) .

O conteúdo do contrato de emprego refere-se às características definidoras do vínculo empregatício (onerosidade, pessoalidade, alteridade, subordinação jurídica, etc). No entanto, é importante lembrar que, atualmente, a maior parte dos trabalhadores no mercado de trabalho permanece na informalidade. Dessa maneira, evidencia-se que o modo de produção capitalista vem encontrando novas formas de se apropriar da força de trabalho da classe operária. Tal fato pode ser entendido também a partir da construção de relações de trabalho fraudulentas, que burlam as normas trabalhistas vigentes a fim de garantir a redução de encargos financeiros para o empregador .
Diante desse cenário, fica evidente que o paradigma do emprego não representa a realidade da maior parte dos contratos de trabalhos atuais. No entanto, é importante frisar que tal paradigma não está relacionado apenas a essa conjuntura, mas à própria divisão social do trabalho. Tal argumento se relaciona com o fato de que a Teoria Geral do Direito do Trabalho tem resguardado, historicamente, relações assalariadas, com base no paradigma do emprego, que tem como foco sujeitos de direitos majoritariamente homens e majoritariamente brancos . Esse é um dos pontos que pretendemos abordar com maior profundidade mais à frente, a partir da perspectiva feminista da reprodução social, a fim de enfatizar as contradições do princípio protetivo da Teoria Geral do Direito do Trabalho.

Entendemos que o princípio protetivo não incluiu as mulheres enquanto sujeitos de direito. Tal fato deu-se como um reflexo da contradição do mercado, que não reconheceu valor, por meio do assalariamento, do trabalho reprodutivo por elas prestado. Nesse sentido, podemos entender que o momento em que a mulher alcançou o status de sujeito de direito está muito mais ligado à maternidade, quando o sujeito de direito tutelado é o nascituro (MOLITOR, 2018, p. 91). Interessante ainda é notar que tal proteção abarcou apenas as mulheres grávidas que entraram no mercado formal de trabalho, mas aquelas que permaneceram no âmbito doméstico não remunerado da reprodução não tiveram nenhum direito garantido neste sentido.

Por isso, a crítica à Teoria Geral do Direito do Trabalho, como já expusemos, é uma crítica do próprio caráter positivista da teoria geral do direito. No entanto, para entender a materialidade que subjaz o direito, é necessário analisar as relações sociais que ele reflete. Nesse sentido, o artigo não faz outra coisa senão demonstrar que as contradições da Teoria Geral do Direito se relacionam com os paradoxos da própria economia política. A crítica da economia política, trazida por Karl Marx e que será melhor abordada no item 3 deste artigo, passa, portanto, por uma releitura a partir das evidências de gênero expostas pelas feministas da reprodução social. O próximo item, no entanto, se atentará a demonstrar a importância de colocar tal discussão nos termos de uma crítica feminista à Teoria Geral do Direito do Trabalho.

2. Gênero enquanto categoria de análise histórica na constituição da Teoria Geral do Direito do Trabalho

Neste item, pretendemos realizar uma breve introdução ao pensamento feminista que situa a importância da questão de gênero para uma interpretação da realidade social, isto é, que visa entender a relação entre mulheres e capitalismo. Em primeiro lugar, buscamos demonstrar como o gênero é uma categoria de análise histórica relevante no campo do Direito do Trabalho, pois demonstra que as mulheres não foram consideradas como o sujeito com o qual este ramo do conhecimento tem dialogado historicamente.

Podemos dizer que as preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise histórica começaram a ser evidenciadas, sobretudo, a partir do século XX. Nesse sentido, é importante ressaltar que, no interior do marxismo, o conceito de gênero foi tratado, por muito tempo, como subproduto de estruturas econômicas mutantes, isto é, o gênero não possuía seu próprio estatuto de análise (SCOTT, 1995, p. 13). No entanto, é possível observar que, em conjuntos teóricos pré-existentes ao marco temporal supracitado, o gênero já fazia parte do vocabulário dos movimentos sociais.

É importante ressaltarmos que a própria história é responsável pela produção sobre a diferença social, uma vez que nenhuma narrativa é neutra de valores e de interesses (SCOTT, 1995, p. 13). Por isso, mesmo a história que apenas relata fatos em que homens estiveram envolvidos constrói, no presente, o gênero. Nesse sentido, discutir a intersecção entre gênero e Direito do Trabalho é também demonstrar como a realidade vivenciada por mulheres esteve apartada da discussão e da construção de toda teoria geral do direito.

Dessa forma, é fácil entender porque as primeiras ondas do movimento feminista foram caracterizadas a partir de uma série de lutas por inclusão política das mulheres. Destacamos, por exemplo, as lutas pelo sufrágio, para que lhes fosse concedida a extensão dos direitos que a Revolução Francesa prometia a todos os homens e que o pensamento liberal atribui a alguns deles.
Mesmo que o feminismo que emerge na segunda metade do século XX, tenha começado a formar uma teoria política feminista e uma revisão crítica dos pressupostos do pensamento político ocidental, é possível observar que, até hoje, as funções de legitimação de muitos desses movimentos ainda têm se apoiado no discurso dos direitos liberais. Inclusive, como menciona Brown (2000, p.220), nas últimas três décadas, muitos movimentos sociais têm realizado uma transposição do âmbito de atuação das ruas em direção aos tribunais .

Conforme aponta Spivak (1993, p. 45-46), ao se tratar do processo de reconhecimento de grupos desprovidos de direitos, o liberalismo e outras formas “emancipatórias” modernas ainda são vistas como “aquelas que não podemos não querer”. E, diante das precárias condições de existência das mulheres em um mundo ordenado pela construção e exploração da diferença sexual como subordinação, certamente os direitos liberais aparecem como aquilo que não podemos não querer.
No entanto, para a compreensão dos limites impostos pelo discurso dos direitos liberais, isto é, os limites da própria concepção positivista do direito, além de abordar a relação entre experiências masculinas e femininas pretéritas, é necessário analisar a ligação entre a história do passado e as práticas históricas atuais (SCOTT,1995, p.5).
Desse modo, alguns questionamentos surgem: Por que e desde quando as mulheres são invisíveis como sujeitos históricos, quando sabemos que elas participaram dos grandes e pequenos eventos da história humana? A partir de que momento elas são reconhecidas enquanto sujeito de direitos para o capitalismo? É a exploração dessas perguntas que fará surgir uma história que apresentará novos horizontes a velhas questões e as redefinirá em novos termos.

3. O feminismo da reprodução social e a acumulação primitiva do capital

Alguns movimentos feministas de esquerda, sobretudo da década de 1970, tiveram um papel histórico ao evidenciar a existência de um trabalho realizado, majoritariamente pelas mulheres, no âmbito doméstico, e que era invisibilizado socialmente. Elegemos o feminismo da reprodução social, pois acreditamos que ele traz elementos ainda pouco debatidos, que pretendemos abordar mais detalhadamente ao longo deste item.er assim entendido ao analisarmos as obras de feministas marxistas que reivindicam uma compreensão unitária quanto à relação entre patriarcado e capitalismo. Isto é, compartilham o entendimento de que as relações de gênero, raça e classe, no capitalismo, são todas relações de produção e que cada uma delas, por mais que representem sistemas próprios, quando juntas constituem uma totalidade, porque se determinam mutuamente umas às outras.

É nesse sentido que o ponto de partida proposto pelas feministas da reprodução social encontra-se na interpretação dos conceitos de trabalho produtivo e de acumulação primitiva. Buscam, portanto, uma redefinição da forma como tais categorias foram definidas por Marx, em sua teoria do valor trabalho, a partir da crítica da economia política que este direcionou à escola clássica inglesa de economia, especialmente Adam Smith .

De forma bastante sucinta e simplificada, para Marx, é produtivo o trabalho assalariado que produz mais-valia e improdutivo aquele que não produz mais-valia. A mais-valia, ou mais-valor, seria a parte do valor da força de trabalho despendida por um determinado trabalhador na produção que não é remunerada pelo patrão e que se caracteriza como valor excedente para o dono do negócio. Esse ponto, no entanto, não possui convergência nem mesmo entre as feministas marxistas abordadas neste estudo .

Com relação ao conceito de “acumulação primitiva”, ele foi introduzido por Marx (no final do tomo I de O capital) para descrever a reestruturação socioeconômica realizada pela classe dominante europeia em resposta à crise de acumulação feudal. Segundo Marx, a ideia de acumulação primitiva está relacionada ao fato de que o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho e que a separação dos trabalhadores dos meios de produção é a verdadeira fonte da riqueza capitalista.

No entanto, apenas a expropriação das terras comunais, por meio dos cercamentos, e a separação dos camponeses de seus meios de produção, na transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, não é capaz de responder ao conceito de acumulação primitiva.
Nesse sentido, o próprio Marx identifica no colonialismo uma das respostas para esta questão, ao tratar da “descoberta de ouro e prata na América, o extermínio, a escravidão e o sepultamento da população nativa nas minas, a conquista e a pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em uma reserva para a caça comercial de peles negra” (MARX, 2006, t.I, p; 939). No entanto, apenas o colonialismo tampouco é capaz de dar conta de todas as transformações introduzidas pelo modo de produção capitalista na reprodução da força de trabalho.

Dessa forma, Federici (2017a, p.121) aponta as limitações da concepção de acumulação primitiva em Marx, a fim de visibilizar o papel essencial que a grande caça às bruxas dos séculos XVI e XVII, cumpriu, na Europa e nas colônias, para a expulsão do campesinato das terras anteriormente comunais. Para a autora, a acumulação primitiva se consistiu tanto na acumulação da força de trabalho morto, na forma de bens saqueados, como também de trabalho vivo, por meio de seres humanos à disposição para sua exploração (FEDERICI, 2017, p. 121).

Portanto, situar o gênero como categoria de análise histórica no contexto da transição do feudalismo para o capitalismo é fundamental para entender quais foram as mudanças ocorridas na posição social das mulheres naquele período. Tais mudanças dizem respeito às consequências que a privatização das terras comunais, o aumento dos preços dos alimentos e, sobretudo, as novas formas de divisão da força de trabalho trouxeram na vida das mulheres.
A privatização das terras ocorreu, na Europa, por meio dos cercamentos, que consistiam em literalmente ocupar e delimitar as terras coletivas como marca de propriedade privada e exclusiva do terreno, o que representou o triunfo da propriedade individual e da ocupação isolada. Mas as mulheres se viram prejudicadas não apenas pelos cercamentos, mas pelo que ele representou: o fim da econômica de subsistência predominante na Europa pré-capitalista .

No novo regime monetário, apenas a produção para o mercado foi determinada como geradora de valor, ao passo que a reprodução deixou de ter valor econômico e até mesmo de ser considerada como um trabalho. Dessa forma, por terem sido confinadas ao trabalho reprodutivo no exato momento em que esse trabalho estava absolutamente desvalorizado, as mulheres tiveram maiores dificuldades para se sustentar e ter autonomia econômica .

Foi justamente a separação entre esferas produtiva e reprodutiva que tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como instrumento para a acumulação do trabalho não remunerado. A nova dependência das relações monetárias, a separação entre trabalhadores e meios de subsistência e a divisão sexual do trabalho significou também que o salário real poderia ser rebaixado, ao mesmo tempo em que os preços dos alimentos subiram.
O cercamento de terras também foi acompanhado por um cercamento social, isto é, pelo processo no qual a reprodução dos trabalhadores passou da comunidade para a família, do espaço público para o privado (FEDERICI, 2017, p. 162). Por outro lado, para além da fome que assolou a Europa nos anos que sucederam a privatização das terras comunais, a crise populacional dos séculos XVI e XVII também foi um fator decisivo na transformação da reprodução e do crescimento populacional em assuntos de Estado e em políticas públicas que visavam controlar a função reprodutiva das mulheres.

