ESPAÇO DE DISCUSSÃO 9 – OBSERVATÓRIO DO SISTEMA DE JUSTIÇA, DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DO LEGISLATIVO

  

Artigo


RENDA BÁSICA DE CIDADANIA: Subsídios para a regulamentação da Lei nº 10.835/04[1]

BASIC INCOME CITIZENSHIP: subsidies for regulation of Law n. 10.835/04

Luiz Machado[2]

 

Resumo: A Lei nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004, instituidora do programa renda básica de cidadania no Brasil, representou um marco jurídico na tentativa de redução da extrema pobreza no país. A desigualdade social daquele momento político foi amenizada por outros programas governamentais, como o Bolsa Família. Após mais de uma década, no entanto, a implementação da renda básica de cidadania ainda não ocorreu. Seguindo a teoria de Philippe Van Parijs, presidente da Basic Income Earth Network, bem como a produção de teóricos filiados à rede, o trabalho fornecerá subsídios para a implementação da referida lei, situando-a nas políticas públicas sociais de combate à pobreza e distribuição de renda. Implementada com sucesso em algumas localidades estadunidenses, como o Alasca, a renda básica será apresentada como uma política pública essencial para o cidadão brasileiro. As experiências nacionais integram a pesquisa, uma de iniciativa do poder público (Maricá) e outra de iniciativa do Terceiro Setor (Quatinga Velho). As experiências estrangeiras fornecerão substrato para a análise. A correlação entre renda básica de cidadania e estratégias de combate à pobreza do Estado brasileiro, com evidência ao Plano Brasil sem Miséria, que engloba os principais programas de erradicação da miséria no país, finaliza o trabalho.

Palavras-chave: renda básica de cidadania; renda mínima; políticas públicas; direitos sociais.

Abstract: Law No. 10.835, of January 8, 2004, which instituted the basic citizenship income program in Brazil, represented a legal framework in the attempt to reduce extreme poverty in the country. The social inequality of that political moment has been softened by other government programs, such as Bolsa Família. After more than a decade, however, the implementation of basic citizenship income has not yet occurred. Following the theoretical line of Philippe Van Parijs, president of the Basic Income Earth Network and the main defender of basic income in the world, as well as the production of theoreticians who join this worldwide network, the work will provide subsidies for the implementation of said law, placing it in public social policies to combat poverty and to promote income distribution. Successfully implemented in some US locations, such as Alaska, the basic citizenship income will be presented under the perspective of an essential public policy for the Brazilians citizens. The national experiences still incipient are part of the present research, being one of initiative of the public power (Maricá) and another initiative of the Third Sector (Quatinga Velho). Foreign experiences at the municipal, state and federal levels will provide a basis for analysis, in an approach that aims to identify good practices that can be incorporated into the law in question. The correlation between the basic income of citizenship and the strategies to combat poverty in the Brazilian State, with evidence to the Brasil Sem Miséria Plan, which encompasses the main programs for the eradication of poverty in the country, ends the course of this work.

Keywords: basic citizenship income; minimum income; public policy; social rights.

1.   INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho tem como tema o fornecimento de subsídios para a aplicação de uma renda básica de cidadania no Brasil, por meio da Lei nº 10.835/04. O objeto consiste na relação entre essa lei, ainda não implementada, e os programas de erradicação da pobreza vigentes no país, correlacionando-o às experiências internacionais de renda básica. Essa, na perspectiva de Philipe Van Parijs, “é uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independentemente de sua situação financeira ou exigência de trabalho”[3].

O objetivo do trabalho, desta forma, é oferecer subsídios, de modo a demonstrar a viabilidade da implementação do instituto jurídico da renda básica nacional via Lei nº 10.835/04. Ainda que permaneça refém da inércia político-partidária brasileira, essa Lei pode recolocar o Brasil na vanguarda do planejamento de políticas sociais mundiais, como estivera outrora com programas como o Bolsa Família.

O marco teórico está ambientado no trabalho de Philippe Van Parijs[4], conhecido como principal defensor da renda básica universal e um dos fundadores do BIEN (Basic Income European Network – Rede Europeia de Renda Básica), que, a partir de 2004, passou a ser chamada de Basic Income Earth Network (Rede Mundial da Renda Básica), da qual é presidente. Os trabalhos debatidos nos congressos e simpósios da Basic Income Earth Network, dos constitucionalistas e publicistas contemporâneos também integram o marco teórico desta monografia, de modo a fornecerem informações e perspectivas específicas das experiências aqui abordadas.

O método de pesquisa utilizado foi o dedutivo, mediante estudo do instituto da renda básica, com abordagem dos elementos que integram a política de combate à miséria no Brasil sob a égide da garantia de renda. O rol de planos e programas governamentais e a interferência destes na viabilidade de uma renda básica de cidadania integraram o percurso da pesquisa. A forma pela qual as políticas de renda básica foram desenvolvidas no exterior e as influências históricas da academia nestes projetos consolidam este percurso.

As limitações da pesquisa consistiram na ausência de literatura nacional sobre o tema, sendo escassa e pouco acadêmica. Outra limitação perpassa pela avaliação dos programas internacionais abordados. A maioria deles foi implementada este ano, não havendo resultados econométricos para a avaliação da efetividade destes. Assim, este trabalho representa, também, um convite para que os acadêmicos e acadêmicas brasileiras se debrucem sobre o tema de maneira mais ampla.

2.    POLÍTICA PÚBLICA E RENDA BÁSICA

  

A renda básica pode funcionar como uma sobrevida ao sistema capitalista, visto que as desigualdades produzidas por este sistema passariam por um falseamento satisfatório. Ou, para os utópicos, representaria a emancipação das classes menos favorecidas, pois com o mínimo assegurado, conseguiriam desenvolver meios para a sua emancipação social e econômica.

Ao debater as “utopias reais” em Denver, Colorado, Van Parijs abordou a necessidade da utopia para a produção sociológica, consistindo no fato de que ao sociólogo não cabe apenas analisar, descrever e criticar o modelo posto, mas propor algo novo. Nesse sentido, aborda-se a produção intelectual propositiva acerca da renda básica[5]. Sem negar o estímulo utópico proposto por Van Parijs, o presente capítulo tem uma proposta bastante modesta: situar a discussão acerca da renda básica no âmbito das políticas públicas.

2.1      Direito e Políticas Públicas

A renda básica situa-se no campo das políticas públicas, atrelada a uma ideia de Estado que intervém para que se alcance o bem-estar do cidadão. Não sendo de simples definição, o conceito de políticas públicas “de um modo geral, […] pretende significar um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito”[6].

Não há dúvidas de que “as políticas públicas são os meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, uma vez que pouco vale o mero reconhecimento formal de direitos se ele não vem acompanhado de instrumentos para efetivá-los”[7]7. É importante considerar, antes do enfrentamento do tema propriamente dito, que as políticas públicas, especialmente em países como o Brasil, são informadas pelos critérios de gênero, idade e segmento social.

As políticas públicas perpassam, necessariamente, pelo recorte de gênero. No que se refere ao Estado de bem-estar social, as instituições seguem um padrão sexista pré-estabelecido que é objeto de críticas:

As objeções das feministas são particularmente importantes. As críticas do movimento ao Estado de Bem-Estar Social têm sido direcionadas primeiramente ao modelo de família imposto (homem chefe de família/mulher governanta), além da concepção androcêntrica de cidadania construída em torno disto. Estas críticas estendem-se às instituições baseadas neste modelo de cidadania, e nas divisões de gênero nas esferas pública e privada.[8]

A formulação de políticas públicas também perpassa por um recorte etário que enseja um tratamento não isonômico do financiamento estatal:

Há um conflito entre gerações – por um lado, as crianças que não têm poder de voto, que são representadas, muitas vezes, com uma certa invisibilidade na questão das políticas públicas; por outro, os idosos, que teriam um lobby político bastante mais articulado na defesa de seus direitos. Esse desequilíbrio pode provocar, inclusive, desequilíbrios em alocações e decisões de alocações de recursos governamentais.[9]

Como se vê, as políticas públicas são pensadas e desenvolvidas, via de regra, por um perfil de cidadão recorrente nas casas legislativas brasileiras: homem, branco, meia-idade ou idoso, grande proprietário (rural ou urbano)[10]. Seus referenciais, desse modo, podem não se concatenar às necessidades de segmentos majoritários da população, gerando deficit de políticas públicas a setores sub-representados nas instâncias estatais de tomada de decisão.

A discussão acerca da renda básica deve ser situada nesse contexto, especialmente em um país ainda marcado por relações sociais de classe e gênero tão díspares como o Brasil. Daí ser imprescindível o trato jurídico-legal da institucionalização da renda básica no âmbito das políticas públicas brasileiras, com fundamento na “(…) importância vital que as políticas públicas possuem no contexto do constitucionalismo contemporâneo, que expandiu o reconhecimento de direitos e pretende normatizar adequadamente as relações sociais”[11].

Van Parijs elucida que um dos passos lógicos de uma renda básica é a liberação de homens e mulheres do trabalho, no sentido de garantia de uma melhor qualidade de vida. O autor aponta para a possibilidade de uma renda básica sustentável política e economicamente, garantindo melhores níveis produtivos dos beneficiários que estejam no mercado de trabalho[12].

A instituição de um programa que garanta renda básica aos cidadãos constitui um desafio para as políticas públicas do século XXI. Diante de uma globalização excludente, pautada pela concentração de capitais aos grandes conglomerados financeiros, a renda básica pode significar um recomeço para um protagonismo mais humanista nas formas de pensar a gestão pública.

3           RENDA BÁSICA DE CIDADANIA

  O debate acerca da renda básica no Brasil e no mundo não fica adstrito apenas à academia e aos fóruns. Experiências de programas garantidores de renda assentados nos mais diversos moldes de arrecadação e distribuição de recursos são realidade em diversas cidades. No Brasil, trabalhar-se- á com a Lei nº 10.835/04, ainda que não regulamentada, pela sua proposta de abrangência nacional.

Abordar-se-á as iniciativas de Maricá, atuação do poder público, e Quatinga Velho, atuação de organização do terceiro setor, avaliando suas especificidades e perspectivas. No plano internacional, o aspecto histórico da defesa da renda básica universal desde o século passado inicia o debate. A proposta de uma renda básica para a União Europeia também integra a discussão, apesar de ainda não implementada, por seu caráter transnacional.

As experiências internacionais institucionalizadas abordadas de âmbito municipal são Shenzen (China), Barcelona (Espanha) e Nijmegen (Holanda); de âmbito estadual são os estadunidenses Havaí e Alasca (experiência mais longeva); de âmbito nacional são Finlândia e Irã. Este por representar uma implementação diversa da usual, aquela pelo caráter universal. Todas são iniciativas recentes, muitas de 2017, exceto Alasca que provém de 1982.

Os protagonistas teóricos e políticos que deram ensejo aos principais projetos mundiais de renda básica integram este percurso metodológico. Desde o primeiro ministro canadense Justin Trudeau à deputada alemã Katja Kipping. Ademais, o pioneirismo de Thomas Paine no século XVIII, a proposta de nacionalização de Joseph Charlier no século XIX, passando pela influência da Escola de Chicago no XX por meio de Milton Friedman, e a intelectualidade orgânica de Van Parijs no século XXI encerram este capítulo.

  • Discussões, Propostas e Projetos no Brasil
  • Lei nº 10.835/04: a proposta nacional ainda não realizada

A Lei nº 10.835/04 representa o último esforço legislativo nacional para a implementação de uma renda básica universal no Brasil. Apesar de citada até mesmo na última obra de Van Parijs como fruto de um esforço empreendido por Suplicy nas duas casas legislativas brasileiras[13], a lei não passa de mais um instrumento jurídico nacional não executado.

Em seu primeiro artigo, a lei que institui a renda básica de cidadania no Brasil prevê a possibilidade de que, além dos brasileiros residentes em território nacional, estrangeiros possam recebê-la após 5 anos residindo no país[14]. A cidadania, abstraindo-se os requisitos meramente legais estabelecidos na Constituição Federal, parte, na perspectiva sociológica de Offe, do seguinte:

Vale destacar o feito “republicano” de transformar “sujeitos” em “cidadãos”, isto é, agentes capazes de empregar seus próprios recursos cognitivos e morais em formas deliberativas e inteligentes para solucionar problemas políticos de acordo com uma lógica de aprendizado coletivo, e lutando, como consequência, para servir ao “bem-comum”[15].

A ideia de que estrangeiros possam fazer parte dos “dividendos territoriais” de uma nação reforça a cidadania[16]. No entanto, esse lapso de 5 anos para o início da percepção do benefício pecuniário ao estrangeiro, pode redundar na saída destes agentes políticos que vêm ao país para contribuir com a formação contemporânea de nossa sociedade.

Para que os estrangeiros integrem o programa de maneira diversa da prevista, é necessário elencar mais alguns pressupostos da lei que devem ser cumpridos. As possibilidades orçamentárias e o grau de desenvolvimento do país balizam o valor do pagamento do benefício, que deve atender despesas mínimas de educação, saúde e alimentação[17].

O pagamento, previsto na lei, poderá ser feito em parcelas iguais e mensais, sendo considerado rendimento não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas. Devem ser priorizadas as camadas mais necessitadas da população, pressuposto elementar em uma política de erradicação da pobreza[18].

Os pressupostos acima descritos balizam a política pública no que se refere ao âmbito de abrangência, foco populacional e linhas mestras para a execução de um projeto que ainda carece de regulamentação para a pormenorização de procedimentos para seu funcionamento.

Os artigos 3º[19] e 4º[20] dessa lei deixam latente a inércia do Estado brasileiro em instituir uma renda básica. Ambos arremetem ao longínquo exercício financeiro de 2005, dispondo acerca da forma pela qual o orçamento público seria afetado à época. Juntamente ao artigo 2º[21], estes dispositivos legais integram as disposições referentes à técnica jurídico-financeira da lei.

A primeira etapa do projeto, citada expressamente no artigo 3º, nunca foi consignada no Orçamento-Geral da União, tampouco chegou a integrar planos plurianuais ou diretrizes orçamentárias de governo. Deste modo, não há elementos para que se afira a observância (prevista no artigo 2º da lei) dos artigos 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal[22], pois não há execução do programa passível desta avaliação.

  • Maricá e Quatinga Velho: realizações locais

Situada no litoral do Rio de Janeiro, Maricá, cidade de aproximadamente 150 mil habitantes, instituiu, por meio da Lei nº 2.651/15, um programa de renda básica de abrangência municipal. Em seu artigo 1º a referida lei prevê que a população beneficiada será de: naturais do município que lá residam há pelo menos 1 ano, brasileiros que residam no município há pela menos 2 anos, além de estrangeiros que residam há pelo menos 5 anos em Maricá[23].

O programa utiliza a moeda social batizada de “Mumbuca”. Esse programa foi indicado em 2014 ao “Prêmio Governarte, criado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para premiar as melhores iniciativas de inclusão social com tecnologia digital da América Latina”[24]. Maricá foi uma das finalistas, junto com as cidades de San Jose (Costa Rica), Santiago de Cáli (Colômbia), São Paulo e Patzún (Guatemala).

A legislação municipal prevê a circulação do benefício em estabelecimentos credenciados pela Secretaria municipal responsável pela Economia Popular e Solidária da cidade, sendo um benefício mensal de 10 “mumbucas” – equivalente a R$ 10,00 (dez reais)[25]. Os pressupostos de atendimento aos setores sociais mais carentes de acordo com as possibilidades orçamentárias do munícipio, além de seu nível de desenvolvimento, tal qual na Lei nº 10.835/04, também figuram no corpo da lei.

Washington Siqueira, conhecido pela alcunha de “Quaquá”, prefeito de Maricá que sancionou a lei, é correligionário de Eduardo Suplicy, ambos do Partido dos Trabalhadores. Infere- se dessa relação as semelhanças dos projetos. O programa teve repercussão internacional, de modo que Quaquá, em entrevista ao jornal The Economist, afirmou ser guiado por um preceito ético que pode tornar seu sonho de uma sociedade mais igualitária realizável[26].

O programa de renda básica do município tornou-se viável após o início da exploração do pré-sal[27], que tem beneficiado Maricá com os royalties provenientes dessa exploração. Em 2017, o município figura entre os principais recebedores de recursos, devido ao crescimento da produção petrolífera na Bacia de Santos, tendo recebido até julho R$ 389,4 milhões[28].

Apelidada de “laboratório brasileiro para a renda básica universal”, Maricá tem perspectivas positivas para o crescimento do programa. Quaquá elegeu seu candidato, o ex-presidente da câmara de vereadores, Fabiano Horta, nas últimas eleições municipais (2016), o que representa a continuidade do projeto. Ademais, a plena expansão do pré-sal é indicativa de que os recursos para o custeio estão longe da escassez.

A Vila de Quatinga Velho, localizada em Mogi das Cruzes, São Paulo, é outro exemplo de implementação de uma renda básica. Ao contrário de Maricá, consiste em uma iniciativa do terceiro setor, desenvolvida pelo Instituto pela Revitalização da Cidadania – ReCivitas, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, registrada no Ministério da Justiça desde 2006[29].

O ReCivitas atua no desenvolvimento de políticas públicas inovadoras, assim como na criação e execução de experiências socioeconômicas libertárias, conforme consta de seus objetivos sociais. O instituto, dessa forma, elaborou um projeto de renda básica desenvolvido em dois momentos.

Na primeira fase funcionou por meio de um consórcio que durou de 2008 a 2014. As doações de responsáveis pelo projeto em seu início custearam a renda básica incondicional de 27 pessoas no valor de R$ 30,00 (trinta reais). Após o primeiro semestre o programa foi ampliado para o patamar de 100 pessoas, permanecendo com esta quantidade até seu final[30].

O projeto funcionou baseado na autogestão, com assembleias decisórias entre os idealizadores e a população beneficiária, com discussão de metodologia de desenvolvimento do projeto, estratégias para a arrecadação de fundos (a principal delas campanhas na internet). Apesar de todo o esforço, inclusive após uma decisão em assembleia de redução do benefício pela metade, o projeto se encerrou nos moldes de um consórcio, ao final de 2014, por ausência de verbas para o seu custeio[31].

A segunda fase do projeto se iniciou em janeiro de 2016, no modelo de startup[32] com uma proposta de pagamentos mensais de R$ 40,00 (quarenta reais) para um grupo inicial de 14 (quatorze) indivíduos, sem data para término do benefício. A iniciativa é considerada piloto da atuação do terceiro setor nessa pauta, funcionando de inspiração para programas similares[33].

Os participantes do programa nesta fase não apenas recebem o benefício, mas também podem integralizar doações de acordo com as suas possibilidades e deliberações entre os integrantes da comunidade. O sistema é de uma democracia direta, por meio da qual se delibera, ademais, a entrada de membros não pertencentes à comunidade em seu início, por exemplo[34].

O modelo apresenta três fontes de recurso: (i) doações; (ii) Fundo ReCivitas de Renda Básica, utilizado apenas para o pagamento da renda básica (ao qual são destinadas as doações); (iii) Fundo Garantidor da Renda Básica, pertencente aos participantes que contribuem atualmente com sua renda; após sua emancipação, o recebimento de suas rendas básicas estará condicionado às contribuições voluntárias percebidas[35].

Os valores dos benefícios poderão ser definidos de acordo com as necessidades de cada integrante do programa, sendo esse um dos princípios da democracia direta organizacional prevista. O aspecto de autogestão, nesta segunda fase do projeto, fica ainda mais evidente, o que corrobora os preceitos de liberdade propagados por Van Parijs.

Os líderes do projeto instituído pela ReCivitas enfatizam que não se trata mais de um estudo sobre a renda básica ou uma tentativa de provar a viabilidade desta. Eles estão convencidos de que uma renda básica é efetiva e visam à implementação em uma escala cada vez mais ampla[36].

3.2 Renda Básica: Discussão Internacional

Apesar de parecer algo concebido há pouco tempo, as “ondas” de suporte à renda básica universal ocorreram em três momentos, iniciando-se no início do século passado. De 1910 a 1940 existiu a primeira e mais fraca leva de apoiadores, com declínio da pauta nos anos 40 e 50. Os anos 60 e 70 protagonizaram uma maior defesa da renda básica, seguida, novamente, por decaída do tema até o início do século atual. A terceira e maior fase teve início aproximadamente em 2010 e continua a ganhar cada vez mais força[37].

Na primeira onda, o movimento por uma renda básica ainda era incipiente, com pouca articulação entre seus membros. Destacam-se George D. H. Cole, advogado britânico do movimento cooperativista que cunhou o termo “renda básica”, e o também britânico Dennis Milner, responsável pela primeira grande obra sobre o tema – Higher Production by a Bonus on National Output[38]. Devido à Grande Depressão[39] do entreguerras, os primeiros projetos de renda básica não eram pensados como universais, mas focados nas populações mais devastadas.

Na segunda onda, grupos canadenses e estadunidenses promoviam a ideia, em oposição, sobretudo, aos programas sociais herdados do New Deal, com pré-requisitos que tornariam mais interessante uma renda básica universal. Lyndon Johnson e sua “guerra contra a pobreza” deram azo a tentativas de estabelecimento de uma renda básica nos Estados Unidos[40].

A Câmara dos Deputados aprovou, em 1971, uma lei que estabelecia um “imposto de renda negativo”, mas o Senado barrou o projeto por apenas 10 votos. Os esforços para a implementação de uma renda básica foram retirados do debate público central paulatinamente: declínio com a chegada de Richard Nixon ao poder e final com Ronald Reagan. No entanto, esta segunda onda teve mais força, produzindo frutos como as políticas públicas iniciadas no Estado do Alasca que redundaria no projeto mais longevo de renda básica universal hoje conhecido (será tratado posteriormente)[41].

Essa segunda onda, apesar de concentrada na América do Norte, influenciou países europeus como a Dinamarca, ao final da década de 70 e, até mesmo, a África do Sul pós apartheid. A influência europeia, ademais, aconteceria sobretudo na academia. Encabeçada por Van Parijs – com participações de Claus Offe, Guy Standing, Robert Van der Veen, e outros intelectuais – a Basic Income European Network (BIEN) é criada em meados da década de 80. No início do século XXI tornou-se Basic Income Earth Network, devido à abrangência conquistada[42].

A terceira onda relaciona-se à crise financeira de 2008, desencadeada pela quebra do banco estadunidense Lehman Brothers. O crescente desemprego e a retração da economia não apenas dão força ao movimento, como o internacionalizam de uma maneira mais rápida. Programas como o Bolsa Família, além de iniciativas na Índia e Namíbia deram nova luz acerca da viabilidade do projeto[43].

A Inovação financeira, por meio de moedas digitais e não estatais, como bitcoins[44], ou sociais, como a “Mumbuca” de Maricá (trabalhada anteriormente), integram as possibilidades de instituição de uma renda básica, visto que os custos administrativos podem ser mais baixos por meio destes instrumentos. A mais popular estratégia de combate à mudança climática, inovação na política ambiental, consiste na atribuição de preços para a emissão de carbono, com a posterior distribuição da receita obtida por esse meio aos cidadãos[45].

As propostas de renda básica chegaram a ganhar caráter transnacional. Com a crise do euro, a proposta de uma renda básica da União Europeia tornou-se pauta dos estudiosos do tema. Van Parijs, neste sentido, relaciona a viabilidade de uma renda básica europeia como saída da crise:

Pessoas na União Europeia estão começando a perceber que além das causas imediatas, a causa fundamental da crise do euro, em contraste com o dólar compartilhado pelos 50 estados dos Estados Unidos, é a falta de dois grandes mecanismos de amortecimento: (1) a migração interestadual é aproximadamente seis vezes mais intensa nos Estados Unidos do que na União Europeia, e (2) as transferências trans-estaduais são de 20 a 40 vezes maiores no Estados Unidos, a depender do indicador utilizado. Devido às diferenças de língua, existe uma chance do primeiro mecanismo, migração, tornar-se mais significante na União Europeia. A única esperança para a sustentabilidade do euro seria reforçar o segundo mecanismo, transferências. No entanto, a União Europeia nunca conseguirá integrar seus muitos Estados de Bem-Estar Social em um unificado e mega Estado de Bem-Estar Social. A única forma disto acontecer é simples. Uma vez excluídos uma série de esquemas intrinsecamente perversos, não resta muito além de uma Grande União Europeia ou uma Renda Básica de uma vasta Zona do Euro – não como substituta dos Estados de Bem-Estar Social existentes, mas como uma base a ser ajustada por eles dando sustentabilidade para assegurar sua viabilidade[46].

O ponto central da argumentação de Van Parijs consiste na ideia de que a União Europeia necessita de uma forma mais equitativa de distribuição de seus dividendos, sendo a renda básica o acoplamento estrutural perfeito desta proposta[47]. Ainda, o belga discute a viabilidade da “taxa Tobin”[48] como forma inicial de uma renda básica para a Zona do Euro que garantiria inicialmente 10 euros mensais por pessoa[49].

O economista de Oxford John Mullbauer recomendou que o Banco Central Europeu deveria pagar 500 euros para cada residente da Zona do Euro[50]. Uma proposta semelhante foi feita em agosto de 2016 por 35 economistas[51] como uma forma de estimular a economia Britânica após o Brexit[52]. Ainda, em pesquisa realizada em março de 2016, 64% dos europeus disseram que votariam por uma renda básica se um referendo sobre o tema fosse convocado imediatamente em seu respectivo país[53]. Após o levantamento destes dados, parte-se agora para a avaliação de algumas experiências internacionais já institucionalizadas.

3.2.1 Experiências institucionalizadas

Dentre as experiências internacionais institucionalizadas ou em vias de institucionalização, aborda-se as experiências municipais de Shenzen (China), Barcelona (Espanha) e Nijmegen (Holanda), as duas últimas sobretudo por serem experiências recentes que poderão servir de base para estudos mais aprofundados após seus resultados no futuro. A Finlândia também se enquadra no fato de ser recente, no entanto, concebe-se como uma experiência nacional de atuação restrita.

As experiências estaduais são estadunidenses: Havaí e Alasca. O primeiro é desta década. O segundo configura-se como a experiência mais longeva de renda básica, sendo abordado de forma mais detalhada, com levantamento de resultados econômicos obtidos pelo programa desde a década de 80. No plano dos estados nacionais, a experiência inglesa focada nas crianças é abordada, além da experiência iraniana. Esta, assim como a do Alasca, utiliza-se dos dividendos do petróleo, mas em escala nacional.

A cidade de Shenzen é uma das quatro principais da China. Desde 2013, o The Sharing Shenzen Outline, programa de reformas sociais da cidade, prevê um fundo público para que os dividendos das empresas estatais possam ser divididos entre os cidadãos por meio de uma renda básica. Apesar de a renda ainda não ter sido instituída, o programa está sendo executado[54]. Situação semelhante ocorre na Escócia, neste ano, o primeiro ministro escocês, Nicola Sturgeon, anunciou que irá implementar programas de renda básica no país, mas a proposta ainda se encontra em fase de estudos[55].

Barcelona, conhecida cidade espanhola, implementou um programa desde outubro de 2017 na região de Besos (área mais pobre da cidade) para 2000 habitantes em caráter experimental, com duração de 2 anos e valores do benefício de acordo com a composição das famílias beneficiárias. Apesar de não ser um programa focado na renda individual, por focar nas famílias tal como o Bolsa Família, prevê a garantia de renda incondicional[56].

Na Holanda, a Secretaria de Assuntos Sociais do Governo Federal autorizou, em julho deste ano, 5 experimentos municipais de renda básica. Um dos pontos do experimento é a possibilidade de os cidadãos receberem uma renda adicional, que pode ir além dos benefícios estatais que ele por ventura receba, não podendo este adicional exceder o valor de 200 euros mensais. O experimento terá duração de 2 anos, com início em dezembro deste ano na cidade de Nijmegen[57].

Na Finlândia, 2000 cidadãos, que foram escolhidos de forma aleatória entre aqueles que estavam recebendo uma espécie de auxílio desemprego do país à época irão receber 560 euros mensais. O experimento começou em janeiro deste ano e tem duração estimada de ao menos 2 anos[58]. O Havaí, estado com o maior custo de vida dos Estados Unidos e com crescente desemprego devido às tecnologias de automação, adota a renda básica desde 2016 e desenvolve estudos sobre a temática[59].

A experiência mais longeva de renda básica, o Alasca, merece especial destaque nesta análise. Há mais de três décadas o Alaska Permanent Fund garante uma renda anual de aproximadamente 1.000,00 dólares[60] para todo residente do estado de 791.894 habitantes. A receita para o custeio deste fundo provém dos lucros estatais relativos à produção petrolífera[61].

Como uma das condições é a de que o cidadão requeira ao Estado do Alasca o benefício, desde 1982 (ano de instituição da renda básica no Alasca) o programa atendeu aproximadamente 20,5 milhões de solicitações dos cidadãos, tendo sido desembolsado de seus cofres cerca de 22 trilhões de dólares neste período. Historicamente, a renda básica é requerida por aproximadamente 95% da população, sendo uma política de estado consolidada[62].

Segundo o economista Scott Goldsmith, qualquer mudança neste modelo pode significar um “suicídio político” ao postulante a um cargo público no Alasca. Ademais, apoiadores do modelo entendem que esta é uma política fortemente igualitária, de modo que viabiliza a cada cidadão a participação nos ganhos provenientes dos recursos naturais da localidade, além de não os submeter aos problemas burocráticos de outros programas de transferência de renda[63].

O caso inglês é de um programa focado em um estrato específico da população. O então primeiro ministro britânico Tony Blair apresentou o Child Fund Trust ao Parlamento Inglês, tendo sua aprovação em 13 de maio de 2003. Trata-se de um projeto de lei segundo o qual toda criança nascida no Reino Unido passaria a ter uma renda mínima a ser depositada em uma conta para posterior resgate. A depender do estrato social no qual se encontra a criança, estes valores poderiam aumentar ou diminuir. Ao alcançar 18 anos, poder-se-ia utilizar este dinheiro e seus rendimentos, aplicando-os em seus estudos, alimentação, lazer, enfim, naquilo que julgar necessário para o início de sua vida adulta[64].

Em setembro de 2010, saindo da Europa e chegando ao Oriente Médio, o Irã implementou uma renda básica incondicional vinculada aos dividendos do petróleo. Notada a disparidade entre o preço local e internacional do petróleo, os dividendos obtidos pela comercialização deste são distribuídos à população com base nos indicadores econômicos do mercado global. As populações mais pobres são o foco do programa, devido à enorme informalidade que caracteriza a economia iraniana[65].

Hamid Tabatatai explica que no contexto iraniano:

O fato mais marcante sobre o sistema de transferência de dinheiro, é o de que se desenvolveu não por planejamento, mas pela sua ausência. Não foi uma decisão política deliberada, mas um caso fortuito de um processo que pretendia reformar um sistema injusto e ineficiente de subsídios, por meio de uma transição palatável para os políticos e público em geral. Não poderia existir uma reivindicação tão característica ao bordão de Philippe Van Parijs de uma renda básica como “uma ideia simples e poderosa”[66].

A renda básica iraniana encerra este subcapítulo demonstrando que o projeto pode surgir por dedução lógica, proveniente da necessidade de simplificação da estrutura burocrática referente às políticas públicas estatais. As experiências são variadas e sua efetividade possui um ingrediente em comum: a vontade política atrelada à oportunidade conjuntural.

4           CONDIÇÕES DE PLAUSIBILIDADE

  A instituição da renda básica de cidadania demanda planejamento governamental. Apesar de aparentemente simples, há complexidade econômica e, sobretudo, administrativo-jurídica para a instituição da Lei. As possibilidades de resposta da economia no tocante aos reflexos de uma renda básica em outras políticas consolidadas, como o salário-mínimo, além das formas interação com o mercado são ponderadas neste capítulo.

As estratégias governamentais para garantia mínima de renda, principal mote da renda básica, estão congregadas hodiernamente no Plano Brasil sem Miséria (BSM). Os programas que o integram, suas correlações, público alvo e parâmetros estão delineados a seguir para uma visão administrativo-estratégica do Estado brasileiro no enfrentamento desta pauta.

  • Elementos para Quantificação e Execução da Renda Básica
  • Renda básica, mercado, trabalho e salário mínimo

A renda básica contempla diversas possibilidades de implementação. Há um crescente entendimento de que “políticas de proteção social podem ter um impacto positivo na economia, diretamente por meio da promoção da produtividade e – indiretamente – promovendo coesão e paz social que são pré-requisitos para um estável e longo crescimento econômico”[67].

É preciso que se atente, no entanto, ao apontamento de Claus Offe sobre a relação entre renda básica, trabalho e mercado:

Renda básica é um programa político radical com o objetivo de implementação de justiça social. Transformar esta ideia programática em uma política pública na área de reforma social, no entanto, depende da ponderação acerca das precondições fiscais e consequências envolvendo tal reforma, assim como as (difíceis de determinar, mas significantes) consequências que a realização desta reforma teria sobre o trabalho e o mercado de capitais[68].

Focando no caso brasileiro, Suplicy aponta que, em momentos de crise econômica, o discurso da não existência de recursos suficientes para a implementação desee tipo de benefícios tem mais aderência popular. No entanto, o autor indica a possibilidade de um imposto de renda negativo, que, em resumo, avaliaria a possibilidade de cada cidadão integrante da População Economicamente Ativa (PEA) contribuir ou receber do governo determinada quantia para um fundo de custeio da renda básica de cidadania, de acordo com as suas condições no momento[69].

A relação entre renda básica e salário-mínimo, outra nuance na viabilidade da renda básica de cidadania, apresenta pólos de análise que, por vezes, divergem, visto que para os defensores da renda básica, “o salário-mínimo poderia ser útil apenas para aqueles que possuem um emprego, enquanto a renda básica teria um impacto muito maior”[70]. Isso se deve à universalidade da renda básica, não havendo categorização de beneficiários.

Permite-se que seus adeptos defendam, inclusive, que “se a renda básica fosse implementada, nenhum salário-mínimo seria necessário, porque o mínimo existencial seria garantido a todas as pessoas.”[71] Esta visão do salário-mínimo, no entanto, é contraposta por outra linha metodológica. Ponderando a partir da análise econômica como um todo, ensina Wilkens:

Em um nível macroeconômico, abster-se de um salário-mínimo pode significar baixa de salários, assim como subsídios aos empregadores. […] O salário-mínimo assegura que os esforços dos funcionários sejam recompensados da maneira adequada. Em um momento em que os padrões sociais se deterioram permanentemente, o salário-mínimo introduz um elemento de estabilidade nas relações de trabalho. Simultaneamente, trabalhos bem remunerados são um pré-requisito para a viabilidade de qualquer financiamento de uma renda básica[72].

Diante de tal cenário, é coerente a defesa de que, com a implementação de uma renda básica, o salário-mínimo deve ser uma política permanente[73]. Desse modo, alguns setores defendem uma política que atinja pessoas que estejam nos extratos de extrema miséria, havendo uma renda básica parcial destinada apenas a estas parcelas em um primeiro momento[74].

  • Orçamento Público, Programas e Planos de Governo

Os programas e planos governamentais devem atrelar-se ao orçamento público, cumprindo os parâmetros legais para sua execução e fiscalização, afinal “nenhum plano governamental de trabalho pode ser realizado se não estiver autorizado no instrumento próprio, que é o Orçamento. Desta forma, os programas ou projetos, para serem iniciados, devem constar da Lei Orçamentária Anual”[75].

Desse modo, existe um procedimento jurídico a ser observado perante os projetos de lei que instituem estas estratégias governamentais, são os elementos abaixo arrolados:

os projetos devem ser formulados tendo presente o procedimento, a saber: a) Identificação: neste campo deverão ser reunidos todos os elementos que personalizem o projeto. b) Justificativa: contemplará os motivos e as razões para os quais o projeto foi concebido. c) Indicação dos objetos gerais e específicos. d) Área de atuação: aqui deverá ser descrito o público alvo a ser alcançado pelo projeto. e) Implantação: este procedimento compreenderá o levantamento de subsídios sobre o contrato a ser firmado e a capacidade de endividamento. f) Implementação: neste espaço far-se-á o detalhamento dos procedimentos a serem adotados e etapas a serem cumpridas. g) Custos: aqui consignar-se-á o valor do projeto e a agência de financiamento. h) Cronograma físico e financeiro[76].

A renda básica de cidadania tem como pressuposto funcionar como garantia básica de acesso à alimentação, saúde e educação, por meio de uma implementação gradual, com observâncias às questões técnico-orçamentárias do país[77]77. Nas últimas décadas, os governos têm desenvolvido programas para suprir as carências nessas áreas, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula e também Dilma Rousseff.

O Plano Brasil Sem Miséria congrega o conjunto de políticas mais recentes que versam neste sentido. É necessário, com isso, analisá-lo em seus pormenores, programa por programa, para que a viabilidade operacional da renda básica de cidadania seja desvelada. Apesar de simples na defesa retórica, sua implementação enfrenta complexidade não apenas política e jurídica, mas também nas condições heterogêneas da sociedade brasileira.

  • Integração a Outros Programas: Plano Brasil Sem Miséria (Bsm)

Um plano de governo, via de regra, consiste em um conjunto de programas que funcionam de forma articulada. Estes “[…] consistem fundamentalmente no esforço empreendido pela Administração na busca de um produto final, que é resultante da meta que ela se propõe a alcançar durante o exercício financeiro”[78].

O Plano Brasil sem Miséria (BSM), instituído pelo Decreto nº 7.492 de 2 de junho de 2011, desta forma, articula políticas, programas e ações para erradicar a extrema pobreza em todo o território nacional. O BSM foi formulado de forma integrada por diversos órgãos governamentais[79].

O BSM se articula em três eixos: (i) garantia de renda, como medida urgente ao combate da extrema pobreza; (ii) acesso a serviços públicos, para melhoria de condições de saúde, educação e cidadania; (iii) inclusão produtiva rural e urbana, gerando trabalho e renda no campo e na cidade. A tabela apresenta a sistematização do referido programa:

 

PLANO BRASIL SEM MISÉRIA (Decreto nº 7.492 de 2 de junho de 2011)

 

EIXOS DEATUAÇÃO

 

PROGRAMAS

 

LEGISLAÇÃO

 

 

 

 

(I) GARANTIA DERENDA

 

Bolsa Família

 

Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004

 

Benefício de Prestação Continuada (BPC)

Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS)
 

Programa Progredir

 

Decreto nº 9.160, de 26 de setembro de 2017

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(II) ACESSO A SERVIÇOS PÚBLICOS

 

Programa de Aquisição de alimentos (PAA)

 

art. 19 da Lei nº 10.696, de 2 de Junho de 2003

Luz Para Todos – Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Luz Decreto nº 7.520, de 8 de julho de 2011 e Decreto nº 4.873, de 11 de novembro de 2003
Água Para Todos – Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Água  

Decreto nº 7.535, de 26 de julho de 2011

Programa Cisternas – Programa Nacional de Apoio à

Captação de Água da Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água

Lei nº 12.873, de 24 de outubro de 2013 e

regulamentado pelo Decreto nº 8.038, de 4 de julho de 2013

 

Programa Brasil Carinhoso

 

Lei nº 12.722 , de 28 de dezembro de 2012

 

Programa Criança Feliz

 

Decreto nº 8.869 , de 5 de outubro de 2016

 

Programa Saúde na Escola (PSE)

 

Decreto nº 6.286 , de 5 de dezembro de 2007

QUALIFAR/SUS – Programa Nacional de Qualificação de Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de

Saúde

Portaria nº 1.214/GM/MS, de 13 de junho de 2012
 

Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)

 

Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009

Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR)  

Decreto nº 7.959, de 13 de março de 2013

 

 

 

 

 

(III) INCLUSÃO PRODUTIVA RURAL EURBANA

 

Programa Bolsa Verde

Lei nº 12.512, de 14 de outubro de 2011, e

regulamentado pelo Decreto nº 7.572 , de 28 de setembro de 2011

 

Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais

Lei nº 12.512, de 14 de outubro de 2011, e

regulamentado pelo Decreto nº 7.644, de 16 de dezembro de 2011

PRONATEC/BSM – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego do Plano Brasil sem Miséria  

Lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011

ACESSUAS/TRABALHO – Programa Nacional de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho Resolução nº 18, de 24 de maio de 2012, do

Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS)

O BSM apresenta, sobretudo em seu primeiro eixo de garantia de renda, congruência com os pressupostos de uma renda básica de cidadania brasileira. O arranjo dos programas brasileiros exposto é passível de readequação sistemática para a simplificação das políticas públicas de erradicação da miséria.

5        CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Uma renda mínima, por si só, não resolve o problema dos habitantes do semiárido nordestino, que dependem de programas como o Cisternas. Tampouco garante a preservação ambiental proporcionada pelos beneficiários do programa Bolsa Verde nas reservas extrativistas da Amazônia. Esses exemplos, todavia, não elidem a necessidade de implementação da renda básica de cidadania.

No eixo de garantia de renda do BSM em 2017, o Bolsa Família teve orçamento designado de aproximadamente R$ 30 bilhões, enquanto o BPC teve orçamento de aproximadamente R$ 50 bilhões[80]80. Estes dois programas são os de maior confluência com a renda básica, pois promovem a prestação pecuniária direta ao cidadão (atendidos determinados requisitos).

A simplificação do primeiro eixo do BSM, consolidando esses dois programas, consiste em um caminho jurídico para a viabilidade da primeira etapa da renda básica de cidadania[81]81. Esse desenho redundaria em uma dotação orçamentário de R$ 80 bilhões para a renda básica, caso houvesse sido aplicado em 2017. Os requisitos dos artigos 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal[82]82, previstos no artigo 2º da Lei nº 10.835/04, cumprir-se-iam de forma mais simplificada, visto que a previsão orçamentária abarcaria recursos de programas existentes.

A proposta foi trabalhada por Van Parijs e Vanderborght no sentido de haver uma substituição de todos os benefícios sociais (assistência ou seguro) menos onerosos – como o Bolsa Família – e a uma primeira escala de benefícios sociais mais onerosos – como o BPC -, quando trabalhada a sustentabilidade de uma renda básica em sua última obra[83]83.

O conhecido pragmatismo da teoria desenvolvida por Van Parijs deu base às mais variadas experiências de renda básica no mundo. Simples e de fácil adesão, sua proposta pode significar a liberdade econômica para a emancipação dos cidadãos, como se depreende das palavras a seguir:

Uma renda básica incondicional não se trata exclusivamente de distribuição de renda ou poder de consumo. É sobre poder decidir qual o tipo de vida que se pretende viver. É sobre o poder de dizer não aos mandos de um chefe, um burocrata, ou uma esposa. Além disso, é sobre poder dizer “sim” a atividades que são mal pagas ou não remuneradas, mas que são, no entanto, atrativas em si mesmas, devido ao treinamento ou contratos que oferecem. A expectativa é poder disseminar esse poder de barganha, o poder de dizer “sim” ou “não”, que fará nossa sociedade não apenas mais igual, mas melhorará também sistematicamente a qualidade de trabalho – e consequentemente a qualidade de vida – por meio dos próprios mecanismo capitalistas submetidos a diferentes condicionantes estruturais.[84]

O Estado brasileiro pode, de maneira sustentável, colocar os cidadãos em um cenário mais próximo ao descrito por Van Parijs. As políticas públicas de outrora necessitam de um remanejo estrutural para que a efetividade do combate à pobreza no país continue a ser observada nas mais variadas localidades brasileiras.