Não é à toa que, ao mesmo tempo em que se enfatizava a centralidade do trabalho na vida econômica e os índices populacionais decresciam, os antigos crimes de bruxaria tenham substituídos nos códigos legais europeus por duras sanções contra as mulheres consideradas culpadas por crimes reprodutivos, entre eles o aborto – mesmo que espontâneo – e o infanticídio. Esse controle sobre o corpo feminino é o mesmo que impulsionou a caça às bruxas, que demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa (FEDERICI, 2017a, p.174).

Nesse sentido, ao partirmos de uma perspectiva de gênero, entendemos que a criminalização da classe trabalhadora também se estendeu à criminalização do controle das mulheres sobre o próprio corpo. Afinal, o corpo feminino foi transformado em instrumento para a expansão da força de trabalho, de forma que a recusa das mulheres à reprodução – biológica e social – também pode ser entendida como parte da luta de classes.

Enquanto a resposta para a crise populacional europeia foi à sujeição das mulheres à reprodução, na América, onde a população nativa foi praticamente toda dizimada, a resposta foi a introdução do tráfico negreiro, que também proveu uma imensa quantidade de mão de obra à classe dominante europeia. Pode-se dizer que, em sua época, o sistema de plantation foi essencial na formação da divisão internacional do trabalho. Ele não apenas financiou a Revolução Industrial, como também prefigurou o uso atual da mão de obra migrante como forma de reduzir os custos de trabalho mundialmente.
Se traduzirmos as lições do passado para o presente, percebemos que de tempos em tempos tem ocorrido a reaparição da caça às bruxas em várias partes do mundo. Isso significa que existem novos processos de “acumulação primitiva”, por meio da persistente privatização de terras e de outros bens comuns, gerando o empobrecimento massivo e aprofundando as desigualdades regionais, raciais e entre homens e mulheres.

Podemos dizer até mesmo que o processo de acumulação do capital é um processo permanente, sem o qual o modo de produção capitalista não consegue se reproduzir e se manter em funcionamento. A partir dessas constatações acerca do processo de acumulação primitiva do capital e de sua necessidade pela acumulação do trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres, intentaremos, no próximo item, demonstrar como as Campanhas pelo salário doméstico atuaram, especialmente nos EUA, e quais eram suas principais reivindicações.

4.Reprodução social e lutas feministas: breves comentários sobre as Campanhas pelo salário doméstico

Conforme abordamos no item anterior, a expropriação de terras redefiniu a posição social das mulheres e confinou a esfera da reprodução social ao âmbito privado. Dessa forma, pode-se dizer que, com o processo de acumulação primitiva do capital, houve uma desintegração da família camponesa patriarcal como unidade produtiva (ARRUZZA, 2015, p. 45). Nesse sentido, foi dada uma nova importância à família como instituição que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho.
Nesse sentido, cabe destacar o papel desempenhado pelas lutas feministas em busca da visibilização do trabalho reprodutivo não remunerado realizado pelas mulheres dentro do âmbito familiar. O movimento das Campanhas pelo Salário Doméstico [Wages for Housework] talvez tenha sido o exemplo mais conhecido e representativo desta reivindicação por remuneração do trabalho doméstico realizado no lar.
No entanto, a demanda pela remuneração do trabalho reprodutivo realizado no lar se expressou de diferentes formas ao longo da história. Ainda no final do século XIX, as mulheres que apoiavam a ideia de um salário pelo trabalho doméstico, por exemplo, eram, em sua maioria, mulheres de classe média que aceitavam a existência da divisão sexual do trabalho. Elas não viam problemas em reforçar a existência de uma esfera de atividade apenas de mulheres e exigiam a modernização do trabalho doméstico nos moldes do trabalho industrial (FEDERICI, 2017b, p. 12).
Todavia, é importante contextualizar que o movimento Wages for Housework foi fruto da mesma revolta contra a supremacia masculina e contra a vida doméstica que abriu caminho para o movimento feminista dos anos 1970. Apesar disso, o movimento trouxe uma estratégia diferente daquela tomada pela maioria do movimento nesta época, que havia abandonado o trabalho reprodutivo como um terreno de luta, concentrando seus esforços em ganhar espaço nas ocupações dominadas pelos homens e nas reivindicações por salários iguais.
A origem das Campanhas pelo salário doméstico, em 1972, já demonstra seu caráter internacional, uma vez que surgiram a partir de um encontro de mulheres, negras e brancas, de diversas partes do mundo, em Padova, Itália. Na ocasião, surgiu o chamado Coletivo Feminista Internacional, que lançou as campanhas pelo salário doméstico nas cidades respectivas: Padova, Milão, Turim, Londres, Detroit, Nova York, Los Angeles, San Francisco, Chicago, Philadelphia, Tulsa e Cleveland.
O contexto político no qual surgiram envolvia uma reinterpretação de Marx pelas lentes do operaismo italiano, do programa da Liga de Trabalhadores Negros Revolucionários (League of Revolutionary Black Workers) em Detroit, assim como das lições da luta anticolonial e antiapartheid nos EUA, o que levou as campanhas pelo salário doméstico a buscar um feminismo de classe.
Do operaismo italiano, as campanhas herdaram a ideia de que condições justas de trabalho, incluindo o salário, são a chave para o reconhecimento do trabalho realizado pelas mulheres. No entanto, não abriam mão do entendimento de que, no capitalismo, todo trabalhador é manipulado e explorado e que o salário dá impressão de um negócio justo, mas esconde todo o trabalho não remunerado que resulta no lucro.

Do programa da Liga de Trabalhadores Negros Revolucionários em Detroit, as Campanhas herdaram os princípios do nacionalismo negro e do marxismo-leninismo, a fim de articular as preocupações específicas dos trabalhadores negros através da ação política. A Liga reuniu uma série de diferentes movimentos que estavam crescendo rapidamente em toda a indústria automobilística e outros setores industriais nos quais os trabalhadores negros estavam concentrados, em Detroit, no final dos anos 60 e início dos anos 70.
Da luta anticolonial e anti-apartheid nos EUA, as Campanhas herdaram a luta contra as políticas segregacionistas implementadas pelo Estado estadunidense. Tal realidade de segregação racial sempre existiu, mesmo após o fim da escravidão durante a Guerra Civil Americana (1863). No entanto, ela se tornou institucionalizada nas décadas posteriores ao conflito, especialmente tendo seu ápice com as Leis de Jim Crow, que vigoraram entre 1876 e 1965 naquele país.
Nesse contexto, as Campanhas não eram uma demanda pontual para as feministas, mas sim uma perspectiva política que possuía implicações revolucionárias. Isso porque o simples fato de exigirem um salário para o trabalho doméstico já significava a recusa desse trabalho como uma expressão da natureza feminina, destruindo as expectativas que a sociedade tem sobre as mulheres, de não assalariadas dentro de casa.

Nesse sentido, seria errôneo comparar a luta das mulheres por um salário doméstico com a luta dos homens por aumento salarial, porque, ao lutar por aumento salarial, o trabalhador desafia seu papel social, mas permanece dentro dele. E quando as mulheres lutavam pelo salário doméstico, lutavam contra seu papel social – por isso também a campanha se chamava Wages against housework – e não para entrar na lógica das relações capitalistas, porque, afinal, as mulheres nunca estiveram fora dela (FEDERICI, 2012, p. 19).

Então, para as feministas engajadas nas Wages for Housework, lutar por salários para o trabalho doméstico era a perspectiva mais radical que elas acreditam adotar porque embora pudessem exigir creches, igualdade salarial, lavanderias gratuitas, nunca alcançariam uma mudança real se não atacassem diretamente a raiz dos papéis femininos. Daí a importância em estabelecer o trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres sem remuneração como trabalho produtivo .

Para isso, a autora elucida o conceito de reprodução social trazido por Marx.

Um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda história (…) [é] que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de “fazer a história”. Mas, para viver, é necessário, antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos (MARX; ENGELS. 2007, p. 33).

Dalla Costa (2009, p.23) foi quem propôs, primeiramente, a tese segundo a qual o trabalho doméstico não remunerado e realizado pelas mulheres no interior de seus lares não só reduzia os custos de mão-de-obra necessária para a produção capitalista, como também produziam mais-valia. A autora ressalta três aspectos de seu argumento: (i) que o trabalho doméstico não remunerado, tido como improdutivo e atribuído à mulher na configuração da divisão social do trabalho, permite a libertação do homem para o processo direto de produção (“trabalho produtivo”), permitindo, portanto, a reprodução da força de trabalho; (ii) a mulher se torna produtiva para a organização capitalista, pois atua como ponto de equilíbrio e de segurança para as tensões sociais causadas pelo capital; (iii) no núcleo familiar, a mulher é responsável pela reprodução da força de trabalho, ao disciplinar as crianças, que serão os operários de amanhã, e o próprio marido, que, em sua época, era o único provedor material do núcleo familiar e que não poderia se recusar como força de trabalho .

Acreditamos que, atualmente, as teorias tratadas pelas feministas da reprodução social devem ser interpretadas e reformuladas a partir de uma realidade em que cada vez mais as mulheres têm ocupado espaço no mercado formal de trabalho, ao mesmo tempo em que não deixaram de se responsabilizar pelo trabalho reprodutivo.

Nesse sentido, da mesma forma com que houve uma depreciação da força de trabalho com a desvalorização do trabalho reprodutivo, na transição do feudalismo para o capitalismo, atualmente a entrada massiva de mulheres no mercado formal também garante uma diminuição de salários, pois aumenta a força de trabalho excedente. Por outro lado, quando a mão de obra está ficando escassa, o Estado, atuando à favor dos interesses da reprodução do modo de produção capitalista, busca estratégias para incentivar as mulheres a terem mais filhos .

Portanto, é evidente que as teóricas da reprodução social reformularam o conceito de trabalho produtivo, ao englobar o trabalho de reprodução social realizado pelas mulheres, da mesma forma com que questionaram o salário enquanto equivalente da força de trabalho. As feministas engajadas no Wages for Housework demonstraram que a esfera da reprodução da vida ainda tem sido uma preocupação majoritariamente das mulheres. E, conforme aponta Dalla Costa (2009), o desafio para o movimento de mulheres tem sido justamente o de encontrar formas de luta que, ao mesmo tempo que liberem as mulheres de casa, também evitem uma dupla escravidão e previnam outro grau de controle capitalista e arregimentação pelo assalariamento.

Considerações finais

Atualmente, temos vivenciado a expansão do trabalho reprodutivo em novos conceitos, como o de “economia do trabalho caseiro” (de Richard Gordon) e, mais conhecidamente, o de “trabalho imaterial” (Antonio Negri e Michael Hardt). Ao contrário de tais expressões evidenciarem o fim da divisão sexual do trabalho ou da centralidade da análise de gênero, elas denotam que o trabalho está sendo redefinido ao mesmo tempo como estritamente feminino e como feminizado, seja executado por homens ou mulheres.

Diante do exposto, observamos que a principal conquista do feminismo marxista da reprodução social foi a de ampliar a categoria “trabalho” para acomodar aquilo que (algumas) mulheres faziam, mesmo quando a relação assalariada estava subordinada a uma visão mais restrita de trabalho.
Nesse sentido, a partir das lutas concretas das Campanhas pelo salário doméstico e do conhecimento das feministas da reprodução social, evidenciamos, concretamente, a exclusão e a invisibilidade das mulheres e do trabalho reprodutivo por elas realizado na Teoria Geral do Direito do Trabalho. Por sua vez, quem explica as razões para esta exclusão e invisibilidade são as teorias críticas do Direito, a qual denunciam, dentre outras coisas, a redução do objeto da ciência jurídica à norma estatal posta.

É importante ressaltar que as feministas da reprodução social estavam reivindicando algo que não poderia ser obtido sem ao mesmo tempo exigir uma transformação na natureza daquilo pelo qual estavam lutando . Dessa forma, em meio ao debate paradoxal entre gênero e a própria Teoria Geral do Direito do Trabalho, percebe-se que as estratégias de luta feminista apontam a necessidade de uma emancipação das mulheres frente a realidades sociais contraditórias. Nesse sentido, rupturas feministas com a visão dogmática do Direito são necessárias para uma mudança mais ampla, pois se o Direito, enquanto fenômeno social, pode ser ferramenta de mudança social, seja esta limitada ou não, sua correta apreensão é essencial para a sua instrumentalização. Ao mesmo tempo, a inserção do debate de gênero nesta esfera pode contribuir para a construção de instrumentos mais eficazes de luta para o movimento feminista, possibilitando, apesar das limitações, a emancipação de muitas mulheres em suas vidas concretas e cotidianas.