A renda básica universal consiste em um projeto de consolidação de políticas paliativas de combate à pobreza em diversos países. Considerando a proposta desta monografia de fornecer subsídios à implementação do principal projeto de renda básica discutido nas casas legislativas nacionais, a Lei nº 10.835/04, este viés interpretativo acerca de uma renda básica se adequa ao Brasil.

As experiências internacionais levantadas, ademais, revelam que apesar dos esforços empreendidos or muitos brasileiros, especialmente Eduardo Suplicy, o tema ainda tem pouca adesão nas academias e debates políticos nacionais. Como proposta em pleno desenvolvimento e embrionária em cidades internacionalmente conhecidas, a renda básica universal ainda demanda vasto campo de experimentação e estudos. As incipientes Maricá e Quatinga Velho, sobretudo a primeira, por apresentar semelhanças fundamentais com a Lei nº 10.835/04, abrem perspectivas para que essas experiências sejam recorrentes no Brasil.

A estrutura programática de planos governamentais demonstra a viabilidade de concretização de uma renda básica de cidadania como linha mestra na consolidação de programas de erradicação da pobreza no Brasil. Tal como analisado no caso iraniano, o inchaço burocrático de programas de transferência de renda pode ser simplificado por meio da instituição de uma renda básica.

A proposta de uma renda básica de cidadania pode significar uma saída efetiva para um problema que volta a assolar o país: a desigualdade social. Desse modo, esta monografia pretendeu dar início a uma discussão essencial para que a sociedade brasileira consiga erradicar a pobreza e caminhe para a igualdade social. A produção acadêmica só faz sentido se voltada a esse propósito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 AVRITZER & SOUSA SANTOS. Para ampliar o cânone democrático. In.: Revista crítica de ciências sociais, 2003.

BRASIL. Lei complementar nº 101, de 05 de maio de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 05 mai. 2000. p. 1.

            . Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

            . Lei ordinária nº 13.414, de 10 de janeiro de 2017. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2017. p. 1

CALDAS, Edson; SÔNEGO, Dubes. Bilionários do Setor de Tecnologia embarcam no movimento da  Renda  Básica  Universal.   Época   Negócios.   São   Paulo,   3   jul.  2017. Disponível em: <http://epocanegocios.globo.com/Revista/noticia/2017/07/bilionarios-do-setor-de-tecnologia- embarcam-no-movimento-da-renda-basica-universal.html>. Acesso em: 22 Ago. 2017.

CAMPELLO, T.; FALCÃO, T.; COSTA, P. V. (Orgs.). O Brasil sem Miséria. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2014.

CHOLLET, Mona. A Renda Básica e seus falsos cognatos. Le Monde Diplomatic Brasil. São Paulo, 4 jul. 2016. Disponível em: <http://diplomatique.org.br/a-renda-basica-e-seus-falsos- cognatos/>. Acesso em: 8 mar. 2017.

FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. (Coleção temas fundamentais de direito; v. 1)

GINNEKEN, Wouter Van. Poverty, Human Rights and Income Security in Europe. In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. Disponível em:

<http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/ginneken.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2017.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914 -1991. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HOWARD, Michael W.; WINDERQUIST, Karl. The Alaska Model: a republican perspective. In: Alaska’s Permanent Fund. New York: Plagrave Macmillan, 2012.

KATADA, Kaori. Basic Income and Feminism: in terms of “the gender division of labor”. In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. Disponível em:

<http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/katada.pdf>. Acesso em: 8 Ago. 2017.

MARICÁ. Lei Municipal nº 2.651, de 11 de dezembro de 2015. Jornal Oficial de Maricá, Poder Executivo, Rio de Janeiro, Maricá, Ano nº VII, ed. nº 622, p. 10, 16 dez. 2015.

MATOS, Patrícia de Oliveira. Análise dos planos de desenvolvimento no Brasil após o II PND. 2002. 203 f. Dissertação (Mestrado em Economia Aplicada) – Escola Superior de Agriculta “Luiz de Queiroz” da USP, São Paulo, 2002.

NASCIMENTO, Carlos Valder do. Finanças Públicas e Sistema Constitucional Orçamentário. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

              . A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade. In: Sociedade e Estado em transformação. Luiz Carlos Bresser-Pereira, Jorge Wilheim e Lourdes Sola. (Orgs.). São Paulo: Editora da UNESP, Brasília: ENAP, 1999.

          . Dominação de classe e sistema político:  sobre a seletividade das instituições políticas.     In: Problemas estruturais do Estado capitalista. Trad. Bárbara Freitag. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.

          ; RONGE, Volker. Teses sobre a fundamentação do conceito de Estado Capitalista e sobre a pesquisa política de orientação materialista. In: Problemas estruturais do Estado capitalista. Trad. Bárbara Freitag. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.

          , Claus. Basic Income and Labor Contract. In: Basic Income Studies. Berlin: 2008, vol. 3, Issue 1, april.

ORDOÑEZ, Ramona; ROSA, Bruno. Pré-sal cria novo mapa de royalties. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 17 set. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/pre-sal-cria-novo-mapa- dos-royalties-21832755>. Acesso em: 16 nov. 2017.

OZANIRA, Maria. The Conditionalities of the Bolsa Família: its conservative face and limitations to implement the Citizenship Basic Income in Brazil. In: XV International Congress of BIEN in Montreal, Canada, June 2014. Disponível em:

<http://basicincome.org/bien/pdf/montreal2014/BIEN2014_Ozanira.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2017.

PIOVESAN, Flávia; SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda Básica de Cidadania. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 7 jan. 2016. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/renda-basica-de- cidadania-18423318>. Acesso em: 7 mar. 2017.

RIOS-NETO, Eduardo L. G (Org.). A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça. Brasília: CNPD: UNFPA, 2006.

SIGHING for Paradise to Come. The Economist, Londres, 4 jun. 2016. Disponível em: < https://www.economist.com/news/briefing/21699910-arguments-state-stipend-payable-all-citizens- are-being-heard-more-widely-sighing >. Acesso em: 10 nov. 2017.

SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda Básica de Cidadania: a resposta dada pelo vento. Brasília: Senado Federal, 2006.

          . How and when will the Brazilian Law that institutes a Citizen’s Basic Income really be fully implemented? In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. Disponível em <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/suplicy_en.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2017.

TABATAI, Hamid. The Basic Income Road to Reforming Iran’s Price Subsidies. In: Basic Income Studies. Berlin: 2011, vol. 6, Issue 1, june.

VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017.

          . “Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?”. Revista Estudos Avançados. São Paulo: Instituto de estudos Avançados/USP, 2000, nº 40, de setembro/dezembro.

              . No Eurozone without euro-dividend, In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. Disponível em http://basicincome.org/research/. Acessado em: 08 de Agosto de 2017.

          . The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 172.

VICKERY, Tim. Tim Vickery: Por que o Bolsa Família é mais polêmico que as pensões militares?. BBC Brasil. Londres, 24 mar. 2017. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/blog-tim- vickery-39200859>. Acesso em: 22 Ago. 2017.

WIDERQUIST, Karl. Basic Income’s Third Wave. Open Democracy. Londres, 18. Out. 2017. Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/beyondslavery/karl-widerquist/basic-income-s- third-wave>. Acesso em: 10 nov. 2017.

WILKENS, Herbert. Basic Income and Minimum Wages – Temporary or Permanent Complements? In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. Disponível em: <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/wilkens.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2017.

 



O papel dos movimentos sociais na Constituinte de 1988[85]

 

Mahara Teles[86]

Thuane Nascimento[87]

Alice Maciel[88]

Luiza Corrêa[89]

Carolina Hennig[90]

Lucas Justino[91]

Victor Avila[92]

Iana Gonçalves[93]

Mariana Trotta[94]

 

 Resumo: Em 2018, a Constituição da República Federativa do Brasil completa 30 anos. Passadas essas três décadas é necessário resgatar o processo social, político e econômico que propiciou o reconhecimento de diversos direitos fundamentais e políticas públicas no texto constitucional. A CRFB/88 foi elaborada na segunda metade década de 1980, momento de intensa mobilização social. Todavia, seguindo as regras do jogo eleitoral à época, as diferentes setores da classe subalterna estiveram pouco representados nos espaços deliberativos da ANC, sendo excluídos do poder de voto. Apesar dessa baixa representação formal na constituinte, diferentes movimentos sociais ligados as demandas das classes subalternas utilizando as brechas existentes no Regimento Interno da ANC, conseguiram garantir direito a voz e a palavra participando de audiências públicas e propondo emendas populares. Pela perspectiva da teoria conflitiva, a produção do direito positivo ocorre por meio das lutas entre classes e grupos sociais, e foi através dessas que vários movimentos sociais se mobilizaram e vários encontros foram organizados para debater propostas para a constituinte. A intenção desse trabalho é apresentar alguns desses movimentos e como suas articulações foram fundamentais na formação do texto da Constituição que hoje chamamos de “cidadã”.

Palavras-Chave: Movimentos sociais; Assembleia Nacional Constituinte; Constituição cidadã.

1. Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), que está completando 30 anos, foi produzida em meio ao processo de redemocratização do Brasil e promoveu em seu texto a síntese dos interesses em conflitos existentes no período de instalação e funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88.

            Nesse período histórico, o Brasil vive momento de intensa mobilização social e política. No final da década de 1970, junto a articulação da “aliança democrática”[95]e da “Frente Nacional de Redemocratização”[96], ocorre a irrupção de greves no ABC paulistas e de vários movimentos sociais e comunitários de bairro emergindo com a “marca da autonomia e da contestação à ordem estabelecida” (SADER, 1989,p.35), podemos destacar a organização na década de 1970, da União das Nações Indígenas (UNI) (NEVES, 2004); em 1978, do Grupo Somos de Afirmação Homossexual (GREEN, 2014), a ascensão do movimento feminista dentre outros.

            Vários desses movimentos sociais tiveram entre suas várias preocupações nesse período o debate sobre a elaboração do novo texto constitucional brasileiro, pois em julho de 1985, o então Presidente da República, José Sarney, enviou por meio da mensagem n.330, a proposta de emenda constitucional (PEC) n. 43/ 85 ao Congresso Nacional para a instalação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC)[97].

            Alguns movimentos sociais, como os indígenas e suas entidades de apoio, reivindicavam a convocação de uma assembleia nacional constituinte exclusiva com eleições dos constituintes por meio de regras novas e específicas para a ANC, por exemplo, com a representação especial indígena, com assento direto e especial na ANC, feito por meio da participação de 10 indígenas, dois de cada região do país escolhidos pelas comunidades indígenas de cada região, não submetidos as eleições por meio do voto secreto e universal nem a vinculação político-partidária4 (LACERDA, 2008).

            Entretanto, a PEC já propunha a convocação de uma Assembleia constituinte não exclusiva na qual fosse garantida a “investidura de poder constituinte pleno nos Deputados Federais e Senadores escolhidos pelo sufrágio do povo brasileiro.” (NERIS, 2015 e LACERDA, 2008). Essa proposta foi debatida no Congresso Nacional e foi duramente criticada pelos movimentos sociais na época. No entanto, ao final dos debates, foi aprovada a Emenda Constitucional n.26, em 27 de novembro de 1985, com o modelo de congresso constituinte utilizando as regras do jogo eleitoral da época para a escolha dos constituintes na eleição que ocorreria em 1986, assim como permitindo a participação dos senadores escolhido ainda no período da ditadura empresarial-militar, denominados como biônicos. (LACERDA, 2008).

            Nesse contexto, seguindo as regras do jogo eleitoral do período, apesar do intenso debate e mobilização social, foram eleitos majoritariamente constituintes representantes do status quo brasileiro. Pilatti (1988 e 2008) aponta um caráter eminentemente conservador dos constituintes eleitos, na qual os partidos considerados de esquerda à época (Partido Comunista brasileiro, PCB, Partido Comunista do Brasil, PC do B, Partido Democrata Trabalhista, PDT, Partido Socialista brasileiro, PSB e Partido dos Trabalhadores, PT) e o setor progressista do PMDB não alcançaram 30% dos deputados. O denominado “Centrão”, organizado no curso da ANC, contou com a maioria dos deputados. Era composto pelos conservadores do PMDB[98], Partido da Frente Liberal (PFL), Partido Democrático Social (PDS), Partido Democrático Cristão (PDC), Partido Trabalhista brasileiro (PTB) e o Partido Liberal (PL).

            Dessa forma, a ANC de 1987/1988 foi majoritariamente composta por constituintes (deputados e senadores) conservadores, homens e brancos. Sarmento (2009 apud PIRES, 2012) destaca que foram eleitos 2% de constituintes negros, ou seja, 11 representantes negros entre os 559 membros da constituinte. Convém destacar que segundo o mesmo autor naquele período os negros (pretos e pardos) representavam aproximadamente 46% da população brasileira. Da mesma forma, foi pequena a eleição de mulheres nesse período, apenas 26 mulheres foram eleitas 6, representando 5,3% dos constituintes, dentre elas apenas uma mulher negra.

            Nas eleições de 1986, sete indígenas disputaram vagas como deputados federais constituintes, quarto desses candidatos foram escolhidos por suas comunidades com o apoio da União das Nações Indígenas (UNI). Entretanto, nenhum desses indígenas foi eleito, em razão da falta de recursos financeiros e também experiência em disputadas eleitorais, segundo a narrativa de alguns desses candidatos (LACERDA, 2008).

            Dessa forma, os diferentes setores da classe subalterna estiveram pouco representados nos espaços deliberativos da ANC, sendo excluídos do poder de voto. A composição da ANC reproduziu as assimetrias das relações de poder existem na sociedade brasileira à época, como ainda hoje.

            Entretanto, apesar dessa baixa representação formal na constituinte, diferentes movimentos sociais ligados as demandas das classes subalternas utilizando as brechas existentes no Regimento Interno da ANC, conseguiram garantir direito a voz e a palavra participando de audiências públicas e propondo emendas populares (OLIVEIRA, 2015 e LACERDA 2008). Vários movimentos sociais se mobilizaram e vários encontros foram organizados para debater propostas para a constituinte. Também promoveram ações coletivas de protesto, abraços ao congresso nacional, pajelanças, ocuparam as galerias do congresso acompanhando votações etc.

            O presente artigo analisa as mobilizações do movimento feminista, homossexual,   indígena, sindical e pela reforma urbana na ANC de 1987/88, apresentando resultados parciais da pesquisa “Movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte brasileira de 1987/88: direitos, reivindicações e ações coletivas” desenvolvida na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. O objetivo desse estudo é escovar a história a contrapelo, como nos ensina Walter Benjamin, tirando do silêncio as lutas do passado que ficaram esquecidas, pois quanto mais elas são escondidas mais se reforça a história dos vencedores (BENJAMIN, 2008).

            A pesquisa além de revisão bibliográfica, promoveu análise dos anais da constituinte e de documentos históricos de movimentos sociais e atualmente está realizando entrevistas com militantes de movimentos sociais e constituinte que atuaram na ANC de 1987/88. Nesse artigo, são apresentados os resultados obtidos por meio da revisão bibliográfica e dos anais da constituinte.

2. A articulação das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte

O movimento de mulheres e seus processos de articulações se dão antes do surgimento da constituinte de 1988, que é conhecida como o marco da positivação de direitos e de proteção para as mulheres. Para pensar o que seria demandado na ANC, mulheres de todo o Brasil se reuniram pra formar o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM)[99] em 1987, onde foi discutido quais reivindicações iriam ser pleiteadas. Estas foram materializadas em uma carta intitulada “Carta das Mulheres aos Constituintes”[100].Antes do Conselho, em diversos estados do Brasil as mulheres se reuniram pra apresentar suas demandas e escolher as delegadas que as representariam no Encontro Nacional, que aconteceu no ano de 1986, em Brasília.

As mulheres negras também participaram do período pré-constituinte, organizando-se não apenas junto aos companheiros do movimento negro, mas também especificando a pauta da mulher negra. Entretanto, não eram acolhidas em todos os espaços da militância feminista. Um exemplo foi o “Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo”, que foi criado por reinvindicação de grupos feministas e era formado por 32 mulheres brancas. As mulheres negras se indignaram e criaram o primeiro Coletivo de Mulheres Negras em 1984. A partir dessa e outras articulações conseguiram encaminhar 2 representantes, Lelia Gonzalez e Benedita da Silva, ao Conselho Nacional Mulher e Constituinte para abordar a questão racial, que também participaram do “Encontro Nacional Mulher e Constituinte”.

Segundo SILVA (2012) neste encontro participaram duas mil mulheres que se dividiram em doze grupos de trabalho (GTs), organizados por temas, para sistematizar, discutir e deliberar sobre as propostas a serem encaminhadas à Assembleia Constituinte. Tais grupos, denominados ”comissões”, eram constituídos pelas diversas participantes e organizados por uma coordenadora e uma relatora, além de contar com o auxílio de advogadas especialistas nas áreas. Na Comissão Discriminação Racial Silva e Gonzalez inscreveram importantes demandas das mulheres negras relacionadas à educação com ênfase na igualdade de gênero e raça e discriminação racial que foram igualmente encaminhadas ao Presidente da República e ao Congresso Nacional. (OLIVEIRA, 2015)

A campanha[101] teve o lema “Constituinte pra valer tem que ter direito da mulher”. Quando a carta ficou pronta, a panfletaram como uma cartilha; além de terem distribuído às mulheres articuladas, para que cada uma enviasse a carta, com sua assinatura, ao deputado que tinham ajudado a eleger. Esta foi uma das formas de pressão e conscientização que as mulheres de utilizaram. Receber os parlamentares no aeroporto local com protestos, colar cartazes com o rosto e nome dos deputados que votaram em alguma proposta desfavorável, envio de telegramas da base eleitoral, mapeamento de cada deputada eleita, são exemplos de como as mulheres se mobilizaram de fora da Assembleia.

As principais bandeiras do movimento a época eram a licença maternidade de 120 dias, direito a posse da terra ao homem e a mulher, igualdade de direitos e de salários entre homem e mulher e garantir mecanismos para coibir a violência doméstica. Foram enviadas para o Congresso Nacional mais de 112 emendas aditivas ou substitutivas, entre 1986 a 1988, visando a judicialização dessas e outras demandas, das quais 80% foram positivadas (CABRAL, 2008).

As mulheres conquistaram, na Constituinte de 1988, a igualdade jurídica entre homens e mulheres, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio da não discriminação por sexo e raça-etnia, a proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho e o estabelecimento de direitos no campo da reprodução. Não foram alcançados objetivos como garantais no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em particular quanto ao aborto, por causa das resistências oferecidas por alguns dos demais constituintes. (apud Agência Senado)[102]

Representantes do movimento de mulheres justificam o número, consideravelmente alto, de demandas atendidas e positivadas através da participação significativa das mulheres de todo o estado nacional. Os movimentos de mulheres de todo o país estavam em sintonia e isso garantiu uma unicidade que fora essencial para a construção de um movimento nacional coerente e coeso. Por outro lado, apesar de terem tido muitas pautas atendidas, como supracitado, houve pautas que não foram sequer discutidas referentes a direitos sexuais e reprodutivos (OLIVEIRA, 2015). Isso se dá pelo fato de que as mulheres preferiram trabalhar as pautas que eram consenso entre todas, pra que o movimento fosse mais coeso e recebesse aderência, o que não significa que o assunto não tenha sido debatido. Amelinha Teles conta que um grupo de mulheres apresentou uma emenda popular pela legalização do aborto.

Importante ressaltar que, apesar da unidade dos movimentos de mulheres ser anterior à Constituinte, a “bancada feminina” das parlamentares não seguiu o mesmo caminho. Adriana Vidal Oliveira chama a constituição da bancada de “acidental”, pois não foi uma articulação anterior, formada intencionalmente. A autora destaca que “conforme exposto, as mulheres que compunham a bancada eram muito diferentes e, em sua grande maioria, não estavam na Assembleia Constituinte em virtude de interesse em defender projetos que envolvessem direitos das mulheres.” (OLIVEIRA, 2015)

 Diferentemente de outros movimentos sociais que se articularam pra eleger representantes e, para além disso, sistematizaram os cargos dos deputados em cada comissão e subcomissão; a convergência das mulheres foi fruto do “processo de exclusão” (BUTLER apud Oliveira, 2015) a que foram submetidas após os trabalhos serem iniciados: além do ambiente ser formado majoritariamente por homens (as mulheres eram apenas 5%: 25 deputadas); os ritos, as dinâmicas e a forma de fazer política eram essencialmente masculinos. Como aponta Fanny Tabak, poucas deputadas se consideravam feministas – Maria Abigail (PSB) e Rose Rosilda (PMDB) são as duas únicas que se autodeclaram. Mas isso não impediu que, em virtude dos trabalhos, fosse construída uma identidade de gênero, que proporcionou às mulheres uma atuação considerável na ANC. Céli Jardim aponta que, além do ambiente da Câmara – e a consequente provocação da unidade entre as deputadas, outros dois fatores foram responsáveis pela união das mulheres: a atuação do CNDM e as três emendas populares que foram escritas pelos movimentos de mulheres.

O movimento de mulheres foi um exemplo vitorioso de que a pressão externa vinda da articulação dos sujeitos coletivos consegue obter transformações: no ambiente interno, a contribuição pra formação da “Bancada feminina” é o maior exemplo; no que diz à organização da Assembleia, as mulheres disputaram os ritos e os protocolos, como foi o debate pra formação do nome da comissão[103]; e, principalmente, as mulheres conseguiram efetivar direitos que são reivindicados até hoje no que diz respeito à igualdade de gêneros e uma sociedade menos patriarcal.