Ao longo do trabalho, percebemos que a compreensão positivista legalista do Direito, com seu paradigma político e ideológico liberal, serve para a manutenção do modo de produção capitalista, ao supor relações de troca de mercadorias ditas equivalentes entre duas classes que não podem se “igualar”. Se a classe trabalhadora se “igualar” com a classe dominante, o capitalismo entraria em colapso. Da mesma forma, historicamente, se o trabalho realizado pelas mulheres de forma não remunerada no interior de seus lares fosse remunerado, o capitalismo não existiria.
As mudanças históricas – que tiveram um auge no século XIX com a criação da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens. A divisão sexual do trabalho que se intensificou aí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres. Dessa forma, a separação efetuada entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de trabalho não remunerado (FEDERICI, 2017, p. 145-146).

Nesse sentido, coube entender ao longo do texto que as Campanhas pela remuneração do trabalho doméstico podem ser utilizadas de forma tática, mas elas sozinhas não seriam capazes de acabar com a exploração do capital sobre o trabalho. Isso porque o processo de acumulação do capital conta com outras variáveis, como por exemplo, a divisão internacional do trabalho, o impacto das desigualdades raciais. De forma que seria necessária a destruição de todo o mecanismo que possibilita a extração da mais-valia para que houvesse uma real superação do modelo capitalista.
Dessa forma, como o paradoxo exposto neste trabalho pode ganhar riqueza política quando ele é entendido como algo que afirma a impossibilidade de a Teoria Geral do Direito do Trabalho hegemônica oferecer respostas para o contexto presente? A resposta para esta questão reside na compreensão dos limites da dogmática jurídica em responder à questão social, em especial, ao entendermos as particularidades históricas da organização social do trabalho e as consequências para a desvalorização das mulheres.

Entendemos que a consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias da totalidade das relações capitalistas, coloniais e patriarcais. Por isso, observamos que as mulheres apenas passaram a conquistar algum direito a partir do momento que elas se veem como sujeitos históricos da própria transformação.

Diante do exposto ao longo deste artigo, compreendemos que a narrativa inicial que constituiu a Teoria Geral do Direito do Trabalho não abarca uma categoria de trabalho que tenha ligação com o trabalho reprodutivo, realizado historicamente pelas mulheres dentro do lar. Portanto, no atual contexto de expansão das características que organizavam o trabalho reprodutivo para outras formas de trabalho, as chances em se pensar uma reformulação da Teoria Geral do Direito do Trabalho deve perpassar, necessariamente, pela questão da divisão sexual do trabalho, utilizando gênero como categoria central de análise histórica. Isso pressupõe também pensar a Teoria Geral do Direito do Trabalho como uma ciência do social e não de uma técnica focada em normas positivadas.
De todo modo, embora entendamos que a disputa pela normatividade no interior do Estado ainda seja um instrumento importante para adquirir conquistas e seja importante discutir o seu conteúdo, a experiência da luta das mulheres nas Campanhas pelo salário doméstico demonstra que é justamente no terreno das lutas sociais pela superação do capitalismo patriarcal e colonial que se encontra o caminho para a efetiva emancipação das mulheres.

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A PORTARIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO QUE TENTOU
MODIFICAR O CONCEITO DE TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL

THE NORMATIVE ACT OF THE MINISTRY OF LABOR THAT TRIED TO
MODIFY THE CONCEPT OF CONTEMPORARY SLAVE LABOR IN BRAZIL

Shirley Silveira Andrade

Resumo: O objetivo central desse trabalho é analisar a portaria 1129/2017 do Ministério do Trabalho que tentou modificar a política de combate do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica através de doutrinas, legislações e jurisprudências. Concluímos que o Brasil tem sido conhecido em diversos países e organizações pela violação de direitos, mas também pela luta de setores sociais contra a indignidade. A articulação de movimentos sociais, setores do poder público e trabalhadores tem lutado contra a exploração do trabalho. Essas relações possuem níveis de exploração, mas todas são submetidas a desigualdade. O Trabalho Escravo Contemporâneo é um nível de exploração inaceitável. A publicação dessa portaria foi mais um instrumento com o objetivo de enfraquecimento das lutas sociais.

Palavras-Chave: TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO, LUTAS SOCIAIS, MINISTÉRIO DO TRABALHO

Abstract: The main objective of this study is to analyze the normative act of the Ministry of Labor’s number 1129/2017, which attempted to modify the combat policy of Contemporary Slave Labor in Brazil. The methodology used was the bibliographical research through doctrines, laws and jurisprudence. We conclude that Brazil has been known in several countries and organizations for the violation of rights, but also for the struggle of social sectors against the indignity. The articulation of social movements, sectors of the public power and workers has fought against the exploitation of work. These relationships have levels of exploitation, but all are subject to inequality. Contemporary Slave Labor is an unacceptable level of exploitation. The publication of this rule was another instrument aimed at weakening social struggles.

Keywords: CONTEMPORARY SLAVE WORK, SOCIAL STRUGGLES, MINISTRY OF LABOR

Introdução
Na segunda semana de outubro de 2017, os telejornais passaram a noticiar intensamente a publicação de portaria emitida pelo ex-Ministro do Trabalho, Ronaldo de Oliveira, anunciando novas regras sobre as fiscalizações do Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) no Brasil. Houve muitas reações dos trabalhadores, da mídia e das organizações sociais que combatem esse mal. A Associação Nacional de Medicina do Trabalho, por exemplo, lançou nota de repúdio defendendo que “a Portaria Nº 1.129 é um insulto a todos os brasileiros que defendem o trabalho digno e decente” (NOTA DE REPÚDIO, 2017).

Por que essa portaria causou tantas reações? O ex- Ministro a defendia pelo fato de que essas novas regras tornariam mais claras as normas do combate ao TEC. Então por que houve tantas declarações e denúncias a respeito? Esse é o objetivo central desse texto. Refletir sobre o fato de que o conteúdo desse ato normativo ter tido reações negativas por parte de vários setores sociais. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e documental onde levantamos artigos e livros, legislações e decisões judiciais para análise do debate.

Para compreensão dessa temática, percebemos a necessidade do leitor entender, primeiramente, a discussão sobre o conceito de TEC. Ao longo dos anos, tem sido forte um entendimento mais amplo do conceito. A portaria reduz essa amplitude, por isso, vamos começar o texto discutindo essa divergência conceitual, que não se resume a um debate teórico, mas ideológico. Para tanto, traremos tanto autores como o debate do STF a respeito. Depois disso, iremos analisar o conteúdo da portaria, e como ela demonstra a escolha de um dos conceitos. Também refletiremos a respeito da decisão da ministra Rosa Weber a res
Esse caminho, ajudou-nos a concluir que o debate conceitual tem consequências, pois as políticas públicas são guiadas por conceitos legais, a modificação de um entendimento conceitual pode modificar a eficiência de uma política pública.

1. Afinal, o que é Trabalho Escravo Contemporâneo?

O labor escravo é um fenômeno que ocorre tradicionalmente, mas ele foi internacionalmente questionado pelo governo de grandes nações, principalmente pela Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX. Em 1815, na Declaração relativa à abolição universal do tráfico de escravos, ficou professada a repugnância a esta violência, fundada nos princípios de humanidade e da moral universal. Vários governos se comprometeram a aboli-lo, mas não teve um efeito real, já que muitas nações, como a brasileira, não respeitaram o tratado. Todavia, já se demonstrava uma preocupação nesse sentido, por motivos que não iremos discutir aqui.
Com o surgimento da Liga das Nações, adveio uma regulamentação muito importante, que trouxe um conceito marcante sobre a escravidão, a Convenção Sobre a Escravatura, de 1926. Ela definia escravidão como o estado ou a condição do indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade. Ou seja, o ser humano seria tratado como coisa, uma propriedade de outra pessoa. Em 1930, elaborou-se a Convenção 29, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que guiou, por muitas décadas, o conceito de TEC no Brasil, pois o Código Penal Brasileiro (CPB) era impreciso. O termo utilizado é trabalho forçado. Esse tipo de trabalho é proibido, mas permitido, com propósitos públicos, em países que estavam no período de transição para o trabalho livre e em situações excepcionais. Nesta legislação, trabalho forçado é todo aquele submetido a qualquer sanção ou coação e que a pessoa não tenha se oferecido espontaneamente.

Muitos pesquisadores consideram o conceito da convenção 29 como amplo, afinal ele englobaria não só a situação da escravidão moderna, mas também a de TEC. O problema é que essa legislação não leva em consideração vários aspectos da liberdade. O debate contemporâneo do Trabalho Escravo não é somente a liberdade de locomoção, mas é o fato de o trabalhador não ser tratado com dignidade. Portanto, mais completa é a definição da Liga das Nações, pois ela debate a liberdade de forma mais ampla, não somente a de locomoção, mas de pensar, sentir, decidir, de ser humano. É forte na convenção da OIT a relação entre Trabalho Escravo e liberdade de locomoção. O próprio nome de trabalho forçado, trabalho obrigatório, indica isso.

a. O que prevê a legislação brasileira

A concepção contida na OIT foi muito importante para estabelecer limites à exploração humana, mas a definição de trabalho forçado da Convenção limitou o TEC. O conceito previsto na legislação brasileira é muito mais abrangente. Em 2003, o Código Penal Brasileiro (CPB) passou a conceituar, de forma mais clara, o delito de redução a condições análogas às de escravo (aqui usamos o termo Trabalho Escravo Contemporâneo). A nova redação do artigo 149 , do CPB, fechou o tipo penal e passou a exigir quatro situações principais em que se caracteriza o delito: trabalhos forçados; a jornada exaustiva; restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em razão de dívida contraída pelo empregado; e condições degradantes de trabalho. Além das formas equiparadas: retenção no local de trabalho, por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, de manutenção de vigilância ostensiva ou retenção de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador. Discutamos as possibilidades.

Um primeiro ponto para essa violação ser caracterizada é que deve haver uma relação de trabalho entre os sujeitos envolvidos, marcada pela violação grave de direitos. O objetivo desse delito não seria apenas a proteção da liberdade de locomoção, mas o impedimento do estado de sujeição de um sujeito a outro. É quando a vítima perde a possibilidade de decidir seus desígnios. É a discussão da liberdade de uma forma muito mais ampla do que a previsão da convenção 29 da OIT. Por isso, o delito tem duas principais dimensões para ser conceituado: a perda da liberdade de locomoção quando se trabalha por dívidas, ameaçado, forçado; e a perda da dignidade, no caso da jornada exaustiva e do trabalho degradante. Passemos a analisar cada uma dessas situações.

O TEC por dívidas é um clássico na realidade brasileira. Ele se caracteriza por uma redução da possibilidade de decisão que um ser humano possui, submetido em uma relação de trabalho, pelo fato de estar sob uma dívida. Há vários relatos de trabalhadores que ficam presos às fazendas, pois fazem dívidas para pagar seu deslocamento, e como nem sempre conseguem saldá-las, passam a trabalhar em função delas. Essa já foi a modalidade de TEC mais utilizada no norte brasileiro.
O trabalho forçado foi o guia, por muitos anos, do conceito de TEC. Vimos como a convenção 29 da OIT limitou a discussão da escravidão a essa modalidade, levando em consideração a vontade do trabalhador para a caracterização do ilícito. Quando o artigo 2º da Convenção estabelece como trabalho forçado todo aquele para o qual o trabalhador que não se apresentou espontaneamente, cogita-se a análise da vontade do trabalhador em participar da relação laboral escravocrata. Não apenas estabeleceu um conceito limitado, como ainda possibilitou a existência desse tipo de trabalho, não sendo, em todos os casos, propriamente um ilícito.

Silva (2012) defende que mesmo a Convenção tendo permitido o trabalho forçado no período transitório, ela previa que o trabalhador deveria ser tratado com dignidade, mediante regras, previamente estabelecidas, de como esse trabalho poderia ser aplicado, como disciplina de salário, jornada, repouso e proibição de descontos salariais. Mas acreditamos que o fato de ainda possibilitar esse tipo de trabalho já é atentar contra a dignidade. A própria OIT já reconhece hoje que há formas sutis de coerção. Muitas vítimas são enganadas e aceitam o trabalho por iniciativa própria, para depois descobrirem que não são livres de abandonar o trabalho (SILVA, 2012).
Defendemos que o conceito de Britto Filho (2011, p. 245) delimita o trabalho forçado conforme a dignidade humana. Para o autor, trabalho forçado é “o trabalho que for prestado por trabalhador a tomador de serviços, em caráter obrigatório, quando não decorrer da livre vontade do primeiro ou quando a obrigatoriedade for consequência, por qualquer circunstância, da anulação de sua vontade”. Portanto, liga o diálogo do trabalho forçado à ideia da falta de liberdade de escolha, de agir sob coação, mas não limita o debate somente à espontaneidade do trabalhador, discute-o a partir da anulação de consciência. Assim, se o trabalhador é enganado ou é colocado em situações que precisa aceitar essa relação de trabalho, caracteriza-se o ilícito.

Outra situação onde se enquadra a relação de trabalho como escrava é no caso da jornada exaustiva. Ele é caracterizada por Brito Filho como:

Aquela imposta a alguém por outrem em relação de trabalho, além dos limites legais extraordinários estabelecidos na legislação de regência, e/ou capaz de causar prejuízos à saúde física e mental do trabalhador, decorrente de uma situação de sujeição que se estabelece entre ambos, de maneira forçada ou por circunstâncias que anulem a vontade do primeiro. (BRITO FILHO, 2010, p. 70)
Dessas quatro situações, aquela que mais dificuldade há na conceituação é a do trabalho degradante, porque sua definição é menos objetiva que a das outras. Além disso, há uma limitação de compreensão, por parte da Sociedade da sua caracterização como Trabalho Escravo. Há uma visão, por um grupo do Poder Judiciário brasileiro, de que no TEC não está a se discutir dignidade, mas apenas liberdade de locomoção dos sujeitos, o que simboliza uma visão do TEC a partir da convenção 29 da OIT, uma compreensão limitada dessa violência como aquela realizada sob grilhões.

O TEC é uma relação laboral que atinge a dignidade do ser humano, é o trabalho humilhante, seja por falta de pagamento, coerção, ou por um ambiente de trabalho não saudável. Ou seja, todas as situações previstas no artigo 149 são degradantes e atingem a dignidade, mas há nelas uma especificidade que falta nesta modalidade. O trabalho degradante é aquele que desrespeita, de forma grave, a dignidade da pessoa humana, porque fere direitos básicos constitucionais.
Sarlet (2012, p. 71) chama a atenção para o fato de que para se conseguir um conceito de dignidade é necessário ter como ponto de partida o fato de a pessoa concreta ter sua dignidade atingida quando reduzida a objeto, sempre que venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos. Não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana quando faltar: respeito à vida, à integridade física e moral do ser humano; condições mínimas de existência com dignidade; limitação de poder; reconhecimento ou segurança da liberdade, da igualdade e das autonomias.

Dignidade é a qualidade intrínseca e distintiva, reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2012, p. 73).

O autor defende que há indissociabilidade entre Dignidade e Direitos Fundamentais tais como: direito à vida, à propriedade, aos direitos sociais, a uma jornada de trabalho razoável, ao repouso. Por isso, a discussão conceitual da modalidade condições degradantes necessita debater a situação do ambiente de trabalho. O trabalho degradante nos faz refletir sobre uma nova concepção de liberdade: em um ambiente onde inexistem condições mínimas de trabalho, como alojamento, banheiros, alimentação, transporte, o trabalhador não vai efetivamente exercer sua liberdade, que não é apenas de ir e vir, mas é de pensar e de escolher.

Como ele vai poder fazer escolhas, se não tem condições mínimas de sobrevivência? De que forma vai exercer suas condições dignas de ser humano, em um ambiente que o trata pior do que um animal? Por isso, há vários autores, juízes, auditores fiscais, movimentos sociais que comungam com a ideia de que trabalho degradante é aquele em que a degradação das condições sanitárias e de higiene lesiona o axioma da dignidade da pessoa humana (PRUDENTE, 2006, p. 64).
Esse debate conceitual é feito neste artigo não somente porque ele é muito importante para a análise do objeto, mas porque a definição de TEC é claramente uma disputa política. Atualmente, a grande maioria das situações de Trabalho Escravo encontradas no Brasil é o de trabalho degradante. Isso tem afetado de tal forma a classe dominante que há uma articulação no Congresso Nacional para que este conceito legal seja modificado. Estamos passando por um debate importante de reforma do Código Penal Brasileiro, cuja parte especial que prevê os tipos de crime está em vigor no Brasil desde a década de 1940. Um dos debates desse projeto é a mudança do artigo 149. O relator dessa reforma na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, do Senado Federal, Vital do Rêgo, acatou emendas que modificam o conceito. O novo texto exclui as modalidades jornada exaustiva e trabalho degradante.

Na prática, Sakamoto (2015) defende que isso dificulta o resgate de imigrantes estrangeiros em oficinas de costura, como bolivianos e paraguaios, ou de imigrantes brasileiros na construção civil ou no corte de cana. As condições degradantes são um elemento que vem sendo constatado com frequência por auditores fiscais e procuradores do trabalho.

2 A visão sobre TEC dos Ministros do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal (STF) é a última instância julgadora de nosso país, tendo como principal função o controle do cumprimento da Constituição Federal Brasileira (CFB). Mas como é um tribunal, tanto recebe os recursos quanto julga processos criminais de autoridades elencadas por esta Constituição, como é o caso de Deputados e Senadores federais. Ele é composto por 11 Ministros, desse total, duas são Magistradas. O julgamento de seus processos ocorre de forma coletiva.

As decisões do STF são resultado de um processo coletivo de debate, de estudo e articulação política, sendo o papel do relator muito importante, pois é ele quem apresenta a problemática, embora ela seja decidida pela votação dos Ministros e Ministras. Portanto, as decisões do STF se fundamentam no processo de relação estrutural que ocorre na sociedade, é também resultado da correlação de forças.
O tema Trabalho Escravo é antigo nessa corte, mas para importância deste trabalho, vamos demonstrar o debate entre os Magistrados, a partir de uma decisão de 2006. Ela foi um marco, e seu objeto principal era discutir qual a instância responsável em julgar o crime do artigo 149, se a Justiça Federal ou Estadual. Dentro dessa discussão, o voto dos Ministros e Ministras envolveu o conceito de TEC. Foi um caso no qual o Ministério Público Federal (MPF) denunciou dois fazendeiros, no Pará, por este delito. O Procurador da República recorreu até ao STF, já que não estava contente com a decisão da instância anterior.

O relator desse processo foi o Ministro Joaquim Barbosa, que iniciou o diálogo enfocando que quando se discute o crime de Trabalho Escravo não se limita ao direito de locomoção dos trabalhadores, mas o debate é sobre condições de dignidade humana: “o homem, compreendido na sua mais ampla acepção, abarcando aspectos atinentes a sua liberdade, autodeterminação e dignidade”, demonstrando que, a partir da Constituição Federal, de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser obrigatório e está no rol dos princípios fundamentais formadores de toda a ordem jurídica nacional (BRASIL, 2006).

Essa linha de argumentação foi aceita por vários dos Ministros presentes na sessão plenária, que ocorreu no dia 03/03/2005, mas um deles, Gilmar Mendes, pediu vistas do processo para fundamentar um voto, que já ensaiava sua postura a respeito do TEC. Em 30 de novembro de 2006, o respectivo Ministro levou até o plenário suas ideias para discussão. Ele não nega a dignidade, os valores sociais do trabalho e nem que o direito penal deve protegê-los, mas ressalva que o artigo 149 tem cláusula indeterminada, como por exemplo, condições degradantes de trabalho, e ela poderia ser utilizada indevidamente para permitir um alargamento exacerbado da lei. Ou seja, para ele, o conceito de TEC não está claro no artigo 149, e exemplifica o fato de que
Tem sido comum que as autoridades relatem como sendo caso de trabalho escravo a existência de trabalhadores em instalações inadequadas, sem levar em conta que o próprio empregador utiliza-se das mesmas instalações e que estas são na maioria das vezes o retrato da própria realidade interiorana do Brasil (BRASIL, 2006).

Essa linha de argumento foi aperfeiçoada por Gilmar Mendes, em decisões mais recentes que trazem ao debate o conceito de TEC. Sua posição é importante, porque ela tem completa relação com o que defende a classe dos proprietários de terra, classe que compra a força de trabalho. Esse Ministro tem sido sua voz no STF.

Em 07 de outubro de 2010, foi colocada pela Ministra Ellen Gracie, relatora de outro processo, a acusação, em face do então Senador Federal do Tocantins, João Ribeiro, cuja denúncia do Procurador-Geral da República, afirmou, baseado em relatório dos auditores fiscais, que no período de janeiro e fevereiro de 2004, nas dependências no município de Piçarra, Pará, na fazenda ouro verde, foram encontrados 35 trabalhadores dormindo em ranchos cobertos de palhas, abertos na lateral, feitos sob brejos, provocando mau cheiro e umidade excessiva, sem instalações sanitárias e sem acesso a água potável; com um sistema de escravidão por dívidas, cobrando alimentação e equipamentos de trabalho, uma jornada de até doze horas por dia. Além de ter sido encontrado um trabalhador, menor de 18 anos, realizando o roço da juquira (BRASIL, 2012a).
A decisão do Plenário era simplesmente se a acusação deveria prosseguir ou ser arquivada. Não se tratava ainda de uma decisão final a respeito da culpa do Senador, pois a fase do processo ainda era inicial, mas o Ministro Gilmar Mendes pediu vistas ao processo, que ficou em sua sala por quase dois anos, para votar pelo arquivamento. É importante observarmos seus argumentos, porque é nesse voto que ele trata com profundidade os motivos técnicos e ideológicos de sua decisão. O seu argumento principal é que nessa situação não houve crime.

Ele revela que as condições de vida de regiões muito pobres do Brasil se repetem nas condições de trabalho, e não é razoável qualificá-las de criminosas por causa disso:

Se se está falando de desbravamento de regiões inóspitas, como a borda da Amazônia, é óbvio que os primeiros trabalhos a serem praticados não poderão contar com solos cimentados ou com galpões construídos para o abrigo dos primeiros trabalhadores. Considerar degradante o ato de dormir em rede, a oferta do trabalho em local onde inexiste água encanada e saneamento básico onde o alojamento é feito de palha é ignorar a realidade do campo brasileiro (BRASIL, 2012a).

Por que esse desbravamento tem sempre que ser feito com a exploração do trabalhador? Por que não há uma preocupação de antes de desbravar criar uma infraestrutura que acolha o trabalhador? Sempre a dificuldade de explorar uma região tem que ser com base na humilhação, da degradação de quem vende sua força de trabalho?

Em outro processo, O Ministro Gilmar Mendes reafirmou a importância do agronegócio em face da fiscalização dos auditores fiscais. Ele afirmou que analisar a distância do beliche nos alojamentos dos trabalhadores é não enxergar que as pessoas estão desbravando áreas. “Se o Brasil hoje tem esse perfil, se o Brasil hoje tem essa folga é graças ao agribusiness, é graças a esse agronegócio, é graças à ousadia dessa gente que vai para longe” (BRASIL, 2012b).