3. Movimento Indígena na ANC/88

A história dos movimentos indígenas no Brasil em nada se confunde com a história do Estado brasileiro. Enquanto o Estado, sempre a pretexto de proteção mas imbuído de um patriarcalismo estrutural, jamais se comprometeu em respeitar a autonomia política desses povos, os movimentos indígenas se articulavam para conquistarem um espaço dentro desse aparato estatal objetivando seus direitos originários que em última instância, se traduzem no direito de ser e de resistir.

Uma análise estrutural das políticas de Estado denota que a exclusão dos povos indígenas não é recente afinal, a história do Brasil já se inicia através do etnocídio. Entretanto, o recorte histórico da pesquisa tem o ponto de partida no período pós-ditadura.

Uma estimativa feita pela Comissão Nacional da Verdade apurou durante a Ditadura Empresarial Militar 8350 mortes entre cerca de 10 etnias indígenas. O dado é uma das evidências de uma política estatal etnocida, o que explica em grande parte o surgimento do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). A tutela indígena que antes já era juridicizada, passa a ser também institucionalizada. O objetivo era transformar o indígena em um protótipo de “cidadão civilizado”.

Com o fim da Ditadura empresarial-militar, as lideranças indígenas começam a se articular através da UNI (União das Nações Indígenas) e do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Antes da convocação da Constituinte, o movimento indígena entendendo a necessidade da existência de uma representação especial na Assembleia, lança uma proposta de representação especial apoiada pelo OAB-RJ e outras entidades jurídicas. A ideia era que tivessem representantes indígenas levando em conta o número e a composição pluriétnica dessas populações. Todavia, quando é publicada a Emenda Constitucional n° 26, os movimentos sociais se deparam com uma Constituinte composta por deputados e senadores eleitos no pleito de 86 além dos biônicos. O movimento indígena teve dificuldades em eleger candidatos. De modo independente candidataram-se Mario Juruna que tentava a reeleição pelo PDT, Idjahuri Karajá PMDB e Marcos Terena PDT. Escolhidos pelas comunidades e articulados pela UNI junto ao PT concorreram Álvaro Tukano, Biraci Brasil Yawanawá, Davi Yanomami e Gilberto Pedroso Lima Macuxi. As campanhas partidárias na época, segundo Rosane Lacerda, investiram acentuadamente nas eleições pois os eleitos seriam também constituintes. Portanto, em termos de representação do total de constituintes nenhum deles era indígena.

A negação ao direito de representação não enfraqueceu as mobilizações do movimento. Pelo contrário, diversas plenárias nacionais compostas por movimentos sociais apresentavam suas demandas. Em maio de 1986, a UNI se reúne em São Paulo para discutir um Programa Mínimo de Campanha Pré-Constituinte e como resultado, o movimento indígena prepara uma proposta pronta para levar à Assembleia. Os principais pontos na proposta foram o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas como primeiros habitantes do Brasil, demarcação e garantia das terras indígenas, reassentamento em condições dignas e justas dos posseiros pobres que se encontravam nas terras indígenas, reconhecimento e respeito às organizações sociais, culturais dos povos indígenas com seus projetos de futuro, além de garantia da plena cidadania.

Tendo sob foco essas principais reivindicações, o andamento da pesquisa mostra que algumas dessas demandas foram particularmente não atendidas. Apesar de o direito originário à terra ter sido expressamente reconhecido na Constituição, a Constituinte teve dificuldades em admitir por exemplo, o reconhecimento constitucional das Nações Indígenas e o caráter tradicional das terras indígenas. Dentro das 8 subcomissões o movimento indígena apresentou uma proposta unificada à “Subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias” contendo demandas mais gerais e outra articulada através do CIMI à “Subcomissão da nacionalidade, da soberania e das relações internacionais” que se referia à denominação dos povos originários como Nações Indígenas. Muito se discutiu sobre os direitos territoriais indígenas. O resultado da análise dos anais da Constituinte evidenciou sérias resistências aos direitos territoriais. As reservas indígenas são constantemente citadas como impasse à ideia de desenvolvimento econômico dos estados. Para além disso, o reconhecimento das Nações Indígenas é tido como uma afronta à ideia de soberania nacional, uma herança marcante do militarismo.

4. O movimento de trabalhadores e trabalhadoras na luta pela efetivação dos direitos da CF/88

O período histórico do processo de redemocratização pré-Constituinte nos apresenta uma atuação coletiva de aspecto fortemente politizado do sindicalismo nacional, cenário de ampla deflagração de greves paredistas e unidade de mobilização assentada em manifesta consciência de classe. A narrativa apropriada se dá nos termos de uma retomada da autonomia coletiva dos trabalhadores, na emergência da elaboração de uma identidade e de projetos políticos por um sujeito coletivo que despontava na luta e nela atribuía o sentido de transformação social, utilizando as categorias trabalhadas por Eder Sader (1988).

A evidente acepção do desenho institucional trabalhista brasileiro em seu sentido histórico é de, não diferentemente de outras economias nacionais marcadas pela relação de produção capitalista, uma ‘‘mediação estatal nas relações da iniciativa privada com seus empregados, organizando o desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo em que realiza a integração regulada das classes trabalhadoras no cenário nacional’’ (DA SILVA, 2008, p.243). O fenômeno sindical fora tomado pela estrutura do Estado e nela internalizado na Era Vargas, pela qual se depreendeu uma tradição de um sistema laboral corporativo. Essa qualificação é adequada por identificar características como a unicidade sindical e o enquadramento obrigatório nas estruturas legais, além da retenção dos conflitos coletivos trabalhistas a um escopo iminentemente estatal e jurisdicional, com a extinção dos conselhos de fábrica, a incontestabilidade da autoridade empresarial e a perpetuação de uma ideologia de colaboração de classes. Na dimensão jurídica, a concepção contratualista fundada na autonomia privada é marcante de uma cooptação das relações laborais pelo direito civil.

Vale-se notar que enquanto a conflituosidade político-social tenha seus períodos de efervescência e renovação na seara do movimento sindical durante o século passado, é evidente que a instauração do regime militar tenha representado um recrudescimento destes mecanismos institucionais, em resposta ao momento de ascensão das demandas de trabalhadores e trabalhadoras que o precedeu. O período foi marcado por um intervencionismo simultaneamente desenvolvimentista no modelo econômico e repressor nas relações coletivas de trabalho, dado por um movimento de modernização conservadora e concentradora de renda. Redefinindo os sentidos da estrutura sindical, a que havia sido atribuída certo significado de resistência pelos trabalhadores de então, a ditadura cassa dirigentes e nomeia interventores nos sindicatos. Marca-se um processo de uma construção de legalidade que dificultava a organização e amarrava as possibilidades legítimas de ação, tornando a estrutura sindical uma extensão da ordem governamental.

A década de 70 é marcada pelos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em sua mobilização pela abertura de canais de negociação direta, e especialmente o ano de 1978 carrega o mérito do ressurgimento do movimento operário, dado pela espontaneidade das ondas grevistas no ABC Paulista. As circunstâncias dos indícios de estagnação econômica e transição democrática, além do próprio afastamento da estrutura sindical do chão de fábrica, são atribuídas ao fôlego inédito do movimento, que se estabeleceu como força de oposição ao regime. A mobilização das categorias fora dos limites formalistas foi reativa à estrutura sindical assistencialista, que ‘‘tinha se transformado em um posto de saúde ou uma clínica odontológica qualquer’’, de acordo com discursos da época que podemos ver ao longo de clássicos documentários como Linha de Montagem (1981).

A bandeira da autonomia coletiva ganha espaço, uma concepção de associação que busca libertar-se do assistencialismo estatal em alternativa ao abstencionismo da autonomia privada de mercado, suprassumindo a dicotomia público e privado. A pretensa superação do paralelo entre negociado e legislado parece um terreno perigoso aos interesses da classe trabalhadora, porém tal bandeira traz consigo as políticas de liberdade e autonomia sindical, autotutela da ação sindical e direito de greve, organização no ambiente de trabalho e negociação coletiva – instrumentos que, resguardada a estabilidade no emprego, buscam munir os trabalhadores da capacidade de oposição ao patronato, visando um equilíbrio na correlação de forças entre capital e trabalho.

A conflagração de uma organização ampla da classe trabalhadora significou a formação desse ‘‘novo sindicalismo’’ (Sader, 1988) que buscava a democratização das relações de trabalho, que fundamentou a gestação das centrais sindicais. Na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora de 1983, surge a CUT e em 86, a CGT, organizações de grande capital político e social que influiriam significativamente nos processos que se sucederiam.

A ação sindical da década de 1980 foi marcada por um destaque na interposição de dissídios coletivos, se utilizando dos novos mecanismos processuais de representação a fim de canalizar as demandas no Judiciário. A perspectiva de Edward Thompson (1975) sobre o domínio da lei se faz pertinente no contexto, dada a instrumentalização pelos atores sociais da norma de direito, ainda enquanto instituto ideológico racionalizador e reprodutor do sistema de produção hegemônico, tomada enquanto espaço de disputa das correlações de forças fáticas para valer suas demandas; e assim como critica-se tal postura do movimento pelo teor corporativo de judicialização dos conflitos que esvaziariam a ação política coletiva, à mesma pode ser atribuído a edificação de um ethos politizado da Justiça do Trabalho, operacionalizando outro espaço de conflito para a classe trabalhadora. Não obstante, também observa-se um crescimento no associativismo patronal, traduzido na produção de conhecimento em torno das relações de trabalho, na capacitação assessorial para atuação nesses dissídios coletivos, na construção de entidades unificadas e no lobby político.

O período de ascensão sindical culmina com a Assembleia Constituinte, instalada em março de 1987. A própria instância procedimental da Constituinte se apresentava como suscetível ao jogo político, uma vez que era interessante cooptar os espaços da relatoria, direção e sistematização das comissões temáticas para ter qualquer incidência sobre o projeto aprovado. A CUT, um ano antes, em seu 2o Congresso, anunciava a construção se uma “campanha nacional de lutas” indicando uma greve geral como principal instrumento de luta dos trabalhadores naquela conjuntura. O objetivo maior era a participação popular no processo, criando “condições favoráveis para a luta em defesa dos interesses da classe trabalhadora na Constituinte”.

Os Plenários Pró-participação popular na constituinte eram também ferramentas importantes para a articulação dos trabalhadores. Neles, as entidades como sindicatos e associações de moradores encaminhavam moções e mensagens da categoria para as assembleias, de modo a pressionar os deputados com grande mobilização. A atuação das entidades sindicais se deu de forma notadamente confluente em diversos aspectos, cuja articulação se deu em grande parte pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), mérito de uma capacidade agregadora pela construção de consensos entre as entidades e de uma atuação lobista profissionalizada que garantiu a positivação de estatutos como a garantia contra a dispensa imotivada, piso e irredutibilidade salarial, jornada de 44 horas semanais e assim segue-se um longo rol. Precisamos esclarecer, no entanto, que divergências entre a representação dos trabalhadores era presente e relevante. A cisão fundamental que representou certa manutenção estrutural das relações jurídicas laborais se observa no ponto de dissidência entre CUT e CGT em relação à organização sindical. Enquanto o anteprojeto da comissão favorecia a proposta de autonomia sindical, podendo as entidades sindicais negociar livremente quaisquer matérias que não contrariassem as normas de proteção ao trabalho, isso fora derrubado posteriormente pela articulação do Centrão com as representações empresariais, convergindo com a própria CGT em sua bandeira de manutenção do sistema jurídico corporativista em alinhamento à burocracia ministerial, assim constitucionalizando a unicidade sindical e a contribuição sindical obrigatória. Esse instituto falha duplamente em desservir à liberdade negativa de associação e à liberdade positiva de ação sindical; ‘‘A Assembleia Constituinte brasileira de 1988, apesar de ter cantado em prosa e verso que asseguraria a liberdade sindical, na verdade a violou’’ (2004, p.364 apud DA SILVA, 2008, p.94).

Dessa forma, a Constituição de 1988 apresenta-se como documento histórico, retrato de um momento de organização decisiva e categórica da classe trabalhadora, que imprimiu na ordem jurídica uma série de direitos determinantes para a dignidade do trabalho em sua melhoria de condições, a um tempo que reproduziu institutos de conservação do status quo corporativo que lesam o princípio da autonomia coletiva e de liberdade sindical e se traduzem enquanto amarras à potencialidade organizativa da classe, que significaria um horizonte de mudanças estruturais, institucionais e sociais na concepção das relações coletivas de trabalho no Brasil.

  1. O movimento de luta pelo direito à cidade na CF de 1988

Como alerta David Harvey, a ideia do direito à cidade não surge de problematizações acadêmicas ou de elaborações técnicas, mas, fundamentalmente, das ruas, dos bairros, “como um grito de socorro” (HARVEY, 2014). Seria, para o autor, ” muito mais do que a liberdade individual para acessar os recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade”. No entanto, a primeira manifestação acerca de uma reforma urbana partiu de setores técnicos, no período anterior ao golpe militar, como um dos projetos possíveis para as reformas de base do governo Jango (1963-64). Trata-se do Seminário Reforma e Habitação, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), em 1963, com a presença majoritária de arquitetos e intelectuais. Apesar desta composição social, o evento é considerado um marco para a historicização da questão urbana, tendo as suas ideias motivado os novos movimentos sociais que se insurgem no final do regime militar (período em que os problemas urbanos se intensificavam concomitantemente ao crescimento desenfreado das cidades).

Neste sentido, após o golpe militar (1964) o projeto das reformas é duramente interrompido. De forma que, ao final da ditadura, o país já não mais se encontrava em transição socioterritorial, afirmando-se como um país predominantemente urbano. Sendo assim, problemas como o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano eram resolvidos por “especialistas pouco engajados na realidade sociocultural local” (MARICATO, 2013) como um claro reflexo da falta de autonomia sobre os processos decisórios e do planejamento centralizado na figura dos generais. Esta situação de isolamento da população foi combustível para que, na década de 80, houvesse o surgimento de novas mobilizações, de ações coletivas e de novos movimentos sociais urbanos. Neste clima de avanço significativo da participação política no Brasil, é criada a Articulação Nacional do Solo Urbano, em 1979, que, posteriormente, organiza o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MARICATO, 2013). O MNRU se notabilizará, como será demonstrado posteriormente, como um catalisador das pautas urbanas acumuladas pelos novos movimentos sociais que floresciam pelo país.

É neste período de mobilizações que, “motivado pela percepção de que a questão urbana pudesse empolgar as camadas populares em torno de lideranças da oposição ao regime autoritário” (RIBEIRO E CARDOSO, p. 13 apud BASSUL), é apresentado, ainda na ditadura, o anteprojeto de lei federal sobre desenvolvimento urbano (PL 775/83) pelo Ministro do Interior, que representou um marco na discussão jurídico-institucional sobre a questão urbana no Brasil (COSTA, 2012). Neste sentido, cumpre o papel do MNRU em centrar as lutas urbanas desempenhadas pelos novos movimentos sociais no final da década de 70 em uma atuação organizada em prol da garantia de instrumentos jurídicos que dessem significado as lutas desempenhadas até então. Esta tendência se intensifica após a confirmação da Assembleia Nacional Constituinte. Com isso, observa-se uma participação intensa em congressos que reuniam diversas entidades de base, entidades de classe que se aglutinaram em um movimento unificado, o MNRU:

Eu gostaria de inicialmente dizer que nós todos aqui fazemos parte, como já deu para ver, de um movimento nacional heterogêneo, que é formado por representantes de entidades comunitárias, entidades de bases, entidades de classes, enfim, diferentes formas de participação na sociedade, diferentes tendências, diferentes condições econômicas e sociais. E nós achamos que aí está uma das riquezas desta contribuição que hoje trazemos para os Srs. Constituintes, para este trabalho tão importante, que é o de passar a limpo este País, elaborando uma Constituição à altura dos tempos, contemporânea, moderna, que civilize minimamente as relações sociais neste País. (Ata de audiência da Subcomissão de Questão urbana e Transportes da Assembleia Nacional Constituinte, 1987, p. 189).

Como grande exemplo da organização dessas entidades representadas, destaca-se o III Congresso Nacional de Associações de Moradores (CONAM), realizado no mês de março de 1986, em Brasília, com a presença e participação de 7.500 delegados, 3 por associações de moradores de todo o território nacional que aprovou 24 propostas, que, em síntese, centravam suas proposições em dispositivos que demandavam a “gestão democrática das cidades”, através de conselhos deliberativo-participativos, o direito ao usucapião, à moradia e, fundamentalmente, à cidade, uma vez que haviam artigos que tratavam de urbanização das favelas e até a estatização dos transportes coletivos. Tais proposições têm grande proximidade, por exemplo, com o documento apresentado na Assembleia Nacional Constituinte pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e com a proposta de Emenda Popular pela Reforma Urbana realizada pelas entidades aglutinadas no MNRU, demonstrando uma confluência das pautas das diferentes articulações à época sobre a reforma urbana.

As movimentações assumem, portanto, a estratégia de influir sobre rumos da ANC. Esses novos sujeitos sociais urbanos enxergavam na ANC uma forma de exigir direitos pendentes e que foram negligenciados pela ditadura:

(…) o que se pede aos Constituintes, é isso que estamos discutindo, é a nossa vontade, é o nosso anseio, é o nosso desejo, é aquilo que estamos sentindo na pele no dia-a-dia e queremos que seja colocado na lei: que tenhamos direito à habitação, para não acontecer o que está havendo aí: a palavra invasão e a palavra resistência são crimes. Só que, para nós, crime é a palavra despejo. (Ata de audiência da Subcomissão de Questão Urbana e Transporte, 1987, p. 189).

A subcomissão de questão urbana e transportes, instaurada em 7 de abril de 1987 teve 20 reuniões ordinárias, uma extraordinária e a realização de um anteprojeto. Fizeram exposições aos constituintes o IAB (1 reunião ordinária) e os movimentos organizados pelo MNRU. No entanto, o que se observou foi um anteprojeto da subcomissão desarticulado com as demandas apresentadas por estas entidades.

As proposições do IAB, por exemplo, incluíam dispositivos como a possibilidade de usucapião urbana, a iniciativa legislativa urbana popular e a participação da população na criação das políticas urbanas. De mesmo modo, a Emenda Popular tinha por objetivos: a criação de instrumentos que possibilitassem a regularização de áreas ocupadas, bem como a aplicação da função social da propriedade e proteção urbanística; a criação de políticas públicas de habitação; o estabelecimento da natureza pública dos serviços de transporte; a criação de conselhos democráticos e a realização de plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular de forma a garantir a gestão democrática da cidade (BASSUL, 2002). Os objetivos da Emenda, ressalta-se, vinham como forma de instrumentalizar os princípios do MNRU, que eram garantir a gestão democrática da cidade, o direito social à moradia digna e a função social da propriedade (BASSUL, 2002).

Entretanto, a composição dos constituintes, em grande parte de partidos de centro-direita, e a correlação de forças claramente desfavorável aos movimentos populares (COSTA, 2014) rechaça parte dessas propostas, e o texto final do Capítulo sobre Política Urbana (arts. 182 e 183) submete a função social da propriedade – principal demanda dos movimentos – à existência de plano diretor municipal, questão não apresentada nem pelas entidades técnicas  – como o IAB – nem pelo MNRU na Emenda Popular. Além disso, a redação final represa a eficácia das penalidades propostas à regulamentação em lei federal (BASSUL, 2002), o que só ocorre 13 anos depois com a promulgação do Estatuto da Cidade em 2001. Por fim, o texto constitucional relega para lei posterior a criação de instrumentos efetivos para a política de desenvolvimento urbano, como demonstrado no seu artigo 182, em descompasso com a manifestação das entidades – que propunham instrumentos de política urbana bem definidos já no texto constitucional.

Em relação ao texto final da Constituinte e à efetividade dos dispositivos sobre política urbana para a construção de uma cidade mais democrática, mais pensada por e para quem a constrói e que nela habita, sonhando à si e à cidade, diversos atores tem uma interpretação crítica sobre o processo, como é o caso de Lurdinha, direção nacional do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e participante do Movimento dos Posseiros à época da Constituinte:

(…) Se a gente tivesse permanecido na rua a gente teria acontecido. Se não tivesse botado tanta coisa na Constituição, a gente teria avançado mais. Olha, se não tivesse botado o plano diretor, a cidade não tava do jeito que tá, porque nós ficamos achando o tempo inteiro que tinha um espaço (COSTA, 2012)

Percebemos, deste modo, a crítica em relação à aposta jurídico-institucional feita pelos movimentos à época da Constituinte, que geraria um esvaziamento da luta política (COSTA, 2012). Entretanto, apesar das avaliações, o capítulo da reforma urbana é recebido com entusiasmo pelos movimentos sociais, e a luta por sua efetivação é encampada por eles, como é o caso do FNRU (Fórum Nacional de Luta pela Reforma Urbana), devendo ser reconhecido o mérito destes em assegurar direitos configurados na Constituição após quase 10 anos em uma “estranha convergência de neoliberalização e democratização no Brasil” (HARVEY, 2014).

  1. Atores (in)visíveis: o movimento homossexual na Constituinte de 1988

Para os propósitos da discussão do presente artigo será adotada a categoria de “movimento homossexual”, enquanto categoria histórica e representativa da época retratada durante a Assembleia Constituinte de 1987/88. É importante frisar que o movimento que se formava na época não trabalha com categorias como a das e dos transexuais, da maneira como a conhecemos. E, para além das próprias categorias utilizadas, o discurso utilizado e as pautas que eram exigidas em muito divergem da ideia atual que se possui de um movimento LGBT (a sigla L apenas seria adicionada em 1993, no VII Encontro Brasileiro de Homossexuais e a adoção do termo LGBT só seria feita em 2008, na Conferência Nacional GLBT (FACCHINI, 2014).