O Ministro Gilmar Mendes expressa, em seu voto, não ser a favor dessas condições de trabalho, mas que o direito penal não tem como função ser um instrumento de política pública no combate à miséria que assola o país, ou às desigualdades regionais e sociais. O artigo 149 do CPB tem como objetivo erradicar o trabalho escravo e não a pobreza, a miséria, as desigualdades regionais e sociais, que devem ser combatidas por meio de políticas públicas sérias, e afirmou que prender empresários rurais ou proprietários de terra não vai resolver o problema da miséria e da pobreza.
Quando se reporta aos motivos técnicos de seu voto, o Ministro é claro em defender que o crime do artigo 149 se limita à liberdade de locomoção do trabalhador. Segundo o Ministro, se for dada à vítima a liberdade de: abandonar a jornada exaustiva, fixada em meio a uma relação de trabalho ou emprego; rejeitar o trabalho, abandonando o local de trabalho; e de recusar-se às condições degradantes que são impostas, não haverá crime de TEC. Se o crime é reduzir alguém à condição análoga à de escravo, a pessoa deveria ser submetida às condições parecidas com as do escravo, por isso a necessidade de haver a restrição de liberdade de ir e vir para caracterizar o crime.

O artigo 149 traz situações que não têm relação direta com a liberdade de locomoção, como condições degradantes de trabalho, pois há situações que caracterizam o delito mesmo havendo liberdade de locomoção porque o debate sobre a escravidão não é somente esse, é do ser humano ser tratado como coisa, quando não é proporcionado um mínimo de dignidade. Ele está sendo tratado pior do que os animais da fazenda. É este o elemento protegido, não é a liberdade de se mover somente, mas é a dignidade no trabalho.

É nesse sentindo que a Ministra Rosa Weber, em outro processo, discutiu a caracterização do TEC. Ela aceitou a acusação em face dos réus João José Pereira de Lyra e Antônio José Pereira de Lyra, em denúncia referente ao crime previsto no artigo 149, em fazenda de Alagoas. Defende que a escravidão moderna é mais sutil do que a do século XIX, quando o cerceamento de liberdade pode ocorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como objeto e não como pessoa humana. O que pode ser feito, não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno (BRASIL, 2012b). Carlos Britto defendeu que não é o indivíduo trabalhador propriamente que está sendo protegido nesse delito, e sim o indivíduo gente, o ser humano. O objetivo foi transbordar o campo propriamente trabalhista para alcançar o indivíduo enquanto gente (BRASIL, 2012b).

A discussão do crime de TEC é um debate que tem uma forte ligação com a luta de classes. No momento da conceituação desse crime vem à tona a ideia que as classes têm da relação junto à propriedade privada. Importante transcrevermos um trecho das informações, prestadas pelo próprio João Ribeiro, no processo administrativo perante o Ministério Público Federal, utilizado como um dos argumentos da defesa no processo no STF:

Tirar um adolescente criado em uma bela mansão no lago sul, em Brasília, e levá-lo a trabalhar no interior do Pará, fazendo-o dormir em uma rede num rancho de palha sem parede, tomar banho de rio, beber água corrente no córrego (ai vem a urinar e defecar no mato), sem dúvida é expô-lo a uma situação degradante e à condição análoga a de escravo. Se, contudo, o mesmo adolescente fizer tudo isso espontaneamente, movido pela proposta de salário que irá receber, a conclusão é outra. Porém a primeira hipótese, caso seja protagonizada por um sertanejo, paraense ou por um índio não é condição degradante, podendo porém caracterizar trabalho escravo, mas por outro motivo (BRASIL, 2012a grifo nosso).

A visão de classe do Senador João Ribeiro é cristalina. É a visão que ele tem do lugar que ocupa no processo de produção. Mas, mesmo que os Magistrados não pertençam à classe trabalhadora, a situação é tão gritante que muitos não concordam com visões discriminatórias, e esse foi um dos motivos pelos quais alguns Ministros votaram pela continuação do processo. Isso foi tão forte que foi levantado, pela Ministra Carmen Lúcia, como um dos motivos para aceitar a acusação. Na verdade, a opinião do João Ribeiro chocou vários Ministros e Ministras. Foi também motivo levantado por Carlos Britto. Ele disse que essa parte transcrita na denúncia o impressionou, negativamente, contra o acusado. Observemos suas palavras.

O texto de lavra, do próprio acusado, revela, sem sombra de dúvida, concepção nitidamente discriminatória e admissão explícita de que, dependendo de sua posição social – sertanejo, paraense ou índio – desaparece o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, desaparecendo a situação degradante, mesmo que caracterizados os fatos como articulados nessa denúncia, então só sendo possível essa acusação pública se a vítima fosse um adolescente criado em uma bela mansão no lago sul em Brasília (BRASIL, 2012a).

O desfecho desse julgamento foi a acusação formal, do Senador João Ribeiro, pelo crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, como prefere denominar o CPB. Todavia, seu processo criminal foi extinto pelo seu falecimento. Mas, apesar da fatalidade, não há como negar a importância desse processo. Ele demarcou a visão conceitual do TEC previsto na legislação criminal e a aceitação da investigação por parte dos Ministros do SFT, nesse caso. Votaram pela acusação as Ministras Ellen Gracie e Carmem Lúcia e os Ministros Carlos Brito, Joaquim Barbosa e Luiz Fux. Indeferiram a acusação os Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Marco Aurélio.

3. A portaria que casou tantas reações

Através desse debate pudemos perceber como o conceito de TEC está em meio a disputas políticas. Há divergências entre autores e alguns dos ministros do STF, mas vem se consolidando nos tribunais o conceito mais amplo. Em recente dissertação de mestrado (SEVERO, 2017), foi feito levantamento de todos os Tribunais Regionais Federais do país e apenas o TRF-5 opta por um conceito mais restrito, um conceito que se limita a analisar se houve impedimento de liberdade de locomoção no trabalho. Os demais têm acatado o conceito mais amplo que avalia se a dignidade do trabalhador foi ferida de maneira grave no ambiente laboral.

Essa disputa conceitual tem sido importante, pois em que lado em que se esteja há relação direta com a política de combate ao TEC. A visão conceitual mais reduzida, limita a política pública. Como veremos no debate a frente, a portaria 1129/2017 foi uma opção que limitou o conceito de TEC ao direito de ir e vir no trabalho. Mas foi mais além, pois trouxe condições para a fiscalização que obstaculizou a política de combate.

3.1 As novas condições das fiscalizações ao TEC

A portaria 1129/2017 do Ministério do Trabalho estabelecia regras para que o trabalhador vítima de TEC pudesse receber o seguro-desemprego, como ainda, normas para a inclusão do nome de proprietários de empresas no Cadastro nacional de empregadores (apelidada de lista suja). Mas, expressamente, em sua ementa, também estabelecia como objetivo dispor sobre o conceito de Trabalho Escravo no Brasil, portanto, com efeitos para a aplicação de políticas pelo Ministério do Trabalho. Ela foi tanto importante para que o trabalhador que foi resgatado da escravidão pudesse receber seu seguro-desemprego, como ainda, tinha consequências importantes para os empregadores. A inclusão na chamada lista suja traz efeitos importantes, como o impedimento de ter acesso a créditos bancários.

Começamos a encontrar problemas nessa portaria, já no seu fundamento. Quando levantamos os considerandos desse ato normativo, percebemos que ele se justifica em parca legislação internacional, e nem chega a citar o Código Penal Brasileiro. Que hoje é a norma referência tanto na área civil, trabalhista e criminal do conceito dessa violação.

No ponto central que estamos dialogando desde o início, que é o conceito de TEC, o artigo 1º dessa portaria traz modificações significativas a esse respeito. Esse artigo elenca 04 modalidades de TEC, e estabelece que esse será o conceito para efeitos de concessão de seguro-desemprego e a inclusão na lista suja. Essas quatro modalidades seriam trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e trabalho análogo ao de escravo.
Um primeiro ponto que já podemos destacar é uma condição que não está prevista em legislação nem na jurisprudência mais recente : a exigência de que para que a relação laboral se enquadre em uma das quatro modalidades de trabalho escravo, o trabalhador não pode ter decidido espontaneamente a se submeter a uma delas. O TEC somente ocorreria quando o trabalhador fosse coagido, quando não se apresentasse espontaneamente, quando o trabalhador fosse obrigado a estar diante de uma dessas situações. Como vimos, esse era um requisito antigo utilizado por alguns magistrados, influenciados pela Convenção 29 da OIT, mas que pela presença de vulnerabilidade do trabalhador, isso foi superado. Como exigir que o trabalhador escolha entre sobreviver e ser escravizado. Mesmo em uma situação que se sabe que os direitos básicos serão violados, o trabalho será aceito pela sua condição de vulnerabilidade. Esse é o instrumento utilizado por muitos empresários para conseguirem que os trabalhadores se submetam a condições inumanas de trabalho. É predominante o entendimento de que não se deve analisar a vontade do trabalhador nessas situações, apenas o comportamento do empregador.

Um segundo retorno a visões tradicionais e reducionistas foi a limitação do conceito de TEC. O inciso III do artigo primeiro da portaria é cristalino em dizer que para se caracterizar casos de fiscalização de TEC é necessário que a liberdade de locomoção do trabalhador esteja impedida, senão, não haverá ilícito. Portanto, o retorno a uma visão mais restrita do conceito de TEC. Esse entendimento ainda é reforçado em artigos mais a frente que estabelecem como o auditor fiscal deverá elaborar o relatório de fiscalização. O artigo 3º, IV assim estabelece.

IV – descrição detalhada da situação encontrada …:
a) existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel;
b) impedimento de deslocamento do trabalhador;
c) servidão por dívida;
d) existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador.(BRASIL, 2018)

Além do artigo 1º prevê as modalidades de TEC, sua relação com a liberdade de locomoção e ausência de espontaneidade por parte do trabalhador, o artigo terceiro determina que o auditor fiscal deve descrever de forma detalhada essa situação, reafirmando a ideia de Trabalho escravo com a de limitação ou impedimento da liberdade de locomoção. Conforme vimos discussões doutrinárias e jurisprudenciais, a visão que temos de liberdade hoje é muito mais ampla do que somente se locomover. A liberdade está no âmbito do poder de escolha, da dignidade, entendimento que vem se consolidando. Portanto, esse texto normativo foi de encontro a previsão legal, jurisprudencial, doutrinária e das políticas de combate que vem sendo implementadas e pelos quais o Brasil vem sendo elogiado.
Em análise de medida cautelar da ADPF 489, impetrada pelo partido Rede Sustentabilidade que questiona a portaria que estamos discutindo, a Ministra Rosa Weber concedeu liminar suspendendo-a e defendendo um conceito de TEC mais amplo.

A “escravidão moderna” é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. O ato de privar alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, é repudiado pela ordem constitucional, quer se faça mediante coação, quer pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo. (BRASIL, 2017)

As situações que dificultam as fiscalizações seguem com a criação de medidas administrativas, que não haviam anteriormente. O fiscal do trabalho é um servidor público concursado integrante ao Ministério do Trabalho. Portanto, um servidor com autonomia para realizar fiscalizações e autuações. Todavia, o artigo 4º§3º, II da portaria estabelece que a autuação do auditor fiscal terá como requisito fundamental para validade do processo administrativo, que apurará as violações do patrão, a abertura de boletim de ocorrência da autoridade que participou da operação de fiscalização. Em muitos lugares, a polícia não tem mais realizado as fiscalizações, pois há problemas orçamentários. Há muitas inspeções que duram dias, quando realizadas em interiores longínquos, assim há a necessidade desses profissionais terem diárias para realização dos trabalhos. O que tem sido difícil para a polícia conseguir. O Ministro do Trabalho condicionou a fiscalização ao boletim de ocorrência e à presença de autoridade policial. A portaria é clara ao determinar que sem esse documento, o processo para avaliação da aplicação das sanções fica parado aguardando a juntada.

Completando as dificuldades, a portaria ainda estabelece que a publicação do nome do patrão como escravocrata deverá ser decidida pelo Ministro do Trabalho. Antes, havia um processo analisado por uma comissão. Um ato administrativo dessa magnitude, que passa por contraditório e ampla defesa ficará condicionado a um ato de um sujeito apenas. O que faria desacreditar a própria credibilidade da lista suja. A concentração de poder enseja desconfianças, por isso, a ministra Rosa Weber ao se pronunciar sobre a portaria assim caracterizou essa exigência:

Nessa linha de argumentação, a exigência de ato prévio do Ministro do Trabalho para inclusão do empregador na “lista suja” do trabalho escravo, bem como para a divulgação dessa lista, como prescrevem o art.3º, § 3º, e o art. 4º, § 1º, da Portaria nº 1.129/2017, são medidas administrativas que limitam e enfraquecem as ações de fiscalização, ao contrário de promoverem a diligência necessária para a adequada e efetiva fiscalização. Ainda constituem medidas que condicionam a eficácia de uma decisão administrativa a uma vontade individual de Ministro de Estado, que tem notório viés político. Lógica que inverte a postura técnica pela postura política em matéria de conteúdo técnico jurídico. (BRASIL, 2017)

É por essas razões que o requerente na ADPF inicia o pedido de medida cautelar com a seguinte declaração:

Com o inconfessável propósito de inviabilizar uma das mais importantes políticas públicas adotadas no Brasil para proteção e promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais: a política de combate ao trabalho escravo (BRASIL, 2017).

Conclusões

As relações laborais têm sido estudadas, analisadas e pensadas desde épocas distantes. Predominantemente, elas têm sido formadas e desenvolvidas pelo processo de exploração. Um modelo de sociedade tem conseguido se sobrepor, nos últimos anos, e isso tem determinado o conjunto de relações laborais. Portanto, detectamos o processo de exploração em todas as relações de trabalho dentro do capitalismo.

Quando analisamos o trabalho escravo, pelo fato de ser mais gritante, mais desumano e mais repugnante é que os setores da sociedade conseguem perceber o processo de exploração. Mas na verdade, o que ele revela é um nível de exploração que ultrapassa a aceitabilidade do humano. O que temos na sociedade capitalista, são níveis de exploração, o trabalho escravo está em uma escala muito alta. Combatê-lo, estudá-lo é muito importante pelo fato de que essa referência de exploração é fundamental para pensarmos os diversos processos que somos submetidos no ambiente laboral. As maneiras como a exploração se diversificou. Não há mais que se olhar a escravidão como no período colonial brasileiro, porque o processo de exploração se reinventa, traveste-se de outas formas de dominar. E de forma sábia, capta a subjetividade do trabalhador para que ele aceite a sua condição e se submeta a uma relação de trabalho vil.

A portaria 1129/2017 foi mais um desses processos, que tentou mascarar relações escravocratas como legais, morais, aceitáveis. Nesse momento histórico que o Brasil vive, houve espaço para que o presidente da República Michel Temer, líder de um golpe, fosse conivente com uma correlação de forças que deixe o trabalhador ainda mais frágil, aprovando a publicação dessa portaria. Mas pela força que as políticas de combate ao TEC têm no Brasil, advinda da luta dos movimentos sociais, já ocasionando resultado da primeira condenação do Brasil na corte interamericana de direitos humanos, no caso Brasil Verde, a portaria foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal. E apesar de não termos restabelecidas as políticas que conseguimos pela luta, podemos comemorar mais essa vitória.

Referências Bibliográficas

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BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inquérito 3412/AL. Ministério Público Federal denúncia em face de João José Pereira de Lyra e Antônio José Pereira de Lyra. Relator Marco Aurélio. Julgamento em 29.03.2012b.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de descumprimento de preceito fundamental 489 / Medida Cautelar- DF. Rede Sustentabilidade impetra em face de Ministro do Estado do Trabalho. Relatora Ministra Rosa Weber. Julgamento em 23.10.2017.

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NEOLIBERALISMO E DIREITO: O TRABALHO INTERMITENTE NA REFORMA TRABALHISTA DE 2017

NEOLIBERALISM AND LAW: INTERMITTENT WORK ON THE 2017 LABOR REFORM

Ana Letícia Domingues Jacinto
Arthur Bastos Rodrigues

Resumo: No presente artigo, partimos de compreensões acerca da formação do capitalismo brasileiro, aqui categorizado como capitalismo de via colonial, e que, ante sua gênese específica, apresenta peculiaridades. Essas peculiaridades se expressam na consolidação do movimento global neoliberal e também no desmantelamento das previsões legais de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, como parte das medidas impostas pelo neoliberalismo, que ganha fôlego no Brasil a partir da década de 90 do século XX. Tendo em vista tais perspectivas, lançamos o olhar à questão da reforma trabalhista, aprovada pela lei 13.467 de 2017, especificamente na figura do trabalho intermitente que, sendo uma modalidade inovadora trazida pela reforma, tende a aprofundar a superexploração da classe trabalhadora brasileira, institucionalizando o trabalho precarizado.

Palavras-chave: Capitalismo de via colonial. Neoliberalismo. Reforma trabalhista. Trabalho intermitente. Precarização.

Abstract: In this article, we start with the understanding of the formation of Brazilian capitalism, here categorized as colonial capitalism, and which, given its specific genesis, presents peculiarities. These peculiarities are expressed in the consolidation of the global neoliberal movement and also in the dismantling of legal provisions to protect workers, as part of the measures imposed by neoliberalism, which has gained momentum in Brazil since the 1990s. In view of these perspectives, we are looking at the issue of labor reform, approved by law 13467 of 2017, specifically in the form of intermittent work which, being an innovative modality brought about by the reform, tends to deepen the overexploitation of the Brazilian working class, institutionalizing the precarious work.
Key-words: Colonial capitalism. Neoliberalism. Labor reform. Intermittent work. Precariousness.

1. Introdução

No presente artigo, buscamos compreender a figura do trabalho intermitente que aparece como uma “novidade” no ordenamento jurídico brasileiro, inserido pela lei 13.467 de 2017, a chamada “Reforma Trabalhista”, que trouxe muitas alterações para o ramo justrabalhista e para as relações de emprego.

As diversas mudanças trazidas pela reforma trabalhista de 2017, representam o mais recente ataque aos trabalhadores no cenário neoliberal brasileiro, uma vez que a tendência desde 1970 passa a ser a lógica flexibilizada e desregulamentada de proteções sociais (Castro, 2015; Antunes, 2006).
Elegemos no presente artigo, a figura do trabalho intermitente na tentativa de relacionar a exploração da classe trabalhadora brasileira no neoliberalismo, com a especificidade da formação do capitalismo brasileiro e seus processos históricos de desenvolvimento.

A análise do objeto tem como método a busca de tendências e generalizações que podem ser alcançadas a partir da leitura dos dispositivos incluídos pela reforma na CLT, com o foco nos que tratam do contrato intermitente. Relacionando a leitura da norma com suas possiblidades funcionais concretas, a partir da sociologia do trabalho e da especificidade do direito social-trabalhista na via-colonial.

A escolha da figura do trabalho intermitente se deve tanto pelo aspecto ideológico de “novidade”, quanto por acreditarmos que uma análise pormenorizada deste pode apontar as funções atuais cumpridas pelo direito além de indicar como o Brasil se coloca no capital mundializado em tempos de crise e reestruturação. De fato, o contrato intermitente mostra a face mais nítida da atual morfologia do trabalho ao igualar ao trabalhador autônomo gerando uma formalidade precarizada ou uma “formalidade informal”.

A categoria “capitalismo de via colonial”, teorizada por J. Chasin, nos permitirá compreender, na primeira parte da análise, as especificidades da formação do modo de produção capitalista no Brasil, caracterizado, entre outros, pela superexploração da classe trabalhadora como marca fundamental. Além disso, seria também elemento caracterizador do capitalismo de via colonial, a sua própria consolidação nos moldes neoliberais da mundialização do capital, como resultado de seu processo histórico de desenvolvimento.

Estes entendimentos serão úteis para que se siga na investigação da condição da classe trabalhadora no Brasil após a Reforma Trabalhista de 2017, compreendendo o fenômeno jurídico a partir de suas condições de possibilidades de existência, tendo, em especial, neste trabalho, a figura do trabalho intermitente presente na Lei 13.467/2017 e também na Medida Provisória (MP) 808 do executivo nacional no que trazem regulações sobre essa figura típica, como objeto de análise.

2. Capitalismo de Via Colonial e Neoliberalismo

A compreensão do atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira exige uma investigação sobre seu processo de gênese histórica, levando-se em conta a particularidade histórica do capitalismo brasileiro desde sua gênese. A sua atual conjuntura política e econômica de roupagem neoliberal na perspectiva da mundialização do capital em seu braço financeiro hipertrofiado tem relação com a conformação histórica do desenvolvimento particular do capitalismo brasileiro incrustado nas teias do desenvolvimento mundial do capital.

Com elementos ressaltados por Chasin, em um diálogo constante com o pensamento social brasileiro de talhe marxista, o que nos interessa é a condição de atrofia e incompletude das classes burguesas no Brasil, que além de se encastelar no Estado para ter seus interesses caudatários atendidos, de forma vertiginosa, apoia-se na superexploração da classe trabalhadora A atrofia e a incompletude da burguesia industrial brasileira, portanto tem como sua característica e condição de existência a constante ausência de pactos sociais efetivos, a retirada de direitos e proteções sociais, quando existem, altos níveis de desemprego e trabalhos informais.

Parte-se da categorização de José Chasin (1999) sobre a via colonial para o capitalismo industrial brasileiro, a partir da gênese histórica no início do século XX que, passa a se consolidar, tendo, por isso, o seu fim, enquanto formação subordinada aos interesses internacionais, na expansão mundial do capital, em crise, com superdimensionamento do capital financeiro (Chasin, 2000; Contrim, 2000) e predomínio ideológico do neoliberalismo como prática econômica (Anderson, 1995 e Harvey, 2008).

Isso porque, as reformas trabalhistas contemporâneas não são uma novidade na história do país e é necessário compreender o processo mais amplo de crise e reestruturação produtiva do capital em nível mundial, que o Brasil se envolve numa lógica combinada e desigual.

De qualquer modo, todas as experiências neoliberais compartilham traços universais em todos os países, mas também possuem suas formas específicas e concretas em cada um. José Chasin, dentro dos debates sobre as vias de objetivação para o capitalismo iniciado com os marxistas clássicos (via clássica, via francesa, via prussiana, via russa…) diferencia a formação do Brasil dos modelos de atraso da via-prussiana, e realizando na década de 70 uma “síntese corretora do pensamento social brasileiro de talhe marxista” (PAÇO CUNHA, 2017), particulariza a via-colonial em relação às outras vias para o capitalismo É uma via particular por ser um processo histórico hiper-tardio.
O capitalismo de via colonial diferencia-se assim das outras vias para o capitalismo – via clássica e prussiana – como um “particular contrastante do qual se avizinha o caso brasileiro, também diverso dos casos clássicos.” (CHASIN, 1999, p. 627) – por ser um processo histórico hiper-tardio, incompleto, retardatário, não-autocentrado, lento, inorgânico e atrófico (ASSUNÇÃO, 2004, p. 9), sustentado por uma burguesia caudatária, que não cumpre sua função na industrialização e independência do país e se nutre da superexploração das classes trabalhadoras, excluindo-as dos processos políticos.
Desta forma, “A superexploração da força de trabalho também é uma característica do país e tem raízes firmemente plantadas na história nacional.” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 11). Chasin aponta que todos os chamados “milagres econômicos” brasileiros – que sempre foram centrados nos bens de consumo duráveis, capitaneado por empresas monopólicas majoritariamente estrangeiras, e complementado pelo “esforço exportador”, basicamente de produtos agrários – tinha como pilar fundamental o rebaixamento salarial: a superexploração do trabalho. A forma retardatária, subordinada e conciliada com o historicamente velho de evolver a industrialização brasileira mostra a manutenção, devidamente modernizada e “desenvolvida”, de sua fase mais perversa – a miserabilidade das amplas massas trabalhadoras, que se põe, não como produto de uma lacuna “distributivista”, mas como sustentáculo da própria forma de desenvolvimento (Contrim, 2000).
O processo de consolidação do capitalismo de via colonial que se dá nos anos de 1930 e o seu caminhar posterior se coloca frente a alternativas que se efetivaram sempre como saídas conciliatórias com o passado colonial e com a subordinação econômica ao mercado estrangeiro.
Entretanto, claro, não sem contradições postas tanto pelas crises econômicas nacionais reféns da flutuação internacional, quanto das lutas dos trabalhadores. A ditadura bonapartista de 64 é uma resposta à mobilização popular democrática de forma a retirar quaisquer formas de turbulências à renovação do velho, que se caminha como transição durante o século XX no país, em conformidade com os movimentos expansionistas do capital internacional. A chamada redemocratização não trouxe transformações substanciais (CHASIN, 2000) e a década de 80 é a consolidação do processo de gênese da via-colonial, ou seja, o seu próprio acoplamento ao movimento de mundialização do capital. Postas alternativas de rompimento, que não se cumpriram, o desenvolvimento do capitalismo de via colonial de 1930 até as décadas de 80 e 90 significaram de fato a consolidação do seu “destino mais forte” que objetivamente se pôs inquebrantável com o golpe de 64 e o processo de retomada à autocracia, claramente evidenciado na funcionalidade efetiva do projeto neoliberal globalizante que a partir de então se torna hegemônico.