O movimento homossexual no Brasil começou a partir de uma organização que não era necessariamente política e sim a partir de entidades associativas de pessoas que tinham a homossexualidade como aspecto compartilhado de suas vivências. Era precisamente o caso das turmas de amizade e relacionamento e fã clubes de cantoras de música popular, como Marlene e Emilinha Borba (SIMÕES E FACCHINI, 2009 apud GOMES, 2014). Portanto, é importante perceber que antes das experiências enquanto um movimento político organizado com pautas específicas, o movimento homossexual se deu a partir do reconhecimento da marginalização vivida por essas pessoas. Após isso se teve início uma organização mais política de fato, com um início marcado por militantes de esquerda trazendo suas questões para dentro dos partidos.

A trajetória política percorrida em torno da homossexualidade no Brasil emerge no final da década de 1970 decorrente de uma demanda de uma organização da esquerda que visava a uma liberalização política cada vez mais ampla com o surgimento de um partido dos trabalhadores com bases socialistas.[104] Foi em uma reunião nacional que um participante sugeriu que os direitos dos homossexuais fossem incluídos na lista das reivindicações democráticas, no manifesto da organização. No entanto, não foram apenas os direitos dos homossexuais que foram reivindicados, mas também de outras minorias reconhecidas, como negros, mulheres, índios. Ao final da reunião, todavia, a presidência da assembleia, apesar de concordar prontamente com a sugestão, incluiu ao programa final apenas: Nós somos contra a discriminação das mulheres, negros, índios e etc (GREEN, 2003).

Como traz Marisa Fernandes, a partir do surgimento do Grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual de São Paulo, em meados de 1978, tem-se início um movimento político mais plenamente articulado, em conjunto com o Lampião da Esquina, que começa a ser publicado enquanto jornal voltado especificamente para um público homossexual. Mais tarde, a facção lésbico-feminista do grupo se tornará independente do SOMOS em maio de 1980, com o nome Grupo Lésbico Feminista, mais conhecido como LF, possuindo registros como cartas, informativos, comunicados, panfletos e boletins publicados por lésbicas, como o Chana com Chana e artigos publicados na grande imprensa e no Lampião da Esquina (que começa a ser publicado em 1978), além de uma participação organizada e marcante no I Encontro Brasileiro de Homossexuais, realizado em São Paulo em abril de 1980. Esse encontro, embora fechado, contou com a presença de mais de 200 indivíduos e nove grupos participantes (GOMES, 2014).

A dificuldade inicial deste primeiro grupo de lésbicas foi estar diante de um estado político-militar, de direita. A segunda dificuldade foi o enfrentamento com outra forma autoritária de se fazer política, a da esquerda ortodoxa, que estava focada somente nas lutas de classe e não entendia a necessidade de se pensar a sexualidade, o racismo, o machismo e o patriarcado, conjuntamente com as demais causas sociais, era um instrumento fundamental para a mudança da estrutura social e o fim da expressão existente. (GREEN E QUINALHA, 2014).

Apesar da considerável articulação presente no movimento lésbico e de travestis, percebe-se que não se possibilitou uma transição dessa presença nas ruas para uma atuação de liderança dentro do movimento homossexual. Embora os editores da revista Lampião da Esquina tenham aberto uma edição especificamente dedicada ao amor entre mulheres, essa atitude acaba por declarar ainda que implicitamente que o conteúdo cotidiano da revista era voltado aos homens gays. O artigo em questão inclusive se inicia fazendo menção ao fato das lésbicas terem “chegado atrasadas ao Lampião”. (GREEN E QUINALHA, 2014).

Durante a ditadura militar, a partir de maio de 1979 se iniciaram as Operações de Limpeza e Rondão, atacando o centro da cidade, em especial o Largo do Arouche, que era uma área frequentada fortemente por prostituas, travestis, lésbicas e gays. Entretanto, nota-se no relato de Marisa Fernandes sobre como essa violência seguia em grande parte a lógica de atacar espaços periféricos, daqueles com menor poder aquisitivo. Casas de luxo como a boate Moustache, que atendia uma clientela quase que exclusivamente lésbica, tinha operações abortadas justamente por se tratar de um ambiente “nobre”.

Dessa forma, o mosaico que se desenha é de um movimento que, ainda incipiente na sua veia política, já se encontra dividido. Há divisões entre o risco de ser um homossexual rico, que pode frequentar seus ambientes de luxo, e um homossexual pobre, que pode vir a sofrer batidas no Largo do Arouche. Também há divisões entre o gay homem, que encontra seu protagonismo no SOMOS e no Lampião da Esquina, enquanto mulheres lésbicas se sentem obrigadas a formar suas próprias organizações para que possam ser ouvidas. Temos a divisão entre o gay negro e o gay branco, que acabava por ser a maioria no movimento e, portanto, pautar suas próprias questões. E, mais do que isso, temos nesse ambiente as travestis, que muitas vezes acabam por interseccionar todas as vivências mais complexas e marginalizadas do movimento, sendo, além de travestis, também negras e pobres se tornando o grupo mais vulnerável tanto quanto à perseguição durante a ditadura quanto ao risco de sua própria existência.

Talvez a maior expressão desse protagonismo homossexual masculino e branco seja a atuação do movimento homossexual na Constituinte de 1987/88. Com o fim do Lampião em junho de 1981 e do pioneiro grupo SOMOS em 1983, ocorre uma mudança na dinâmica do movimento, que passa a ser mais preocupado com a organização institucional e a garantia de direitos (GOMES, 2014). Liderado pelo grupo Triângulo Rosa e pelo Grupo Gay da Bahia, a principal pauta junto à Assembleia Constituinte era para a inclusão da proibição da discriminação por orientação sexual, sendo que o termo foi encontrado como consenso entre aqueles que a encaravam como uma opção e aqueles que viam a condição homossexual enquanto inata.

A questão homossexual foi tratada na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, sob fortes protestos de diversos deputados que a compunham, justamente por considerarem que a própria abordagem do tema já desmereceria a própria comissão. João Antônio Mascarenhas, no seu livro “A Tríplice Conexão”, trabalha justamente com os fatores que ele acredita caracterizaram o desprezo dos deputados pelo tema: um conservadorismo político, o falso moralismo e o machismo extremamente enraizados na cultura brasileira e refletidos nos seus deputados. O Triângulo Rosa à época era constituído há menos de uma década, porém a única fala permitida a um membro do movimento homossexual foi justamente a de Antônio Mascarenhas, que era seu Diretor de Comunicação Social.

Durante a sua fala, percebe-se de maneira clara a divisão presente no movimento homossexual da época. Sua fala se deu no dia 27 de abril de 1987 na 8ª Reunião Ordinária da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias e, no dia seguinte, na 12ª Reunião Ordinária da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, com o nome de “O homossexual e a Constituição”. Durante sua fala defendendo a proibição da discriminação por orientação sexual, ele tenta desassociar a ideia do homem gay da ideia de “travesti-prostituto”, argumentando para que não seja ligado àquele grupo: (VILALON, 2015)

É comum fazerem uma falsa identificação entre o homossexual e o travesti-prostituto. O Jornal do Brasil, que é um dos jornais mais respeitados do País, põe assim: “Operação pudor: polícia prende prostitutas e travestis”. Em seguida, vem no corpo da notícia onde os travestis já não são mais travestis. Primeiro eles não eram travestis, eram travestis-prostitutos. Realmente, a qualificação deles não era importante. No caso, era a prostituição, não o fato deles se vestirem de mulher. Prostitutas, continuam no corpo da notícia, como prostitutas. E os travestis-prostitutos passam a ser, pura e simplesmente, os homossexuais. O leitor desavisado lê aquilo e termina pensando que homossexual é travesti-prostituto. O que é uma coisa horrorosa. E é uma coisa que fica muito clara para nós, porque há o preconceito do repórter além da discriminação. (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE (ATAS DE COMISSÕES). Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, p. 101)

Embora a demanda existente à época não tenha sido atendida e a própria fala do movimento tenha sido atacada de diversas maneiras, a presença de um movimento organizado e presente foi extremamente importante para a própria declaração de existência daqueles que aqueles grupos representavam.

Conclusão

O presente artigo apresentou resultados parciais de pesquisa sobre as mobilizações do movimento feminista, homossexual, indígena, sindical e pela reforma urbana na ANC de 1987/88, identificando que os debates no âmbito na ANC apresentaram momentos de conflitos e consenso a respeito das reivindicações desses movimentos sociais. Em alguns temas as reivindicações foram mais recepcionadas como as do movimento feminista, e outras foram totalmente invisibilizadas como do movimento homossexual. Por outro lado, reivindicações dos movimentos indígenas foram reconhecidas, promovendo mudanças paradigmáticas no texto constitucional. As pautas do movimento sindical foram parcialmente reconhecidas. Da mesma forma, apesar dos limites, pela primeira vez, uma constituição brasileira tratou da pauta da Reforma Urbana.

Esses apontamentos preliminares, obtidos por meio de revisão bibliográfica e investigação dos anais da constituinte, ainda serão melhor trabalhados por meio do resgate da narrativa dos sujeitos que vivenciaram esse processo. Nesse sentido, cabe agora a pesquisa construir essa história por meio dos relatos e vivências desses sujeitos coletadas nas entrevistas que estão sendo realizadas com militantes dos movimentos sociais e constituintes.

Referências bibliográficas

BASSUL, José Roberto. Reforma Urbana e Estatuto da Cidade. EURE (Santiago) v.28 n.84, Santiago, set. 2002. Disponível em: < https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S025071612002008400008>. Acesso em: Abril de 2018

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da histório. In: BENJAMIN, Walter. O Anjo da

história. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010. (Edição e tradução João Barrento)

COSTA, Maria de Fátima Tardin. Ideologia e utopia no ocaso da Reforma Urbana no Brasil. Rio de Janeiro, 2012. Tese (programa de pós-graduação em Psicologia Social), Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

DA SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo. Relações coletivas de trabalho: configurações institucionais no Brasil contemporâneo. Editora LTr, 2008.

FACCHINI, Regina, Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBT), “Histórico da luta de LGBT no Brasil”, 2014, São Paulo

FERNANDES, Pádua. Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Constituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988. 2016

FERREIRA, Andrey Cordeiro. Tutela e Resistência Indígena: etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o. Estado Brasileiro. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 2013.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. O PT e a Constituinte, 1985 – 1988. São Paulo: 2011. Linha de Montagem. Direção: Renato Tapajós. 1981. Disponível em: <https://vimeo.com/147297193>. Acesso em: 9 de abril de 2018.

GREEN, JAMES. Ditadura e homossexualidades no Brasil. In: GREEN, James N & QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. São Carlos: EduFSCar, 2014

HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Editora Livraria Ltda, 2014.

LACERDA, Rosane. Os Povos Indígenas e a Constituinte de 1987-1988. CIMI, 2008

NERIS, Natalia. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertção de Mestrado. FGV/SP, 2014.

NEVES, Lino João de Oliveira. Olhos Mágicos do Sul (do Sul). 2004

OLIVEIRA, Adriana Vidal de. Constituição e Direitos das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora Juruá, 2015.

PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Editora da Puc-Rio e Lumen Juris, 2008.

PITANGUY, Jacqueline. As mulheres e a Constituição de 1988.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de janeiro: Paz e Terra, v. 3, 1988.

TELES, Maria Amélia de Almeia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Alameda, 2017.

THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

VILALON, Eduardo. O movimento homossexual brasileiro na Constituinte de 87-88: apontamentos iniciais sobre as discussões na subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias. São Paulo, 2015. Acessado pelo link: https://anaiscongressodivsex.files.wordpress.com/2015/03/49-eduardo-vilalon.pdf.




 Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados[105]

Under the Rug: Gender-based Violence and the Silence of the Ethics Council of the Brazilian House of Representatives

Tassia Rabelo[106]

 

Resumo: O debate sobre a violência contra as mulheres na política tem ganhado força em âmbito nacional, principalmente após iniciativas legislativas voltadas ao seu enfrentamento registradas na América Latina. No Brasil, entretanto, esta se mantém invisibilizada, mesmo diante de casos emblemáticos que seguem se multiplicando. Assim, considerando denúncias realizadas pelas parlamentares em relação aos abusos sofridos no Congresso Nacional, bem como casos amplamente noticiados pela mídia que se enquadrariam na tipologia de violência política de gênero trabalhada neste artigo, buscou-se compreender o papel exercido pelo Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados diante de representações abertas em função de denúncias de violência política de gênero. A pesquisa foi realizada por meio do levantamento da participação das mulheres no referido Conselho, e da análise dos encaminhamentos dados às denúncias supracitadas. A hipótese defendida é a de que as mulheres seriam um dos setores continuamente prejudicados pelas decisões do Conselho de Ética e a quase completa exclusão das deputadas deste espaço contribuiria para a perpetuação da impunidade, bem como para a naturalização da violência contra as mulheres no Parlamento brasileiro.

Palavras-Chave: Violência política de gênero; Câmara dos Deputados; Conselho de Ética; Representação Política; Exclusão.

Abstract: The debate about violence against women in politics has gained strength in the international level, especially  after legislative initiatives aimed at confronting that kind of violence in Latin America. In Brazil, however, this kind of violence remains invisible, even in the face of emblematic cases that continue to multiply. Thus, considering the denunciations made by the parliamentarians regarding the abuses suffered in the National Congress, as well as cases widely reported by the media that would fit into the typology of gendered political violence worked in this article, it was sought to understand the role played by the Council of Ethics and Decorum of Brazilians House of Representatives before open representations due to denunciations of political gender violence. The research was carried out by analysis of the women´s participation in that Council, as well about the referrals given to the abovementioned complaints. The hypothesis defended is that women would be one of the sectors continually harmed by the decisions of the Ethics Council and the almost complete exclusion of women deputies from this space would contribute to the perpetuation of impunity and the naturalization of violence against women in the Brazilian Parliament.

Keywords: Gender-based violence; Chamber of Deputies; Ethics Council; Political Representation; Exclusion.

1.      Introdução

Ao constituir-se um governo — integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens —, a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo. A dependência em relação ao povo é, sem dúvida, o principal controle sobre o governo, mas a experiência nos ensinou que há necessidade de precauções suplementares. (MADISON; HAMILTON; JAY, 1985, p.322)

Segundo a teoria da separação de poderes presente em Montesquieu (1985) e nos escritos Federalistas (1985), dada a tendência à conversão do exercício do poder em arbitrariedade, este deve ser limitado pela contraposição entre a ação de distintos poderes. Este princípio é aplicado por meio de medidas constitucionais que visam assegurar a autonomia do Executivo, do Legislativo e do Judiciário de forma a possibilitar o controle mútuo, e evitar que interesses particulares redundem em acúmulo de poder. No Brasil, em que pese a separação de poderes seja clausula constitucional pétrea, acontecimentos recentes reacenderam o debate sobre a real capacidade de o poder Legislativo exercer sua necessária autonomia em relação ao Executivo.

Em 2017 a Câmara dos Deputados foi duas vezes instada a decidir se o atual titular da Presidência da República, Michel Temer, deveria ou não ser alvo de investigações resultantes de denúncias movidas pela Procuradoria-Geral da República. Nas duas ocasiões a referida Casa decidiu que Temer só poderia ser investigado quando deixasse o cargo que ora ocupa.

A robustez dos indícios presentes nas denúncias de organização criminosa e obstrução de justiça, e as acusações de parlamentares que afirmavam que Temer comprava votos a seu favor no interior na Câmara, trouxeram à tona o debate sobre a incapacidade do Legislativo brasileiro de cumprir sua função de fiscalizar as ações do Executivo[107], e a existência de uma possível relação de compadrio entre os atores políticos que deturparia a função das instituições visando a proteção entre pares.

Se o caso de Temer, Chefe do Poder Executivo, expôs ao mesmo tempo o déficit do funcionamento dos pesos e contrapesos no sistema político brasileiro, e o corporativismo de parte expressiva dos mandatários, cabe questionar como são analisadas denúncias que envolvem políticos de um mesmo Poder.

Assim, pretende-se realizar uma análise exploratória sobre as seguintes questões: de que maneira os deputados que integram o Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados encaminham as denúncias movidas contra seus colegas? E as mulheres, minoria absoluta no Parlamento Brasileiro, tem seus direitos respeitados e suas denúncias apreciadas de maneira devida? A análise desta segunda questão levará em consideração as recentes abordagens sobre o conceito de violência política de gênero, que será debatido em sessão dedicada a esta temática.

2. Metodologia

Por meio da observação dos dados disponibilizados pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados (Cedi)[108], foi possível acessar a composição do Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados ao longo dos anos abarcados pela pesquisa, o que possibilitou a análise da participação das mulheres no mesmo. A partir do sítio da Câmara dos Deputados, que dispõe de parte expressiva dos processos abertos desde 2002[109] – cento e cinquenta representações -, bem como seus encaminhamentos, o presente artigo mapeou a apresentação de denúncias no referido Conselho entre os anos de 2002, meses após sua criação, e 2018.

Considerando o recorte deste artigo, o tratamento conferido pelo Conselho de Ética aos casos de violência política de gênero, as representações instauradas no Conselho foram classificadas a partir da conceituação de violência política de gênero proposta por Kork e Sanín (2016), que engloba a violência física, psicológica, econômica e simbólica. Desta maneira nem todas as representações apresentadas por mulheres foram consideradas enquanto violência de gênero, esta classificação se circunscreveu a casos de agressões, ameaças, diferentes tipos de assédio, estigmatização, exposição da vida sexual e afetiva, restrições à atuação e à voz das mulheres, entre outros que fossem condizente com a base teórica mobilizada.

3. A Violência Política de Gênero

Antes de adentrar o debate sobre a violência de gênero, faz-se necessário precisar o próprio conceito de gênero. Este, que é fundamental para a teoria feminista e queer e tem sido alvo no Brasil de ataques que utilizam a ignorância e a deturpação como armas numa verdadeira cruzada fundamentalista, poderia, de maneira sintética, ser definido como um conceito que expõe que características apresentadas como femininas ou masculinas tratam-se na verdade de construções sociais e que, portanto, sofrem alterações em diferentes culturas e períodos históricos. Ao afastar qualquer tipo de essência que determine o que cada gênero é, não afirma a inexistência de diferenças de conformação biológica, mas sim que estas não definem e muito menos explicam o modo como as pessoas agem no mundo.

Os modelos que se constroem, então, tanto do homem quanto da mulher deverão corresponder às funções esperadas desses sujeitos aos quais foram atribuídos papéis específicos. Enquanto o homem aparece através de uma figura forte, disciplinadora, isento de instintos, emoções e sensibilidade, a mulher vai surgir através de uma imagem sensível, fiel, honesta, instintiva, generosa, perspicaz, garantindo-se essa ambivalência através de um pacto de dominação, na medida em que tanto um como o outro incorpora em suas práticas, o discurso enunciado desse domínio expresso nos valores contrários fragilidade/força (ÁLVARES, 2003, p. 3).

Trabalhos fundacionais da teoria feminista como “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir, contribuíram para a construção desta nova perspectiva na qual a mulher deixava de ser encerrada em seu corpo, e os entraves a participação feminina no espaço público passavam a ser considerados enquanto construções sociais ao invés de dados da natureza. Desta maneira esse debate questionou o conhecimento naturalizado do sexo e a consequente normatização da sexualidade, apresentando-os enquanto mecanismos limitados, violentos e opressores que definiam o que é ou não aceitável.

Por meio da compreensão do gênero enquanto constructo foi possível identificar como a distinção entre o masculino e o feminino esteve diretamente relacionada à imposição de um lugar de subordinação às mulheres. Assim como afirma Joan Scott (1988), o gênero não se trata apenas de uma percepção sobre as diferenças sexuais, mas da hierarquização destas. Tal caracterização hierárquica que confere ao homem a posição de mando e à mulher a de submissão, estabelece também formas de violência específicas contra as mulheres, cujo diferencial reside na impossibilidade de compreensão deste fenômeno sem que se leve em consideração a relação entre a sua motivação e o gênero da vítima.

A violência doméstica é a sua mais conhecida expressão. Tendo sido durante muito tempo associada a agressão física cometida contra mulheres na qual o agressor é o marido, sua conceituação no Brasil adquiriu contornos mais amplos a partir da promulgação da Lei Maria da Penha (11.340/2006).

Segundo a referida legislação, a violência doméstica é: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”[110]. Esta, portanto, passa a ser compreendida como um rol mais amplo de violências que atinge as mulheres e se estruturam em relações íntimas de afeto, indo além da agressão por parte do cônjuge, incluindo ex-parceiros, namorados e familiares.

Ao dar visibilidade a outras modalidades de violência sofridas pelas mulheres, a Lei Maria da Penha contribuiu não apenas para o enfrentamento a estas no âmbito doméstico, como para o debate público sobre outras modalidades de violência às quais as mulheres são expostas e que comprometem sua participação igualitária na sociedade. Neste trabalho o foco está voltado para um tipo particular e pouco debatido de violência contra as mulheres, a violência política de gênero.

No Brasil, apenas recentemente iniciou-se um processo vigoroso de desnaturalização da violência doméstica, e com a Lei Maria da Penha, que ainda não completou 15 anos de existência, esta deixou de ser tratada como algo de caráter privado, no qual o Estado não deveria ter ingerência. A violência contra as mulheres na política brasileira, entretanto, segue sendo naturalizada e, tal como antes ocorria com a violência doméstica, não é sequer reconhecida como tal. Na América Latina, porém, este conceito tem se desenvolvido de maneira potente, tendo inclusive sido positivado em alguns ordenamentos jurídicos na região.