Segundo Contrim (2000), essa constituição do capitalismo brasileiro pela via colonial vai dando seus últimos passos em fins da década de 80, em conformidade, mais uma vez, com as alterações que se verificavam no plano internacional. No percurso da via colonial, longe de fatalismos na história, Chasin mostra a vinculação entre o acabamento da transição à autocracia, a chamada “redemocratização”, e do próprio processo de constituição do capitalismo no Brasil, desde os anos 30, indicando que, nesses seus passos finais, a burguesia brasileira abandona definitivamente qualquer ilusão ou aparência de autonomia que pudesse ter alimentado antes, para assumir plenamente, de sua condição subordinada, por isso o encerramento da via colonial.

De maneira que, se o golpe de 64 fora dado para barrar movimentos e propostas de mudança, a chamada redemocratização ao contrário, pôs na ordem do dia somente a modernização do arcaico, sua manutenção sob outra roupagem, adaptada às novas formas e necessidades do capital mundial. É justamente a reviravolta no panorama internacional pós 70 que marca e induz os momentos finais da via colonial. O neoliberalismo, seja enquanto prática efetiva do capital, seja enquanto ideologia, se confunde com este período em que a superprodução de capital aparece como superabundância de capital financeiro, que, em busca de espaço de reprodução, arrebenta os limites que o constrangem, para isto rompendo as barreiras comerciais e políticas que pudessem emperrá-lo. A desregulamentação e a restrição do papel econômico dos estados nacionais foram suas manifestações mais evidentes. É sob o influxo da mundialização do capital que a via colonial vive seu encerramento. A vitória de Collor em 89 significou de fato a vitória dos ideais profundos de 64. O encerramento da via colonial pela trilha de suas próprias determinações, e não pela ruptura com elas, deu-se, assim como todas as anteriores alterações significativas na vida nacional, por influxo, pelo alto e sob o domínio dos capitais subordinantes. (Contrim, 2000)

Considerando, já agora, o processo acelerado de mundialização do capital, e o novo fôlego então obtido pela proposta de integração subordinada, representada, na campanha sucessória, fundamentalmente por Collor, mas também, pelo PSDB, e recentemente PT e o PMDB, salta à vista que a tendência mais forte, determinada pela própria dinâmica da via colonial, era a efetivação da industrialização subordinada ao capital externo, o que implicava a “resolução” da questão agrária pela manutenção de sua estrutura básica latifundiária e a necessidade da intensificação da superexploração do trabalho, bem como as dificuldades assim postas de integralização da classe trabalhadora (Contrim, 2000).
Desta forma a superexploração e miserabilidade da classe trabalhadora é característica que se reafirma, na “modernização do arcaico”, com o projeto do golpe de 64 se realizando na redemocratização transada pelo alto. O neoliberalismo como ideologia e prática econômica desregulamenta as proteções sociais, intensifica a exploração da força de trabalho através do desemprego estrutural, da proliferação dos trabalhos temporários e de formas cada vez mais variadas de flexibilização, alterando significadamente a morfologia da classe trabalhadora (ANTUNES, 2006), mesmo em países em que a informalidade e a miserabilidades das massas que vivem do trabalho é própria do desenvolvimento histórico.

A integração mundial do capitalismo “inviabiliza qualquer encaminhamento de soluções no âmbito nacional”, gerando o influxo cada vez maior sob o “domínio dos movimentos dos capitais subordinantes” (CONTRIM, 2000). Em outras palavras, os rumos da exploração dos trabalhadores se acopla cada vez mais aos processos de crise e expansão do capital em suas formas cada vez mais ofensivas, atingindo objetivamente e subjetivamente o trabalhador. O processo de gênese da via colonial marcada pela superexploração dos trabalhadores, na égide de sua consolidação pós-80, com a atual ofensiva globalizante neoliberal, sem freios, como direitos, nem barreiras comerciais, avança mais facilmente sobre os trabalhadores brasileiros, cada vez mais desprotegidos, que nunca puderam contar com efetivos direitos sociais.
O neoliberalismo no Brasil que se inicia com Collor em 1989 na retomada pelo alto da autocracia burguesa se objetiva através dos programas neoliberais experimentados pelo mundo como na Europa.

No cenário europeu, a contenção dos gastos com bem-estar, reformas fiscais, entre outras políticas neoliberais passaram a ser mais fortemente implementadas, em 1979, com o eleição de Thatcher na Inglaterra e depois na eleição de governos neoliberais nos Estados Unidos e por toda a Europa no início da década de 1980 (ANDERSON, 1995). Para além das diferenças entre países, , o certo foi a hegemonia da ideologia neoliberal, que teve a Inglaterra como seu maior exemplo, como se ilustra:

O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado (ANDERSON, 1995, p. 11).

Em comum, a insurgência desses governos nos Estados Unidos e pela Europa, tinham os slogans trazidos por essa política, que pregavam que “as sociedades são sobretaxadas, super-regulamentadas e submetidas às múltiplas pressões de sindicatos, corporações egoístas e funcionários públicos” (LAVAL & DARDOT, 2016, p. 189). Assim, os defensores neoliberais se opuseram fortemente, dentre outros, à propriedade pública de empresas, à proteção social e também às regulamentações estatais destinados ao setor privado, principalmente em termos de direitos trabalhistas e organização coletiva, em oposição à políticas destinadas ao pleno emprego (LAVAL & DARDOT, 2016).

Na América Latina, Anderson (1995) informa que a primeira experiência neoliberal ocorreu no Chile, sob o governo de Pinochet que, servindo como parâmetro para as políticas implementadas na Inglaterra dez anos mais tarde, marcou seu governo pela “desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos” (ANDERSON, 1995, p. 18). Por oportuno, a ditadura chilena não se mostra contraditória ao ideário neoliberal, uma vez que:

A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse (ANDERSON, 1995, p. 19).

A partir de 1991, se verificou uma nova forte recessão, com o grande aumento da dívida pública dos países e endividamento das famílias e empresas e grande número de desempregados, no entanto, conforme trazido por Anderson (1995), nessa fase o neoliberalismo ao invés de atacado, foi inclusive reforçado, com a eleição de governos conservadores ao longo da Europa, demonstrando sua vitalidade e dinamismo.
Para Laval e Dardot (2016), a perpetuação do neoliberalismo revela a subordinação econômica a uma mudança das regras do capitalismo, agora subordinada a uma nova “racionalidade política e social articulada à globalização e à financeirização do capitalismo” (LAVAL & DARDOT, 2016, p. 190).
Os duros programas neoliberais que são hegemônicos ideologicamente com suas práticas de desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos e privatização, no Brasil, iniciam-se com o governo Collor retirando as barreiras alfandegárias em processos de desregulamentações estatais e de privatização de bens públicos. A desregulamentação do Estado, a partir de então, no ritmo da reprodução mundial com a financeirização do mercado, favorece a subordinação plena da economia brasileira industrial ao capital global. Com os governos do PSDB , PT e PMDB, nas suas especificidades próprias, o neoliberalismo se consolida cada vez mais ideologicamente como única saída para as crises e misérias advindas da reprodução social do capital, mas que de fato não são falhas, mas sustentáculos de seu desenvolvimento. A eliminação de barreiras alfandegárias e de tributos às remessas de lucros, as privatizações, a diminuição dos gastos públicos, as variadas formas de flexibilização dos direitos trabalhistas, aliados ao desemprego estrutural, são as velhas formas que se regeneram nas atuais mediações da sociedade brasileira cada vez menos autônoma.
O neoliberalismo nesse sentido atua também na subjetividade da classe trabalhadora. Sua reprodução através do desemprego crônico e estrutural, não mais cíclico, indica uma tendência forte à fragmentação e competição entre os trabalhadores, prejudicando sua identificação como ser social que vive do trabalho. O discurso que intensifica esta competição responsabiliza os trabalhadores pela empregabilidade, e em termos da via-colonial, nunca houve a ideologia do pleno emprego nem do Bem Estar Social. Assim, os processos de auto-alienação, justificando o auto-emprego e a precarização, com os atuais mecanismos de info-empregos, com o trabalho por aplicativos (“uberização da vida”), são mais agudos no Brasil e a classe trabalhadora se esvazia de compreensões coletivas e classistas de organização da vida.

A superexploração da classe trabalhadora se objetiva nas dimensões materiais e subjetivas. Há uma horizontalização ideológica no discurso para atingir a subjetividade do trabalhador, através das narrativas pós-modernas de empreendedorismo, “trabalhador-colaborador” ou “trabalhador-sócio”. Esse discurso ideológico distorce a realidade cada vez mais verticalizada em exploração, pois o empreendedorismo e a flexibilização da relação trabalhista indica de fato precarização, desemprego e concentração massiva de riquezas, com o consequente aumento da miséria, violência e desigualdade (CASTRO, 2013).

Desta forma, as reformas trabalhistas em curso atualmente atingem de forma estrutural, devido a sua substância (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015), a exploração do trabalho no Brasil. Sem barreiras, sejam as legais ou as de resistência dos trabalhadores, e com a gênese histórica da superexploração como elemento central da formação social brasileira, as reformas neoliberais, de recuo de direitos, são vertiginosas e generalizantes, com efeitos devastadores a curto prazo.

No momento atual de capital mundializado o Brasil, a partir da consolidação do neoliberalismo, assume de vez sua posição rebaixada de submissão caudatária, perde qualquer possiblidade de se colocar como entrave aos interesses do capital mundial. A burguesia nacional tem que atender cada vez mais os interesses internacionais, nutrindo-se do controle do Estado da superexploração e miserabilidade da classe trabalhadora . O neoliberalismo traz enquanto prática econômica e ideologia, as mediações políticas e jurídicas de enfraquecimento dos custos sociais protecionistas, abrindo o mercado interno, com superdimensionamento financeiro, privatizando os serviços públicos e criando diversas formas de precarização do mundo do trabalho, através de desregulamentações e flexibilizações. (Anderson, 1995).

Paço Cunha (2017), nesta esteira, tomando o direito como ideologia, com Lukács (2012) e Marx (2013), aponta que, se na via-clássica inglesa, a partir dos escritos de Marx (Cap. VIII, O Capital), a política exerceu primeiramente determinado protagonismo, e o direito aos poucos vai se tornando uma mediação mais forte de acionamento das engrenagens sociais existentes, na via colonial, ao contrário, tomando a gênese histórica no início do século XX e as tendências presentes já no governo Vargas, é possível enxergar que o direito, através dos direitos sociais, representado pela CLT, aparece de forma simultânea com a política.