Neste aspecto o país pioneiro foi a Bolívia que em 2012 aprovou legislação que tipificou como crime o assédio e a violência política contra mulheres[111]. No mesmo ano proposição legislativa similar foi apresentada no Equador, esta, contudo não teve o mesmo sucesso que a boliviana, tendo sido arquivada sob o argumento de redundância em relação a proposta de reforma do Código Penal que reconhecia o crime de assédio político, ainda que este não considerasse a dimensão de gênero. Em 2013, um Projeto de Lei que trazia elementos tanto da proposta boliviana quanto da equatoriana foi apresentado na Costa Rica. No México, a criminalização de atos de violência física, psicológica e sexual perpetrados contra mulheres com o objetivo de impedir sua atuação política, foi proposta por meio da reforma da Lei sobre o Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência e do Código Federal Eleitoral. Após ter sido aprovada por unanimidade no Senado em 2013, não foi retomada na Câmara dos Deputados (Krook e Sanín, 2016).

Em 2013, no Congresso Nacional do Peru, foi apresentada legislação que não mencionava o termo violência, mas visava combater o assédio político contra as mulheres. Enquanto a proposta tramita no Legislativo, foi aprovado o “Plan Nacional contra la Violencia de Género”[112] que define 16 modalidades de violência, dentre as quais está o “assédio político”, que consiste em qualquer ação, conduta ou omissão baseada no gênero, cujo objetivo ou resultado seja menosprezar, anular, impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos das mulheres (Biroli, 2016).

Em artigo que faz um apanhando do debate na literatura e nas legislações nacionais referente a violência política de gênero, Krook e Sanín (2016) apontam que grande parte dos estudos sobre a temática tem se aproximado da definição presente na legislação boliviana que prevê três tipos de manifestações de violência política de gênero: física, sexual e psicológica. Segundo as autoras esta interpretação tem levado a categoria de violência psicológica a abarcar um sem número de comportamentos que, para elas, poderiam ser reconhecidos enquanto formas distintas de violência. Desta maneira, sugerem a inclusão das categorias de violência simbólica e econômica, sem excluir a possibilidade de interseção entre essas diversas formas.

Precisamente propõem uma definição estendida de violência política de gênero que integre violências físicas e sexuais na categoria violência física, e separe a categoria violência psicológica em econômica, simbólica e psicológica. Apontam que estas diversas formas de violência política de gênero distinguem-se de outros atos de violência, inclusive no âmbito da política, por ter como objetivo impedir a participação de uma mulher como mulher, não como indivíduo, membro do partido ou defensora de determinada posição ideológica.

Segundo a definição que apresentam, a violência física compreenderia atos que afetem a integridade física de uma mulher ou de membros de sua família visando ataca-la, e, tal como exposto, abrange a violência sexual. A violência psicológica seria aquela que causa danos no estado mental ou emocional, incluindo ameaças de violência física, bem como atos destinados a prejudicar socialmente a mulher em questão.

A violência econômica na política é definida como atos que buscam controlar o acesso ou o comportamento das mulheres na esfera política, restringindo sistematicamente o acesso a recursos econômicos que, de outra forma, estão disponíveis para os homens. O objetivo é tornar o trabalho político tão difícil ou frustrante que as mulheres sejam levadas a se retirar por conta própria ou a reduzir as chances de que as mulheres possam realizar seu trabalho de maneira eficaz, afetando assim suas futuras carreiras políticas.

A definição de violência simbólica das autoras ancora-se na de Bourdieu que a concebe como uma disciplina usada contra outrem para confirmar sua posição na hierarquia social. A violência simbólica contra as mulheres na política procuraria deslegitima-las por meio de estereótipos de gênero que lhes negam competência na esfera política. Para estas autoras o tratamento negativo se converte em violência quando implica desrespeito fundamental à dignidade humana, como produzir e distribuir imagens altamente sexualizadas e pejorativas, usar as mídias sociais para incitar atos violentos, ou não reconhecer ou negar explicitamente a existência de uma mulher nos espaços políticos pelo simples fato de ser mulher.

Esta tipologia distingue os tipos de violência sem deixar de incorporar o fato de que manifestações específicas podem estar inter-relacionadas, dado que a um ato podem ser atribuídos múltiplos significados, em função de suas diferentes possibilidades de experimentação ou interpretação.

Outro esforço importante do debate realizado por essas autoras consiste em buscar precisar o conceito de violência política de gênero por meio da distinção em relação à violência eleitoral. Tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de atos violentos ou ameaças que visem influenciar o processo eleitoral, logo nem todos os casos de violência eleitoral são orientados pelo gênero da vítima, e mesmo que os casos de violência política de gênero possam ocorrer no contexto das eleições, estes não se limitam a este período. Assim Krook e Sanín afirmam que:

Violence against women in politics, we contend, is a subset of violence against women and is slightly distinct from violence against women in elec- tions. Whereas the latter includes acts during electoral periods directed at women as candidates, voters and activists, violence against women in poli- tics is perpetrated against female politicians, during electoral campaigns but also afterwards as women assume political positions. It is vital to recog- nize at the outset that in all states candidates and elected officials do and should face criticisms and challenges related to their policy ideas and per- formance. Freedom of expression, moreover, is a central element in a healthy democratic society. However, we argue, certain behaviors “cross the line” from free speech to violence when they are directed at women as women with the purpose of leading them to withdraw from politics. As such, while inflicted on a particular woman, these actions are, in effect, directed at all women. (Krook e Sanín, 2016, p.136)

Apontam ainda que quando mulheres na política são atacadas em função dos seus posicionamentos políticos não se trata de violência política contra as mulheres. Entretanto, se estes ataques são voltados ao corpo da mulher, ou relacionados a estereótipos de gêneros tal como questionamento a papéis sociais tradicionais, ou outros meios com vias a negar sua competência na esfera política, apresentam ambiguidades que podem vir a enquadrá-los enquanto violência política de gênero.

Para além da forma e do objetivo, a violência política de gênero se diferencia dos ataques violentos cometidos por oponentes em meio ao embate político, em função de sua origem mais difusa. Estes podem advir de setores da política como colegas e líderes da oposição, mas também da sociedade de maneira mais ampla, da família, dos amigos, da comunidade, de líderes religiosos, bem como da mídia, entre outros. (SAP International, 2006).

A violência contra as mulheres na política pode ter um impacto que vai além das mulheres que a sofrem diretamente, dado que cumpre o duplo papel de buscar alijar aquela mulher da política, diminuir o alcance de sua atuação, bem como passar uma mensagem para todas as outras mulheres que indique que a esfera pública não é o seu lugar, e caso insistam em disputa-lo sofrerão sanções por tal comportamento. Assim, a análise do tratamento dado a esse tipo de violência no âmbito da Câmara dos Deputados, mais alto espaço eletivo proporcional do Brasil, é importante para a compreensão mais geral dos diversos limites impostos às mulheres na política.

 

4. O Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados

O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar foi criado em outubro de 2001. Sua principal função é cuidar do procedimento disciplinar destinado à aplicação de penalidades em casos de descumprimento das normas relativas ao decoro parlamentar no âmbito da Câmara dos Deputados.

Segundo o Art. 4º do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados (2015), constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar: abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional; perceber, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas; celebrar acordo que tenha por objeto a posse do suplente, condicionando-a à contraprestação financeira ou à prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos Deputados; fraudar o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação; omitir intencionalmente informação relevante ou prestar informação falsa; e praticar irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes, que afetem a dignidade da representação popular.

O Art. 5º aponta ainda que atentam contra o decoro parlamentar condutas que perturbem a ordem das reuniões da Câmara, infrinjam suas regras de boa conduta, bem como a prática de ofensas físicas ou morais nas dependências da Casa. Também é passível de sanção o desacato a outro parlamentar, a Mesa ou Comissão ou os respectivos Presidentes; o uso dos poderes e prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa sobre a qual exerça ascendência hierárquica, com o fim de obter qualquer espécie de favorecimento; a revelação de conteúdo de debates, deliberações ou documentos que a Câmara dos Deputados ou Comissão hajam resolvido que devam ficar secretos; o uso de verbas de gabinete ou qualquer outra inerente ao exercício do cargo em desacordo com os princípios fixados pela Constituição; relatar matéria submetida de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral; e fraudar o registro de presença às sessões ou às reuniões de Comissão.

O Conselho de Ética é composto por 21 membros titulares e igual número de suplentes, com mandato de dois anos, que não podem ser substituídos em nenhum momento. Deve atuar no sentido da preservação da dignidade do mandato parlamentar; processar os acusados; instaurar processo disciplinar e proceder todos os atos necessários à sua instrução; e responder às consultas formuladas pela Mesa, Comissões, Partidos Políticos ou Deputados sobre matérias relacionadas ao processo político-disciplinar.

As penalidades aplicáveis por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar podem ser de quatro tipos: censura, verbal ou escrita; suspensão de prerrogativas regimentais por até seis meses; suspensão do exercício do mandato por até seis meses; e perda de mandato[113].

O Conselho atua mediante provocação da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para a instauração de processo disciplinar. Esta pode receber pedidos de instauração de representação em face de Deputado Federal de outros parlamentares, Comissões e cidadãos em geral. Partidos políticos com representação no Congresso Nacional também podem encaminhar representação à Mesa Diretora, que, neste caso, tem a obrigação de envia-la diretamente ao Conselho de Ética.

Assim, o caminho mais rápido e certo – dado que não abre espaço para qualquer discricionariedade por parte da Mesa Diretora -, para a instauração de um processo é por meio da apresentação de representação assinada por Partidos Políticos, o que faz com que este seja o procedimento mais utilizado. Dessa maneira, mesmo que ampla maioria dos pedidos seja iniciada por via partidária, na prática muito casos tratam-se de processos abertos a pedido dos próprios parlamentares contra os seus colegas, o que significa dizer que nem todos seriam beneficiários de uma postura que visasse a impunidade generalizada, pois os autores das denúncias se considerariam prejudicados.

Desta feita, seria possível concluir que não havendo decisões isentas de gerarem contrariedade em alguma das partes, estas variariam de acordo com o conteúdo das denúncias. Entretanto, há elementos que indicam que determinados setores podem estar sendo sistematicamente prejudicados pelas decisões tomadas no Conselho[114]. Neste ponto, Madison pode contribuir para a explicitação do raciocínio em curso.

Em um de seus artigos, este autor expôs sua preocupação com a possibilidade de que alguns interesses viessem a controlar o poder com vias a promover os objetivos de determinada facção. Desta maneira alertou que o princípio majoritário, base dos governos populares, poderia representar uma ameaça aos direitos das minorias, preocupação também partilhada por Tocqueville (2004)[115].

Dado que as facções não poderiam ser eliminadas sem levarem consigo o direito à liberdade expressão, a solução para Madison seria deixar a cargo da pluralidade de facções, representantes de diversos interesses, a tarefa de impedir que parte desses se sobrepusessem ao demais de maneira tirânica. Sendo composta por 89,3% de homens[116], na Câmara dos Deputados, tal pluralidade inexiste no quesito gênero, e como será visto, tampouco no Conselho de Ética.

Dados levantados pela presente pesquisa apontam que o Conselho de Ética se mostrou ainda menos permeável às mulheres do que o conjunto da Câmara dos Deputados, este, além de jamais ter sido presidido por uma parlamentar, contou historicamente com uma participação diminuta das mesmas em sua composição.

Entre a 51º (2001[117]/2003)[118] e a 55º (2015/2019) legislatura, ainda em curso, 267 parlamentares diferentes ocuparam cadeiras do Conselho de Ética da Câmara, dentre os quais, 151 na condição de suplentes e 118 na de titulares. Ao longo de um período que compreende quase duas décadas, 12[119] suplentes eram mulheres e, dentre os titulares, apenas 9[120] não eram do sexo masculino.

Quando comparado com a atual representação de mulheres nas duas Casas do Congresso Nacional, o Conselho de Ética apresenta uma participação feminina ainda mais ínfima, dado que as mulheres titulares representaram na soma das legislaturas pesquisadas apenas 7,7% do total de integrantes deste Conselho, o que, em se tratando de um universo muito menor, representa em termos absolutos a quase completa exclusão das mulheres deste espaço.

Tal como pode ser visto no gráfico abaixo, a observação da composição do Conselho de Ética por legislatura deixa ainda mais nítida a exclusão. Em 2003, ano em que a porcentagem da participação feminina na Câmara passou de 6,8% em 2001 para 8,6%, seu incremento mais considerável ao longo do período analisado ainda que mesmo assim modesto, o Conselho de Ética da Câmara contou com sua maior representação feminina, 11%. Entretanto, este ano tratou-se de um outlier, pois na legislatura seguinte as mulheres passaram a representar 1% do Conselho e jamais voltaram a ultrapassar a barreira dos 10%.

Gráfico 1 – Titulares do Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados por Sexo

Fonte: elaboração própria.

Young (2006) sugere que atores mais próximos na esfera social possuem pontos de vista semelhantes, enquanto os socialmente distantes tendem a ver as coisas de modo diverso. Isto significa dizer que a perspectiva trazida pelos parlamentares homens durante a análise de denúncias de violência política contras as mulheres, pode negligenciar inúmeros aspectos que teriam mais dificuldades de passarem despercebidos caso também tivessem sido observados por mulheres.

Não se trata de uma defesa da representação substantiva, em que para serem representados os grupos sociais deveriam ter atributos comuns a todos os seus membros, e sim de uma ideia de relacionamento entre os indivíduos de um mesmo grupo social que não determina sua identidade, mas que estabelece compreensões similares sobre os processos sociais que necessitam ser representados no espaço político. As perspectivas sociais são diferentes entre si, mas não incompatíveis, apenas evidenciam aspectos que não estão nítidos para aqueles que partilham de outra perspectiva devido ao seu posicionamento na estrutura social. Trata-se de um ponto de partida para o debate e não uma determinação fechada.

Constatada a exclusão, e considerando que para Young a representação de perspectivas sociais se dá por meio da presença da visão de mundo de determinados grupos nas deliberações políticas, na próxima seção, este trabalho debaterá as possíveis consequências desta ausência. Se voltará para o conteúdo das decisões do Conselho de Ética referentes às denúncias de violência política de gênero, objetivando responder as seguintes questões: os direitos das mulheres são respeitados na Câmara dos Deputados? E quando feridos, seus artificies são punidos? Qual o papel exercido pelo Conselho de Ética diante de denúncias de violência política de gênero?

5. A Presença Feminina na Política Brasileira

Os altíssimos índices de violência doméstica, feminicídio, bem como de agressões e assédio sexual no Brasil indicam que a violência contra as mulheres segue presente em nossa sociedade e se apresenta de maneira multifacetada. Alguns indicadores apontam como esta chaga ainda coloca as mulheres brasileiras em situação de ameaça constante a sua integridade física e psicológica, e estabelece barreiras para que estas tomem parte da sociedade em pé de igualdade com os homens.

Segundo o relatório Global Gender Gap Report 2017, ranking do Fórum Econômico Mundial que analisa a igualdade entre homens e mulheres em 144 países, o Brasil, que em 2016 ocupava a 79º posição caiu para a 90ª. Vale destacar que na primeira edição da pesquisa, realizada em 2006, o Brasil estava em 67º, o que indica um retrocesso mesmo diante de avanços como a promulgação da Lei Maria da Penha e da tipificação do feminicídio no Código Penal.

No que se refere aos indicadores de igualdade de condições no acesso a saúde e educação, foram registradas melhorias modestas[121], entretanto, em termos de paridade econômica – segundo o relatório, a renda média da mulher corresponde a 58% da recebida pelo homem –, e representatividade política, o estudo aponta que as mulheres brasileiras seguem enfrentando acentuada discrepância em relação aos homens, elementos que foram decisivos para que o país fosse rebaixado no ranking.

O subíndice “Empoderamento Político” aponta o quanto a participação política das mulheres segue sendo o aspecto mais vulnerável da promoção da igualdade de gênero no Brasil. Neste ponto a queda foi ainda maias acentuada e o país passou de 86ª posição para 110ª, o que não é de se estranhar dada a baixíssima representatividade das mulheres no Congresso Nacional e no Executivo Federal. No ranking de participação feminina nos Parlamentos Nacionais do Inter-Parlimentary Union (IPU)[122], o Brasil ocupa o 152º por contar com apenas 10,7% de mulheres na Câmara dos Deputados e 14,8% no Senado.

Se a baixa representatividade das mulheres no Legislativo brasileiro é um fenômeno que se perpetua no tempo, no âmbito do Executivo Federal os últimos anos não foram de estagnação, mas de retrocesso. A partir do governo de Michel Temer, as mulheres, que não apenas haviam conquistado espaço no primeiro escalão do Governo Federal como contavam com a Secretária de Política de Mulheres com status de ministério, foram praticamente alijadas do corpo ministerial.

Até a última semana do Governo da presidenta Dilma Rousseff, dentre os 32 ministérios, seis eram chefiados por mulheres[123], no início do seu primeiro governo, em 2011, as mulheres alcançaram sua maior marca à frente dos ministérios, ocupando 10 das 37 pastas. Michel Temer, que assumiu como presidente interino em maio de 2016, na ocasião montou uma equipe de 24 ministros sem nenhuma mulher. Em abril de 2018 seu Governo contava com 29 ministérios dos quais apenas um tem uma mulher no comando[124], a chefe da Advocacia-Geral da União, Grace Maria Mendonça.

Ausência de mulheres em espaços de tomada de decisão contribui para a ideia de que a política não é um lugar destinado sua participação, elemento que, combinado a expressões de violência política que menosprezam as mulheres que possuem atuação política, perfaz um quadro que desincentiva outras mulheres a construírem uma carreira política.

Durante o processo que golpeou a presidenta Dilma Rousseff, mas também nas últimas campanhas presidenciais que contaram com mulheres na disputa, as representações na mídia e nas redes sociais apresentaram conteúdos sexistas que foram muito além da mera disputa política. Dilma, que já sofria com processo de deslegitimização de sua imagem enquanto presidenta desde que assumiu o mandato em 2011, passou a receber ataques misóginos da pior espécie que a descreviam como desequilibrada e mobilizavam conteúdo sexual violento. Situações que expuseram uma violência bastante específica, cometida contra uma mulher com o objetivo de mostrar que ela, mas também as mulheres de maneira mais ampla, não seriam qualificadas para o exercício da política.

No âmbito do Parlamento a situação não parece ser diferente. De acordo com o depoimento da Deputada Federal Maria do Rosário, que foi alvo de um dos mais notórios casos de violência política de gênero, quando em 2014 foi atacada do púlpito da Câmara dos Deputados pelo Deputado Federal Jair Bolsonaro que sem qualquer pudor afirmou que ela não merecia se estuprada, a Câmara dos Deputados é um lugar hostil às mulheres:

Na Câmara dos Deputados as parlamentares atuam em um ambiente hostil, em que o desrespeito é comum e a impunidade constante. O Conselho de Ética fecha os olhos às agressões que sofremos e dessa maneira contribuem com a perpetuação de uma cultura sexista. É inaceitável, mas a verdade é que somos submetidas à humilhação pública somente por defendermos nossas ideias em mandatos que têm iguais prerrogativas constitucionais, mas que são continuamente desrespeitados[125].

Tal como aponta Taylor (1994), o reconhecimento não se deu da mesma forma para todos. Em nossa sociedade existiriam cidadãos de segunda classe, que foram, ou são alijados da cidadania, o que para este autor implicaria na necessidade de uma política de reconhecimento. Sua análise dialoga com a ideia de que a exclusão pretérita da mulher e os símbolos com os quais ainda hoje estas são identificadas limitam sua atuação na esfera pública, situação relatada pela senadora Vanessa Graziotin:

(…) a violência política de gênero alcança uma mulher em qualquer lugar ou espaço em que ela se movimente na sua luta por direitos. Pode ser até num corredor na Câmara, como aconteceu à deputada Maria do Rosário, em 2014, ofendida aos gritos e empurrada por um deputado em flagrante captado por câmera de TV. (…) É preciso dizer que os ataques feitos às parlamentares comportam um tipo de agressividade raramente visto nas provocações que um homem dirige a outro homem, pelo menos na esfera pública. Alguém imagina um humorista postando um vídeo nas redes sociais que o mostra esfregando uma carta na sua cueca e remetendo-o para Michel Temer, para Gilmar Mendes ou para o deputado Jair Bolsonaro? (Senadora Vanessa Graziotin)[126]

As agressões mencionadas pela senadora, e outras amplamente noticiadas, podem estar sendo utilizadas no interior da Câmara enquanto mecanismos de silenciamento que se agravariam caso fossem suportadas pela impunidade no âmbito do órgão responsável pela apuração dessas denúncias, debate que será realizado na seção seguinte.

6. Conselho de Estética?

Durante o longo debate que culminou com a cassação do ex-Deputado Federal Eduardo Cunha, o Deputado Federal Chico Alencar, conhecido por suas falas irônicas e ácidas, afirmou que diante de seguidas manobras que impediam o cumprimento de suas funções, o Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados deveria mudar o nome para “Conselho de Estética e Decoração”. Ainda que o desfecho do caso que indignou o parlamentar do PSOL tenha sido a perda de mandato do então Presidente da Câmara, a presente pesquisa indica que o destino da maior parte das representações é o arquivamento.

De acordo com os dados disponibilizados pelo site da Câmara dos Deputados, entre 2001 e 2018, o Conselho de Ética recebeu 150 representações, dentre as quais duas foram apensadas[127] e uma foi desconsiderada em função de perda do objeto[128], totalizando 147 casos. Destes 120 foram arquivados sendo que 58 destes não foram sequer apreciados. Neste amplo, mas pouco eficaz universo, foram classificadas enquanto denúncias de violência política de gênero sete casos que serão debatidos abaixo.

A primeira representação classificada, de acordo com o debate realizado neste artigo, como violência política de gênero é a 36 de 2014, impetrada em conjunto pelo Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil, Partido Socialismo e Liberdade e Partido Socialista Brasileiro, contra o Deputado Jair Bolsonaro. Trata-se do caso de agressão à Deputada Maria do Rosário que teve repercussão nacional e já foi mencionado neste texto, e que incluía ainda ofensas injuriosas, difamantes e caluniosas contra a deputada e à presidenta Dilma Rousseff. Estas eram acusadas por Bolsonaro de participarem de atos criminosos.