Esta função ideológica dos direitos sociais no Brasil teria como sua razão de ser o papel de dirimir conflitos e amortecer a potencialidade das lutas sociais, que não tinham vazão na política. Pois, de fato, a política no país se mostra desde esse período, uma mediação cambiante e sem participação popular. É evidente que os direitos sociais-trabalhistas aparecem no momento em que há uma forma bonapartista de governo durante a ditadura de Vargas. Assim, se a política se mostrou uma ideologia vertical pelo caráter anti democrático, os direitos sociais-trabalhistas aparecem como um produto lubrificante de certa horizontalidade (Paço Cunha, 2017) que generaliza as condições para a consolidação das tendências mais fortes da via-colonial: a subordinação econômica e a superexploração da classe trabalhadora.

A compreensão do atual estágio do capitalismo mundializado após crises produtivas de 1970, em que a superprodução aparece como hipérbole do sistema financeiro, coloca as proteções sociais em questão em nível mundial. A reestruturação produtiva com a ideologia neoliberal exige novas condições de vida do trabalho que se torna cada vez mais flexível e desregulamentado (Antunes, 2006). Nas novas formas de trabalho o trabalhador é obrigado a se responsabilizar pelos riscos do empreendimento, tornando a seu custo social uma dívida própria e não da sociedade, de forma que a instabilidade se torne a tendência do desenvolvimento social.
Se o direito na gênese da via-clássica, com ajuda de Marx (2013, Cap. VIII), aparece como “freio racional” para o sistema descontrolado, através de direitos protetivos, no atual estágio, percebe-se o direito na sua função de “alavanca de exploração”. Ou seja, o atual processo de acumulação aponta o recuo de direitos protetivos – públicos -, e esse recuo exerce um papel protagonista no que está sendo engendrado na sociedade em sua totalidade.

3. A reforma trabalhista de 2017 e o trabalho intermitente

A Consolidação das Leis Trabalhistas, principal regulação social do trabalho no país, tem sua origem em 1943 no governo de Vargas, período em que o capitalismo brasileiro tem sua gênese e se torna mais acabado. Da mesma forma, as funções cumpridas pelo direito, enquanto mediação social, na via colonial também se mostram mais aparentes e com graus de protagonismo.
Apesar do diploma protecionista, que com a Lei 13.467/2017 é alterado em mais de 100 pontos, de fato a proteção legal nunca foi universal aos trabalhadores sendo que a média do trabalho informal no Brasil sempre beirou a casa dos 40% do mercado de trabalho e ainda mesmo com a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, os trabalhadores rurais e domésticos, ficaram excluídos da proteção social trabalhista por longas décadas.

Dessa incapacidade da CLT de atingir a totalidade dos trabalhadores, advém o caráter simbólico da CLT (CASTRO, 2015) que, no entanto, não deixa de ser uma proteção relevante que ora é atacada, paralelo à expansão de novas formas de flexibilização do trabalho como as formas de do trabalho, desde as formas mais recentes de teletrabalho e uberização, até o próprio desemprego estrutural.
Desta forma, a recente reforma trabalhista aprovada em 2017, Lei 13.467 de 2017, tende a precarizar fortemente as condições de trabalho. Em vista de suas alterações substanciais nas formas de remuneração, na extensão da jornada de trabalho, na flexibilização das formas de contratação, permitindo a terceirização ampla, o trabalho temporário e o intermitente, recua-se em relação à, já, pouca estabilidade presente na CLT, e abrem caminho para uma exploração aberta.
A reforma trabalhista de 2017 legitimou o trabalho intermitente, cujo conceito se encontra no art. 443 da CLT:

Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.(BRASIL, 2017).

O trabalho intermitente, arts. 443 e 452-A da “nova” CLT, caracteriza-se por autorizar uma jornada móvel variada e o trabalho variável, que autores (Cassar, 2017) chamam de “bico”, isto é, a “imprevisibilidade da prestação de serviços, ferindo princípios da segurança jurídica e da proteção ao trabalhador” (idem), que sequer pode prever quanto receberá ao fim do mês, pois valor depende dos dias contratados.
Nesse sentido, ao contrário do que a própria CLT define como empregador, é o próprio trabalhador intermitente que deve tomar para si os riscos inerentes ao empreendimento e também tendo o tempo à disposição para o serviço não computado como tempo efetivo de trabalho, fazendo “com que os trabalhadores fiquem 24 horas por conta da venda da força de trabalho, potencializando o estado de necessidade dos trabalhadores, os quais, assim, reificados, não teriam condições de estudar, de organizar sindicatos e de atuar politicamente” (MAIOR, 2017).
Demonstrativo da precarização é a possiblidade de que caso o trabalhador intermitente não seja chamado para trabalhar a quantidade suficiente de dias em um mês que possa lhe garantir um salário mínimo, cabe ao próprio trabalhador completar por sua conta o valor necessário para pagamento ao INSS do mês, visando a aposentadoria. O contrato intermitente abre brecha para que, legalmente, o trabalhador ganhe menos que um salário mínimo e que ainda tenha que arcar, neste caso, com o INSS.

O valor oferecido ao trabalhador intermitente não pode ser inferior ao valor do salário mínimo por hora, cerca de 4 reais e 25 centavos. Em relação à férias e 13º salários proporcionais as horas trabalhadas, é preciso calcular o valor do ‘avo trabalhado’ dividindo o salário mensal por 12. Esse resultado deve ser dividido por 30 para calcular o valor referente a um dia de trabalho. O que pode gerar valores ínfimos.

Cumpre ainda destacar que, a precarização institucionalmente prevista pelo trabalho intermitente é tão evidente que o pagamento das verbas é realizado no próprio dia da prestação de serviços, ao final do expediente, com o pagamento imediato da remuneração pelas horas de trabalho e reflexos proporcionais, inclusive férias.

Sobre este assunto, frisa-se que o § 9º, art. 452-A da CLT estabelece o direito do trabalhador em regime intermitente, de, após dozes meses de contrato, usufruir de um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços e que, conforme “a literalidade da lei que as férias podem ser gozadas sem pagamento da remuneração e do terço constitucional – em manifesto descumprimento do disposto no art. 7º, XVII, da Constituição” (GODINHO, 2017, p. 157).
Destaca-se também que, em termos legais, a Medida Provisória 808/2017, que fez parte do acordo político para aprovação da reforma trabalhista, também trouxe regulamentações sobre o trabalho intermitente. No entanto, findo o prazo para votação do diploma do executivo, as disposições da MP perderam a validade.

Uma das disposições da Medida Provisória quanto ao trabalho intermitente, excluía a multa a ser paga pelo trabalhador em caso de falta injustificada e estabelecia a possibilidade de reparação entabulado entre as partes. Uma vez que a MP perdeu validade, a multa volta a ser aplicada caso o trabalhador não se apresente no serviço que havia aceitado.
Ainda que se considere uma suposta liberdade de contratar e equilíbrio entre as partes, destruindo o principio da proteção inerente à justiça do trabalho, o contrato intermitente expressamente prevê um desequilíbrio contratual, uma vez que, “se o empregado aceita a proposta de trabalho e falta injustificadamente, pode o empregador lhe cobrar uma multa de 50%, mas não há obrigação correspondente para o empregador que oferece o emprego e após o aceite do empregado o retirar.” (COLGANO, 2017).

A Medida Provisória também estabelecia que até o final de 2020 “o empregado registrado por meio de contrato de trabalho por prazo indeterminado demitido não poderá prestar serviços para o mesmo empregador por meio de contrato de trabalho intermitente pelo prazo de dezoito meses, contado da data da demissão do empregado” (BRASIL, 2017), no entanto, com a queda da MP, essa quarentena deixará de existir.
Evidentemente, essa forma de trabalho rompe “com dois direitos e garantias justrabalhistas importantes, que são da estrutural central do Direito do Trabalho: a noção de duração do trabalho (e de jornada) e a noção de salário” (GODINHO, 2017, p. 154), uma vez que não há qualquer tipo de jornada mínima ou controle de jornada, além do que, nesta espécie de contrato, “o salário poderá existir, ocasionalmente, se e quando o trabalhador for convocado para o trabalho, urna vez que ele terá o seu pagamento devido na estrita medida desse trabalho ocasional (GODINHO, 2017, p. 155).
Com isso, a reforma trabalhista de 2017, cria o trabalhador institucionalmente precarizado, através de uma forma de subemprego, inclusive prevista e regulamentada pela Consolidação das Leis do Trabalho, cujo efeito principal é o de maximizar a precariedade do trabalho.
As indicações e tendências históricas evidenciam que a informalidade, os baixos salários e, mais recentemente, as ocupações atípicas e precárias, como respostas às crises produtivas, especulativas e de queda da taxa de lucros, pela natureza e profundidade destas crises e contradições, materializam-se através dos setores mais fragilizados socialmente.
Em outras palavras, buscando recuperar taxas econômicas anteriores às crises, a precarização do trabalho como saída é rapidamente direcionada para o trabalhador mais precarizado.

Aliás, é a tendência do mercado de trabalho brasileiro a expansão dos postos de trabalho precarizados, conforme trazido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEA):

Houve queda expressiva do trabalho precário até 2013, com leve tendência de aumento a partir de então, corroborada pelos dados da Pnad 2014, conforme se pode depreender do gráfico abaixo. O percentual de trabalhadores inseridos em formas precárias de ocupação apresenta a mesma estrutura hierárquica que os estudos clássicos sobre estratificação social com base na renda apresentam: a mulher negra é a base do sistema remuneratório, sujeito preferencial das piores ocupações, convergência da tríplice opressão de gênero, raça e classe. Nada menos que 39,1% das mulheres negras ocupadas estão inseridas em relações precárias de trabalho, seguida pelos homens negros (31,6%), mulheres brancas (27,0%) e homens brancos (20,6%) (IPEA, 2016, p. 11-12)

Com isso se explica, os dados iniciais que revelam que as mulheres foram as primeiras a ocuparem os postos de trabalho destinados a essa nova modalidade de ocupação precária.
Em relação às mulheres e a (inexistência) da jornada de trabalho no contrato intermitente, Hirata & Kergoat (2007), destacam que, no caso das mulheres trabalhadoras, a questão do tempo de trabalho assume papel de destaque no processo de flexibilização do emprego feminino.
A flexibilização da jornada de trabalho no caso das mulheres, é incentivado pelo que Miriam Nobre (2004) denomina como “sabedoria da conciliação”, através da qual as trabalhadoras são levadas a ocuparem jornadas flexíveis tendo em vista o tensionamento entre as obrigações familiares e profissionais. É o caso do trabalho por tempo parcial, atividade majoritariamente feminina, que se expandiu fortemente nos anos 1990 num grande número de países (HIRATA, 2002-a), possibilitado no Brasil a partir da medida provisória 2164-41 de 2001 e agora mais recentemente, apontam os estudos iniciais, o contrato intermitente.
Permitir que o trabalho seja executado de tempos em tempos, sem garantia de salário mensal mínimo e sem previsibilidade de quantidade mínima de dias de trabalho por mês ou número de meses de trabalho é priorizar a instabilidade social com o trabalho regulado para superexploração, equiparando o empregado ao autônomo. De forma que o recuo de direitos se torna muito evidente, assim como as novas morfologias do trabalho precarizado (Antunes, 2006).

Conclusão

Acreditamos que a compreensão da gênese histórica e da função das reformas trabalhistas em curso pode ser apreendida através da investigação dos mais recentes modos de precarização do trabalho, que possui efeitos tanto nas flexibilizações na contratação individual, quanto na complexa desestruturação das relações coletivas e desfragmentação das categorias sindicais, intensificada pela reforma trabalhista de 2017.
As recentes reformas ocorridas no mundo do trabalho, nesse contexto de mundialização, com tendência ao subemprego e à informalidade, além de processos intensos e variados de flexibilização de direitos, como é o caso do aumento e generalização das atividades terceirizadas, iniciadas com fôlego na década 90 no Brasil, tem tido efeitos intensos sobre a superexploração da classe trabalhadora.

Nesse novo ciclo do capital, de precarização neoliberal do trabalho, em que a desregulamentação passa a se tornar regra e o direito trabalhista se pauta pela desproteção, são variadas as formas de flexibilização das proteções legais (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015), sendo uma de suas mais recentes modalidades, a conceituação do trabalho intermitente.

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