Uma das modalidades classificadas como violência política de gênero pela legislação boliviana é a violência psicológica e/ou ameaças de violência sexual. Ainda que a argumentação presente na representação em tela não adentre o debate sobre violência psicológica, afirma que este caso se configura como ameaça, dado que o agressor afirma o crime de estupro enquanto conduta eletiva, cuja decisão sobre sua prática se ancoraria no que chamou de “merecimento” da mulher atribuído por ele.

Em que pese a gravidade do fato, o caso foi arquivado em decorrência do término da legislatura sem que seu mérito viesse a ser julgado. Fora dos muros da Câmara, entretanto, o resultado foi outro. No dia 21 de junho de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) contra o referido deputado, por injúria e incitação ao estupro.

A representação 02 de 2015 foi impetrada pelo PC do B contra o deputado Alberto Fraga em função de falas em plenário nas quais este afirmou que: “mulher que bate como homem tem que apanhar como homem também”, e em seguida que: “ mulher que participa da política e bate como homem tem que apanhar como homem também”[129]. A representação destacava ainda que, após a Deputada Jandira Feghali ter realizado pronunciamento crítico à manifestação de Fraga, este afirmou que: “Aqueles que são mais valentes me procurem logo após aqui”[130], fala considerada ameaçadora por parte dos denunciantes.

O parecer do relator, deputado Washington Reis defendeu o arquivamento tendo como base o argumento de que a conduta do deputado Alberto Fraga, ainda que devidamente comprovada, não configurava quebra de decoro, pois o Representado utilizou as palavras tidas como ofensivas no sentido figurado[131]. Seu parecer foi aprovado com 14 votos a 3 e o caso foi arquivado.

A representação 03 de 2015 apresentada pelo PC do B contra o deputado Roberto Freire, denunciava que o parlamentar havia agredido fisicamente a deputada Jandira Feghali: “agarrando seu braço e forçando-o na direção do chão num gesto de muita violência, machucando seu pulso”[132]. Apesar de o processo ter contado com fotos e gravações da cena descrita, o partido da deputada retirou a representação dias após a sua apresentação.

A Mesa entendeu, entretanto que esta deveria ser apreciada no Conselho de Ética que teve como relator o deputado Paulo Azi. Seu relatório pelo arquivamento foi aprovado por unanimidade, provavelmente em virtude da tentativa do partido denunciante de retirar o tema de pauta. De toda maneira há aspectos deste relatório que valem ser abordados.

O relator inicia seu exame do caso enaltecendo a figura do Representado e relativizando a possível condição de vítima da deputada Jandira ao afirmar que:

(…) as imagens da TV Câmara capturaram um entrevero verbal entre parlamentares. A protagonista foi a deputada Jandira Feghali, que em sua argumentação pareceu agredir a reputação de um grande homem público, o deputado Roberto Freire, um homem decente e correto, de 73 anos”.  (Azi, Paulo. 2005. p.3).

Dando prosseguimento a sua análise, Azi relata que: “o parlamentar pernambucano a segurou pelo braço buscando tirá-la da discussão”, buscando justificar o fato que ele próprio reconhece de que Roberto Freire a segurou contra a sua vontade. No parágrafo seguinte o relator, mais uma vez justificando a ação do Representado e questionando a da deputada, afirma que: “Ali no empurra-empurra, para se equilibrar e transitar no aglomerado de parlamentares é até possível que o deputado do PPS tenha tocado ou, até mesmo, puxado o braço de Jandira, que começou a gritar de maneira agressiva (…)”[133].

O deputado conclui seu relatório uma vez mais elogiando a história de Roberto Freire e dizendo que esta não pode ser manchada pelo o que alcunha de: “destempero revanchista de quem aparentemente está apenas em busca de holofotes”[134].

A representação 10 de 2016 foi apresentada pelo PT contra o deputado Laerte Bessa que em pronunciamento proferido em 15 de junho de 2016 chamou a presidenta Dilma de vagabunda. Segundo argumentam os proponentes da representação, ao se dirigir à presidenta de maneira “injuriosa, pejorativa e machista” incorreu em prática discriminatória bem como ofendeu a todas as mulheres.

Em seu relatório o deputado Mauro Lopes afirmou que, apesar da existência de indícios suficientes de autoria e prova da conduta relatada pelos denunciantes, o fato não era atentatório ao decoro parlamentar, dado que para ele ofensas e xingamentos representam elementos do debate político. Concluiu seu voto pelo arquivamento argumentando que:

não fica evidenciado que sua fala tenha sido um ataque de gênero na figura da ex-Presidente Dilma. Feita sua devida contextualização, mostra-se de forma indubitável, que o sentido conferido ao seu pronunciamento foi o de demonstrar a sua indignação com a gestão da coisa pública.  (LOPES, MAURO, 2016, p.5).

Por 08 votos a 04 o parecer do relator foi aprovado e a matéria arquivada.

Segundo () a violência e o assédio político em relação às mulheres consistem em comportamentos que tem como alvo específico as mulheres como mulheres, e visam fazer com que estas abandonem a política. Os ataques sistemáticos e difusos à Deputada Maria do Rosário poderiam ser enquadrados nesta categoria, sendo um dos mecanismos apontados como tendo destaque dentre esses ataques os voltados à família. A representação de 2017 versava exatamente sobre uma situação como esta.

No início do ano de 2017, um blog anônimo divulgou fotos íntimas da filha adolescente de Maria do Rosário. Ao término deste mesmo ano o Deputado Federal Jorge Solla denunciou que o Deputado Federal Wladimir Costa havia divulgado uma destas fotos no grupo de Whtat´s App da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, fazendo uma montagem comparando sua filha com os filhos de Jair Bolsonaro. Segundo o denunciante: “com o propósito veemente de atacar a condição de mulher, mãe e parlamentar da Deputada Federal Maria do Rosário”[135]. A legislação boliviana também prevê que divulgar informações pessoais e privadas para forçar as mulheres a renunciar ou se afastar de suas posições.

O relator do caso, deputado João Marcelo, apresentou parecer pelo arquivamento por considerar que a autoria e materialidade dos fatos narrados não estavam comprovadas, pois o denunciado apresentou documento que comprovava que o número não era seu, argumento contestado pelo voto em separado apresentado pelos Deputados Leo de Brito e Valmir Prascidelli. Neste, os parlamentares defendem a tese de que a mera declaração da operadora de telefonia de que o número não está cadastrado em nome Wladimir Costa não afastaria peremptoriamente sua responsabilidade, dado que existiam outras possibilidades, como o número estar em nome de assessores ou familiares, que não foram analisadas, e que em outras ocasiões este mesmo número realizou outros posta, anexado ao voto em separado, assinado pelo deputado. Apesar destes novos elementos, o relator não alterou seu parecer que foi aprovado por 9 votos favoráveis e 4 contrários, e a matéria foi arquivada.

A mais recente representação protocolada no Conselho de Ética classificada como violência política de gênero refere-se às declarações de Alberto Fraga em relação a morte da vereadora Marielle Franco. Segundo descrito na denúncia apresentada pelo PSOL, Fraga postou em seu twitter que Marielle tinha sido casada com um traficante, eleita com o apoio de uma facção criminosa e era usuária de drogas, em seguida o mesmo teria feito um post de cunho racista ainda em referência a morte da vereadora. Relata ainda que em entrevista o deputado não apenas não desmentiu as referidas postagens como afirmou que apesar de não ter averiguado as informações que disseminou não se arrependia do que havia dito.

Tal como afirmam Donat e D’Emilio (1992), a violência cometida contra as mulheres como mulheres, assume um significado adicional como uma forma de aplicação do papel de gênero, como um meio de dominação e controle para subordinar as mulheres como um grupo. Assim, em que pese a denúncia do PSOL se limite à calúnia, o ataque a condição de mulher e mãe – Fraga também afirmou de maneira crítica que Marielle tinha engravidado na adolescência -, fez com que este caso também fosse enquadrado enquanto um episódio de violência política de gênero no qual a mensagem não era voltada à pessoa caluniada, já que se deu após sua morte, mas às mulheres de maneira mais ampla, enquadrando-se na categoria mencionada de uma violência que tem como objetivo não apenas aquela que a sofre, mas transmitir uma mensagem para as mulheres como um todo, neste caso de maneira ainda mais cruel.

Este caso, encaminhado para o Conselho no dia 27/03/2018, já conta com uma tramitação atípica, pois em menos de um mês três deputados designados relatores declinaram na função.

7. Conclusões

 Argumenta-se que, dada a quase completa ausência das mulheres no processo de tomada de decisões do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, estas decisões poderiam, nos termos trazidos por Mansbridge, serem consideradas injustas, bem como pouco democráticas, dado que permitiriam que uma maioria oprimisse uma minoria. Talvez fosse o caso de se pensar em medidas suplementares, tal como aponta Madison na citação que abre este texto, para controlar a ação daqueles que detém a autoridade sobre outros homens, e mulheres.

O caso do Conselho de Ética da Câmara poderia ser considerado mais um exemplo do fracasso da promessa da democracia representativa idealizada pelos liberais em ser responsiva, bem como proteger e respeitar as minorias, o que torna ainda mais pertinente o debate realizado por Phillips (2001). A autora defende a centralidade da observação das demandas por presença política de grupos que começam a se reconhecer como marginalizados, silenciados ou excluídos, enquanto critério democrático, importante reenquadramento dos problemas da igualdade política na contemporaneidade.

Seguindo o mesmo caminho Mansbridge (2009) afirma que a deliberação só pode se dar de maneira justa caso não seja unilateral, e, portanto, é necessário que minorias sociais sejam incluídas nesses espaços para que novas perspectivas possam ser inseridas no debate e influenciem na tomada de decisão.

Para Fraser (2006) o não-reconhecimento e a subordinação de status se dá quando padrões institucionalizados de valor cultural constituem alguns atores como inferiores, excluídos ou invisíveis. Nesse sentido a ausência de reconhecimento implica em uma relação institucionalizada de violação da justiça que impede que a pessoa participe de forma paritária na sociedade. Assim, a violência política de gênero, aliada ao histórico de exclusão das mulheres da esfera pública e aos símbolos com os quais ainda hoje estas são identificadas, possa estar limitando a atuação dessas parlamentares, situação que seria agravada pela confirmação de que o Conselho de Ética não cumpre a função de zelar pela ética e dignidade parlamentar.

Este seria o caso de retornar às reflexões de Madison que afirmou que: “Ninguém tem o direito de ser juiz em causa própria, porque seu interesse certamente tendenciaria o seu julgamento e, o que não é improvável, corromperia sua integridade”. Fica assim outra pergunta, este não seria o caso de juízes julgando em causa própria? Ao impedirem o prosseguimento de quaisquer denúncias de violência política de gênero estes parlamentares não estariam assegurando a impunidade para todos, dentre esses, para si próprios?

 Referências

ÁLVARES, M. L. M. A questão de gênero e a violência doméstica e sexual. 2003. Disponível em: <http://www.ufpa.br/projetogepem/administrator/questaodegenero.

pdf>. Acesso em: 18 jul. 2013.

FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista.”. Tradução de Julio Assis Simões. In: Cadernos de Campo. São Paulo: Departamento de Antropologia/FFLCH/USP, n.14/15, 2006, p. 231-239.

KROOK, Mona; Sanín, Juliana. Gender and political violence in Latin America Concepts, debates and solutions. volume XXIII, n 1· I semestre 2016, p. 125-157

MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. In: Os pensadores, vol. XXIX. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p 85-178.

MANSBRIDGE, Jane.Should blacks represent blacks and women represent women? A contingent ‘yes’”. In: The Journal of Politics.  v.61, n. 3, 18 de dezembro de 2009, p.628-657.

MONTESQUIEU, Barão de. “O Espírito das leis”. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. In: Os pensadores, vol XXI. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

PHILLIPS, Anne. “De uma política de ideias a uma política de presença?”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, v.9, n 1, 2. Semestre de 2001, p.268-290.

SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analysis. In: Gender and the Politics of History. New York. Columbia University Press, 1988. p. 42-44.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

YOUNG, Iris Marion. “Representação política, identidade e minorias”. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), n. 67, 2006, p. 139-190.




A aplicação da qualificadora do feminicídio pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: pode o sistema punitivo responder às reivindicações feministas?[136]

The application of the feminicide qualifier by the São Paulo State Court of Justice: can the punitive system answer to the feminist demands?

 

Ana Clara Klink[137]

Mariana Amaral[138]

 

Resumo: Considerando a recente introdução do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro, o presente artigo enfoca o tratamento dado para tal crime pelo judiciário paulista desde 2015. Busca-se tecer uma análise crítica sobre as diferentes formas de tratamento do tipo penal, refletindo sobre a potencialidade que a condenação por feminicídio tem, atualmente, de responder aos anseios dos movimentos feministas ao reivindicar sua promulgação. Parte-se de um exame dos julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) sobre a matéria, tendo como norte as diretrizes nacionais de aplicação da qualificadora, bem como leituras críticas sobre o direito penal e trabalhos referentes à questão da discriminação de gênero e seu tratamento pelo sistema de justiça.

Palavras Chave: Feminicídio; movimentos feministas; produção decisória; reconhecimento.

 

Abstract: Considering the recent introduction of feminicide in the Brazilian legal system, this article focuses on the treatment given to such crime by the court of São Paulo since 2015. The aim is to provide a critical analysis about the different forms of treatment of the penal norm, reflecting about the potential that the condemnation for feminicide has, today, to answer to the demands proposed by the feminist movements when claiming for its promulgation. We propose to do so by executing a thorough exam of the sentences issued by the São Paulo State Court on the subject, based on the national guidelines for the application of the qualifier, as well as critical literature on criminal law and on the issue of gender discrimination and its treatment by the justice system.

Key Words: Feminicide; feminist movements; legal discourse; recognition.

 

 

  1. Introdução

Em 2015, seguindo o movimento de outros 15 países da América Latina[139], o Brasil incluiu a previsão criminal do chamado feminicídio, por meio da Lei 13.104/2015. Em uma abordagem sócio-política, Lagarde (2007) define a violência feminicida como a forma extrema de violência de gênero contra as mulheres, produto da violação de seus direitos humanos no âmbito público e privado, sendo conformada por um conjunto de condutas misóginas lastreadas em sua naturalização pela sociedade e pelo Estado. Tais atos colocam as mulheres em situação de vulnerabilidade e risco, podendo culminar em mortes violentas e evitáveis (Lagarde, 2007, p. 33). O Brasil, vale destacar, é o 5º país do mundo em termos quantitativos de feminicídio[140], ficando evidente a relevância da questão e a importância de que sejam tomadas medidas de enfrentamento estrutural a esse tipo de violência pelo Estado.

Entretanto, o cerne do debate jurídico, partindo de uma perspectiva criminológico-crítica, volta-se ao real alcance da resposta punitiva aos anseios dos movimentos feministas pela tipificação do crime como (única) resposta. Nesse sentido, Tania Laky de Sousa coloca:

estabelecer um tipo penal específico para a punição, sobretudo, dos ofensores do direito à vida da mulher, considerando que ela é motivada por razões de diferença de gênero ou ódio expresso, é a forma de a sociedade, escondida na forma de Estado, se demitir de agir incisivamente. Assim, o Estado ao omitir-se também se demite da aprovação de políticas que permitam a reversão dos mecanismos que impõem a hierarquia e a diferença entre homens e mulheres, expiando a sua culpa institucional nos indivíduos que eventualmente consegue julgar e condenar, mas sem enfrentar a ideologia que lhe subjaz: o patriarcado. No entanto, a punição exemplar, ainda que individual, cria fatores de dissuasão de condutas e comportamento, inibindo práticas individuais, mas não desconstrói as representações sociais assimiladas. (SOUSA, 2016, p. 28)

Considerando a relevância da discussão – seja em âmbito jurídico, seja para os movimentos feministas e suas demandas por reconhecimento -, a presente pesquisa teve como objeto de análise a aplicação da qualificadora do feminicídio nas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos primeiros anos após sua promulgação. Alguns pontos em debate sobre a aplicação da qualificadora, desde já, podem ser destacados, orientando a discussão proposta no presente artigo: (i) em que medida é aplicada uma perspectiva de gênero nos julgamentos, nos termos das diretrizes nacionais publicadas junto à promulgação da lei – considerando, ainda, que o TJSP foi o primeiro Tribunal de Justiça a assiná-las; (ii) quais entendimentos sobre a natureza do feminicídio estão presentes nos julgamentos e o que isso significa para o cálculo das penas e para o acionamento do sistema punitivo.

  1. Metodologia

Buscando compreender o tratamento dado à questão do feminicídio pelo poder judiciário, a fim de responder às questões sobre sua eficácia e consequências sociais, escolhemos sentenças e acórdãos como principal fonte de dados. Alves da Silva (2017) indica que as possibilidades de estudo através das decisões judiciais são múltiplas – sendo uma delas a análise da efetividade e eficácia de alterações legislativas, na medida em que tais decisões muitas vezes descrevem a situação estudada de maneira mais acurada do que possíveis interpretações doutrinárias.

            O autor ressalta, ainda, o fato de que a dificuldade de compilação dos dados não advém do óbice em acessá-los, mas sim, frequentemente, do excesso de documentos disponíveis. Disso também decorrem obstáculos no momento de analisar as informações reunidas, agravados pelo fato de que os litígios judiciais refletem, ao menos de maneira parcial, conflitos sociais complexos e que envolvem diversos atores (ALVES DA SILVA, 2017).

Desse modo, recortamos nossa amostra a partir das decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), considerando a proximidade que temos com o órgão e suas ferramentas de pesquisa. O TJSP, ainda, foi o primeiro Tribunal de Justiça a aderir às diretrizes nacionais de aplicação da qualificadora[141], estando há cerca de um ano atuando, em tese, sob sua perspectiva. Desse modo, configura instituição privilegiada de análise das práticas judiciais em relação ao crime. Por fim, analisamos a aplicação da norma desde 2015, ano de sua promulgação, até o dia 28 de fevereiro de 2018, data final de triagem dos acórdãos na realização da presente pesquisa.

            O site do TJSP apresenta duas plataformas online de consulta de julgados: a Consulta de Julgados de 1º Grau[142] e a Consulta Completa[143], sendo a última referente às decisões em 2ª instância. Ambas as plataformas contam com um campo aberto, denominado Pesquisa Livre, bem como um campo referente à Classe, relacionado às diversas classes processuais possíveis. Para os julgados de 1ª instância, pesquisamos por Feminicídio no campo de pesquisa livre, aplicando o filtro Ação Penal de Competência do Júri no campo “classe”, e selecionamos as sentenças em que o réu já havia sido pronunciado[144] pelo crime de feminicídio. Nos julgados de 2ª instância repetimos a pesquisa livre, filtrando o campo “classe” para excluir os Habeas Corpus (referentes a prisões preventivas), bem como os Recursos em Sentido Estrito (relativos às decisões de pronúncia). Assim, analisamos as apelações, efetivamente referentes às sentenças do Júri, selecionando aquelas que de fato discutiam a qualificadora e a aplicação da pena correspondente. Os dados obtidos, enfim, foram compilados em uma tabela formato Excel e posteriormente analisados com base em literatura dos campos da sociologia e do direito penal.

Conforme sugere Alves da Silva (2017, pp. 317-318), ainda, o documento judicial pode ser acessado de um viés tanto quantitativo quanto qualitativo. A escolha pela predominância de um dos métodos deve se basear nas características do problema estudado, o que não significa que não possam se complementar. Por conta do caráter multifacetado de nossa questão de análise, optamos por acessar os julgados de 1ª instância, mais numerosos, a partir de uma abordagem quantitativa. Já os acórdãos de 2ª instância foram analisados através de um viés qualitativo, possibilitando análise mais aprofundada dos discursos veiculados pelos magistrados com relação ao marcador de gênero e ao recrudescimento penal. Buscamos, assim, compreender os conflitos e tensões sociais em torno da matéria, como se refletem nas decisões analisadas e como se inserem nas políticas institucionais que visam a coibir a violência de gênero.

 

  1. Objetivos e diretrizes fixadas para a aplicação do feminicídio

Julgar com perspectiva de gênero implica fazer real o direito à igualdade. Responde a uma obrigação constitucional e convencional de combater a discriminação por meio da atividade jurisdicional para garantir o acesso à justiça e remediar, em caso concreto, situações assimétricas de poder. Assim, o Direito e suas instituições constituem ferramentas emancipadoras que tornam possível que as pessoas desenhem e executem um projeto de vida digna em condições de autonomia e igualdade (SUPREMA CORTE DE JUSTICIA DE LA NACIÓN, 2013, p. 73).

O trecho acima destacado abre as “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios”, no capítulo sobre a atuação do Poder Judiciário com perspectiva de gênero nos casos de mortes violentas de mulheres. O documento reúne elementos para aprimorar a resposta das instituições públicas nas várias instâncias de aplicação da lei, desde a investigação policial e julgamento até a garantia dos direitos das vítimas.

O capítulo referente ao Poder Judiciário, nesse sentido, enfatiza a centralidade da adoção de uma perspectiva de gênero na garantia do acesso à justiça, ressaltando a importância de se promover práticas ligadas à desconstrução de estereótipos e preconceitos baseados a partir de mudanças na própria linguagem processual. Destaca-se no documento, ainda, a importância de que o(a) juiz(a) esteja sensibilizado(a) para registrar na sentença o fato de se tratar de decisão a respeito de crime cometido por razões de gênero; um crime evitável e que vincula o Estado em termos de possuir obrigação de formular medidas de responsabilização, proteção, reparação e prevenção, de fato transformadoras da cultura de violência contra as mulheres (PASINATO, 2016, p. 107). Assim, a aplicação da qualificadora deve ser capaz de se traduzir em maior conhecimento sobre a dimensão estrutural do problema.

Na medida em que o texto legal constrói o tipo do feminicídio a partir da noção de uma violência perpetrada em razão de “condições do sexo feminino”,  é importante ter em mente quais são suas hipóteses de incidência e que implicações geram na tipificação do delito. O primeiro inciso do tipo prevê situações de violência doméstica e familiar, e, de acordo com as diretrizes, a aplicação deve decorrer de parâmetros objetivamente definidos pela Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha.

As outras situações, previstas no inciso II, configuram-se pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Segundo as diretrizes, embora todas as mortes violentas de mulheres possam tipificadas como homicídio, nem todos os homicídios cujas vítimas são mulheres são necessariamente motivados por razões de gênero (PASINATO, 2016 p. 40). Nesse sentido, adotar a perspectiva de gênero é essencial para avaliar os casos individualmente, buscando elementos que ajudem a compreender se o comportamento violento do agressor e a situação de vulnerabilidade da vítima estão ou não relacionados a fatores discriminatórios que podem atingir as mulheres, configurando hipótese de violência feminicida (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017, p. 12).

 

  1. Construções e debates jurídicos sobre a aplicação da qualificadora do feminicídio

 

4.1. As “regras do jogo” do Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri é uma instituição jurisdicional com características próprias a que se submetem, no Brasil, os crimes dolosos contra a vida – assim, incluem-se todos os casos de homicídio qualificado, dentre eles o feminicídio[145]. Nesses crimes, o processamento dos casos divide-se em duas fases: a fase instrutória e a sessão plenária. Na fase instrutória, há a produção probatória, conduzida pelo juiz ou juíza, até o momento da sentença de pronúncia – na qual o(a) juiz(a), se convencido dos elementos de materialidade e autoria, indica o(s) dispositivo(s) legal(is) que o(a) acusado(a) teria infringido, enviando em seguida o caso para o Tribunal do Júri[146].

Na segunda fase, tem-se a única hipótese no sistema judicial em que o caso é decidido por representantes leigos da sociedade civil – denominados jurados -, que chegam ao veredicto dos casos em votação por regime de maioria. Sua decisão pode ser diferente da apresentada pelo juiz na sentença de pronúncia, motivo pelo qual é possível que um réu pronunciado por tentativa de feminicídio tenha sua conduta desclassificada para, por exemplo, lesão corporal grave. Após a decisão do conselho, o magistrado ou magistrada responsável deve registrar a sentença e, se for o caso, realizar a dosimetria da pena, com base nas respostas dados pelos jurados aos quesitos estabelecidos no art. 483 do CPP.

Bittencourt (2018, p. 847) sustenta que o cálculo da pena deve obedecer à decisão dos jurados, porém o magistrado tem o dever de fundamentar adequadamente as razões de sua delimitação numérica da pena. Sendo assim, é evidente que o juiz, apesar de não centralizar as decisões sobre questões materiais no procedimento do júri, tem um amplo espectro processual de manobra, onde também se refletem suas convicções de foro íntimo.

Para compreender as dinâmicas de funcionamento do júri, é importante entender que as “regras do jogo” vão além daquilo que está previsto em lei, nos termos propostos por Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (2007). Segundo a autora, para além dos regramentos de processo penal que conduzem o julgamento, o desempenho dos atores em plenário é decisivo para a emissão do veredito. Na medida em que não há a necessidade de fundamentação sobre a decisão tomada, o que está presente é o chamado voto de consciência, fazendo com que estratégias discursivas sociais e morais sejam também mobilizadas pelas partes com o objetivo de convencimento do conselho de sentença[147].

Além disso, conforme verificamos nas sentenças de primeira instância, as atas das sessões plenárias não são registradas por completo, de modo que dificilmente é possível compreender os argumentos e as performances das partes que levaram ao desfecho processual. Marcado pela efemeridade, então, o procedimento do tribunal do júri acaba sendo permeável a elementos extra-legais que, muitas vezes, levam a julgamentos conduzidos pelas emoções mobilizadas na sessão (MACHADO, 2015, p. 57).

A seguir, apresentamos quais são as margens de discricionariedade deixadas pela tipificação da qualificadora em termos de aplicação e (não) delimitação de sua natureza, posteriormente mostrando como essas construções se materializam no espaço do TJSP desde a implementação do tipo. Consideramos, na análise, que as variadas possibilidades de tratamento do tipo fazem com que escolhas aparentemente dogmáticas tenham cunho também político. Assim, o modo como o judiciário entende a qualificadora do feminicídio é capaz de produzir discursos mais ou menos atentos à produção estrutural da violência de gênero, bem como construir narrativas que priorizam o fim punitivo do tipo em detrimento de seu objetivo simbólico.

4.2. Possibilidades de tratamento penal à qualificadora do feminicídio: pressupostos e consequências

 Construída em resposta às demandas dos movimentos feministas, através da CPI instaurada para o enfrentamento da violência fatal contra mulheres no território brasileiro, a Lei 13.104/2015 deu nova redação para o art. 121 do Código Penal, incluindo o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio[148].

Entretanto, sua aplicação ainda mostra lacunas, lançando questionamentos sobre em que medida a figura do feminicídio vem sendo – e é – capaz de responder aos objetivos de nomear e visibilizar essa violência, com o menor custo penal possível. Assim, buscamos destrinchar tecnicamente as diferentes possibilidades de interpretação dadas à qualificadora, analisando de que pressupostos partem e quais suas consequências para a aplicação consciente da justiça sob uma perspectiva de gênero.

Segundo definição dada por Regis Prado (2014, p. 440), as qualificadoras são circunstâncias legais que modificam as margens (mínima e máxima) da sanção prevista inicialmente no tipo básico. Assim, enquanto a pena para o homicídio simples é de seis a vinte anos (art. 121), a do homicídio qualificado deve ser estabelecida entre doze e trinta anos (art. 121, § 2º). Nesse sentido, a fim de precisar a aplicação dessas circunstâncias, parte da doutrina[149] divide as qualificadoras em subjetivas e objetivas. As primeiras dizem respeito aos fins e motivos para o cometimento do crime, e estão vinculadas ao foro íntimo do autor. As objetivas, por sua vez, referem-se aos meios e aos modos de execução do ato. Antes da inserção do feminicídio, as qualificadoras subjetivas do crime de homicídio eram as dos incisos I, II e V, e as de caráter objetivo eram aquelas previstas nos incisos III e IV[150] do art. 121 do Código Penal.

            Apesar de alguns tribunais terem uniformizado o modo de aplicação da qualificadora de feminicídio[151], ainda não há entendimento homogêneo em relação à sua natureza. Bianchini (2016) identificou, dentre os operadores e teóricos do direito, três posicionamentos sobre a questão: (i) feminicídio como qualificadora subjetiva; (ii) feminicídio como qualificadora objetiva; e (iii) posicionamento misto, que entende que a circunstância prevista no art. 121, §2º-A, inciso I (violência doméstica e familiar) é objetiva, mas as condições do inciso II do mesmo parágrafo (menosprezo ou discriminação à condição de mulher) são subjetivas. Tendo em vista as múltiplas opções de aplicação da qualificadora no caso concreto, faz-se importante esclarecer quais as consequências de adotar um ou outro posicionamento diante das demandas sociais de visibilização e reconhecimento da violência baseada em gênero.

Compreender o dispositivo como ligado à motivação do crime – ou seja, subjetivo – traz para o centro do debate do plenário do júri a discussão sobre o que, de fato, seriam mortes decorrentes de estruturas desiguais de poder baseadas em gênero. Assim, esse entendimento assume o pressuposto de que nem todas as mortes de mulheres podem ser consideradas feminicídio, devendo ser investigado se o autor efetivamente foi motivado por razões discriminatórias de gênero. Considerando que um dos objetivos das demandas pela tipificação era lançar luz à assimetria de poder entre homens e mulheres, que perpassa estruturalmente a sociedade, mobilizar a discussão legal sob uma perspectiva de gênero assume um papel extremamente importante na disputa dos discursos jurídicos.

A qualificadora, ainda, pode ser definida como objetiva na medida em que a Lei Maria da Penha estabelece um conceito delimitado de violência doméstica, e sua presença é considerada – de acordo com o §2º-A, inciso I – critério objetivo para tipificar o feminicídio[152]. Nucci (2017, pp. 610-613), por sua vez, ao defender a aplicação da qualificadora como objetiva, considera que o homem mata a mulher por diversos motivos – como ciúme, raiva, prazer, sadismo, etc. – mas executa tal ação por ser a mulher o elo mais fraco da relação, seja fisicamente ou socialmente. Sendo assim, a “condição de sexo feminino” para ele, está vinculada a essa disparidade objetiva, do mundo dos fatos[153]. Ao considerar que o ciúmes, por exemplo, seria um elemento capaz de explicar a violência de gênero (2017, p. 619), o autor contraria a construção das diretrizes de aplicação do feminicídio, baseadas na ideia de que a violência contra mulheres é estrutural e lastreada em hierarquias de poder social discriminatórias – e não um fato episódico.

Por fim, tem-se o entendimento misto, que entende a qualificadora como parcialmente subjetiva e parcialmente objetiva. Baseia-se no fato de que o inciso I do referido artigo faz referência expressa à Lei Maria da Penha, que delimita, em seu art. 5º, a definição de violência doméstica e familiar contra a mulher. Visto que essa condição é determinada de maneira objetiva, também no âmbito do homicídio ela deveria ser considerada como tal. O inciso II, por outro lado, traz situações em que houve feminicídio, mas não em decorrência de violência doméstica. Sendo assim, a motivação em razão de gênero do agente, questão subjetiva, seria a circunstância determinante para o cometimento do crime.

Esse entendimento, vale destacar, é aquele adotado pelas diretrizes nacionais de aplicação do feminicídio, na medida em que casos de violência doméstica geralmente são marcados pelo aumento paulatino da gravidade da violência (é o conceito de continuum[154]), podendo resultar em morte. Entretanto, ao considerar-se que nem toda morte violenta de mulheres é motivada por razões de gênero, a “motivação do(a) agressor(a) é central na prática desses crimes e deve ser levada em consideração na investigação criminal, no processo judicial e no julgamento” (PASINATO, 2016, p. 40).

Consideradas as implicações ideológicas de cada modo de tratamento da qualificadora, apreensíveis a partir das diferentes concepções sobre a violência feminicida que são mobilizadas, algumas consequências processuais podem ser apontadas sobre a questão. A primeira delas diz respeito à figura do “homicídio privilegiado”, que, a depender da compreensão dada à qualificadora, pode ou não incidir conjuntamente no tipo. O art. 121, §1º, CP, permite a diminuição da pena caso o agente tenha cometido o crime “impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”. Na medida em esse dispositivo refere-se a questões ligadas à motivação do delito, só poderia ser aplicado junto a qualificadoras objetivas. Em outras palavras, considerando, que as qualificadoras subjetivas – não só o feminicídio, mas também o motivo fútil ou torpe, por exemplo – dizem respeito à dimensão psíquica e motivacional do agente, não é logicamente possível que a razão para o cometimento de um homicídio seja, ao mesmo tempo, valorada de modos opostos.

Por outro lado, compreender a natureza qualificadora do feminicídio como objetiva implica em reconhecer a possibilidade de cominá-la com a figura de diminuição de pena determinada pelo §1º – do mesmo modo pelo qual poderiam ser cominadas outras qualificadoras objetivas, que não guardam relação com o motivo do crime (NUCCI, 2017, p. 618). Assim, se o feminicídio for considerado qualificadora objetiva, é possível que, ao mesmo tempo, o delito seja considerado privilegiado e o júri aumente a pena do acusado em razão da vítima ser mulher, caracterizando a figura do homicídio qualificado-privilegiado. O principal problema, nesses casos, decorre do fato de que a discussão acaba incidindo em perspectivas que aproximam a figura do homicídio privilegiado da tese, já abandonada, de legítima defesa da honra.

Essa construção traz o entendimento – a princípio superado – de que os bens jurídicos a serem tutelados, antes da vida da mulher, seriam a moral e os bons costumes – principalmente no tocante à preservação do instituto matrimonial (CORRÊA, 1983). Nesse sentido aponta a pesquisa coordenada por Machado (2015, p. 67), que identificou em processos de homicídio decorrentes de casos de violência doméstica, julgados antes da promulgação da lei do feminicídio, a mobilização de estereótipos de gênero com o objetivo de justificar a violência cometida pelo homem e, ao mesmo tempo, culpabilizar a mulher. De acordo com o estudo, uma das maneiras de tradução deste discurso em figuras jurídicas era através da consideração do homicídio como privilegiado. Desta maneira, aplicar o feminicídio em conjunto com a figura do homicídio privilegiado iria contra os objetivos de compreensão da justiça sob uma perspectiva de gênero.[155]

 Ainda, em situações em que há a hipótese de incidência de mais de uma qualificadora, a lógica para considerar a possibilidade de cominação de circunstâncias é semelhante à apresentada. É possível que se aplique, ao mesmo fato, mais de uma circunstância objetiva, bem como circunstâncias objetivas junto a uma única circunstância subjetiva. Contudo, não é possível aplicar ao mesmo crime mais de uma circunstância subjetiva, na medida em que punir o mesmo ato duas vezes caracterizaria bis in idem (BITTENCOURT, 2007, p. 53). No caso das qualificadoras objetivas esse entendimento não se verifica, vez que dizem respeito a diferentes meios e modos de execução do ato que, conjugados, contribuem à consumação do delito. Portanto, não seria possível aplicar a qualificadora do feminicídio junto com a do motivo fútil ou torpe, por exemplo, se ambas forem consideradas subjetivas.

Nucci (2018, p. 32) enquadra a vedação da dupla punição pelo mesmo fato, o denominado “bis in idem”, como um dos princípios do direito penal. Em que pese não haver previsão constitucional de tal princípio, ele decorre de garantia prevista no art. 8º n. 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina que o acusado já absolvido por sentença passada em julgado não pode ser novamente processado pelo mesmo fato. Da mesma maneira, o indivíduo, no momento da determinação de sua pena, não pode ser duplamente onerado pela mesma circunstância.

Tal discussão ganha especial importância tendo em vista que a aplicação da pena pelo juiz, operação denominada de dosimetria, divide-se em três fases (CIRINO DOS SANTOS, 2017). Na primeira delas, é fixada a pena-base, levando-se em conta as circunstâncias judiciais delimitadas no art. 59[156] do Código Penal. Na segunda fase, o magistrado deve levar em conta as circunstâncias agravantes[157] e atenuantes genéricas, estabelecidas nos artigos 61 e 65 da Parte Geral do Código Penal. Por último, devem ser contabilizadas as causas especiais de diminuição e aumento de pena, que são circunstâncias legais previstas em tipos penais específicos, portanto não são aplicáveis a todos os crimes. Somente após tal cálculo alcança-se a pena definitiva. Frise-se que tal prática tem fundamento no princípio constitucional da individualização da pena (BITTENCOURT, 2018, p. 834).

Ao longo da dosimetria, cada circunstância só pode aparecer uma única vez na argumentação apresentada na sentença, sendo levada em conta para acrescer ou diminuir o tempo da pena em apenas uma das três fases. Caso contrário, a penalização por um mesmo motivo mais de uma vez – aumentando o rigor da sanção – caracterizaria bis in idem no momento de realização da dosimetria. A discussão acima levantada faz-se relevante na medida em que, mais do que uma disputa discursiva, tem influências diretas sobre a aplicação da pena aos réus dos processos.

            Importante considerar a explicação realizada por Bittencourt (2018, pp. 855-858) a respeito das consequências da existência de mais de uma qualificadora no mesmo crime. Para o autor, a variedade ou pluralidade de qualificadoras não pode levar o aplicador do direito a transformar as qualificadoras “excedentes” em agravantes genéricas, considerando o princípio da tipicidade estrita do direito penal. Poderia ocorrer, no máximo, um aumento da pena base (considerando que o tipo qualificado, por si só, já tem pena mínima mais alta em razão de sua reprovabilidade), mas sem supervalorizar a qualificadora, sob o risco de fazer com que esta atue, materialmente, como agravante.

Em que pese a coerência da posição do autor com o princípio constitucional da individualização da pena, trata-se de posição minoritária dentro da doutrina e da jurisprudência. Atualmente, o entendimento que vem ganhando força é o de que a segunda qualificadora pode ser transformada em agravante genérica – circunstância a ser considerada na 2ª fase da dosimetria. Tal posicionamento desrespeita o sistema trifásico e resulta, conforme já explicitado acima, em um excessivo aumento do quantum final da pena.

Por conta dos motivos expostos acima, entendemos que a posição que melhor se alinha às demandas dos movimentos feministas ao reivindicar a tipificação do feminicídio é aquela que considera tal qualificadora como subjetiva ou como mista. Além de corresponderem aos objetivos expostos pelas diretrizes de aplicação do tipo, que valorizam a motivação do crime num sentido estruturalmente construído, dão menos margem à aplicação de um direito penal baseado na supervalorização do sistema punitivo e do direito penal simbólico.

A discussão, por mais que se faça dogmaticamente complexa, é importante para possibilitar a compreensão de quais são as consequências, e de quais pressupostos teóricos se parte, nos diferentes modos de aplicação da qualificadora do feminicídio. Assim, possibilita análise mais detida sobre como vem sendo trabalhado o conceito de gênero nas entrelinhas da tipificação de delitos, bem como garante um olhar crítico ao modo como o sistema penal responde em termos de fixação de penas e reprovabilidade de condutas. Essas construções dogmático-penais são, desse modo, politicamente importantes – e ficarão mais claras, a seguir, com a análise concreta dos julgados.

  1. A aplicação da qualificadora do feminicídio no TJ-SP

 

5.1.  Análise quantitativa das sentenças de 1ª instância

Conforme já destacado, o tratamento dos dados na primeira instância do TJ foi quantitativo. Dentre os casos pronunciados por feminicídio, buscamos compreender como se deu o tratamento penal da qualificadora, bem como de que modo ela se articulou com outros dispositivos de qualificação subjetiva do crime de homicídio. Apesar dessa discussão dificilmente ser abordada nas sentenças de primeira instância, a aplicação da qualificadora do feminicídio em relação às outras subjetivas evidencia uma tomada de posição que, mais do que dogmática, é política, e marca sentidos de compreensão de gênero e violência dentro do júri.

Seguindo o entendimento proposto nas diretrizes de aplicação do tipo, fica evidente que muitos dos casos julgam os réus incorrendo em bis in idem no momento de aplicação das qualificadoras e realização do cálculo dosimétrico da pena. Assim, a proposta de acionamento mínimo do direito penal acaba se perdendo quando chega nas mãos dos juízes e jurados, e, muitas vezes, o recrudescimento penal aparece como um dos principais nortes nas sentenças.

Tabela 1. Condenações no júri por feminicídio

Condenações no júri por feminicídio
Casos pronunciados por feminicídio 75
Casos condenados no júri por feminicídio 55
Aplicação das qualificadoras subjetivas nos casos de condenação por feminicídio
Feminicídio: 121, § 2°, VI[158] § 2-Aº, I e II[159] 18
§ 2º-A, I (obj.) 13
§ 2º-A, II (subj.) 0
Total: 32
Feminicídio e motivo fútil ou torpe Feminicídio e motivo torpe: 121, § 2°, I, VI[160] § 2º-A, I e II 10
§ 2º-A, I (obj.) 3
§ 2º-A, II (subj.) 0
Total: 13
Feminicídio e motivo fútil: 121, § 2°, II, VI § 2-A, I e II 5
§ 2º-A, I (obj.) 4
§ 2º-A, II (subj.) 1
Total: 10
Total 23

Se considerarmos a qualificadora de natureza integralmente subjetiva, houve bis in idem em 41,3% dos casos:

Gráfico 1. Bis in idem nas condenações por feminicídio (entendimento subjetivo)

            Se considerarmos, ainda, o entendimento misto sobre a subjetividade da qualificadora, 33,3% dos casos incorreram em bis in idem:

Gráfico 2. Bis in idem nas condenações por feminicídio (entendimento misto)

            Assim, como será endossado na análise de segunda instância, o descompasso entre a proposta e os objetivos do tipo – que consideram estruturas de poder desigual e discriminações baseadas em gênero para definição da violência – fica evidente nas entrelinhas do tratamento penal dado ao tipo. Em uma parcela expressiva dos casos, o entendimento pela objetividade do feminicídio acaba por invisibilizar questões estruturais, e sua aplicação cominada com outras qualificadoras subjetivas incorre em dupla penalização e aumento da pena dos réus.

 

5.2. Perspectivas de gênero e punição nos acórdãos de 2ª instância      

A análise qualitativa da aplicação da qualificadora considerou 19 acórdãos nos quais o réu havia sido pronunciado ou condenado por feminicídio. Baseando-se nas questões levantadas pela primeira instância, duas questões foram consideradas centrais para pensar a tipificação em relação às demandas sociais que a produziram: (i) como a discussão acerca da natureza das qualificadoras e sua aplicação na dosimetria das penas se reflete em uma instância superior, e (ii) os discursos de gênero articulados nas sentenças, buscando compreender se ainda persiste a lógica estereotipada de leitura dos casos identificada no período anterior à tipificação (MACHADO, 2015).

 

5.2.1. A natureza da qualificadora do feminicídio nos acórdãos do TJSP

Das 19 apelações acessadas, seis delas, interpostas pela defesa, requeriam  o afastamento da qualificadora. Em todas essas, a qualificadora foi mantida. No polo oposto, tivemos acesso a quatro apelações interpostas pelo Ministério Público que pleiteavam a reinserção da qualificadora do feminicídio na condenação. Em apenas um desses casos o pedido foi desconsiderado e a opção do júri mantida[161], enquanto em três deles o Tribunal estipulou que houvesse novo julgamento do caso pelo júri[162].

Os números indicam que os(as) julgadores(as) do TJSP não têm sido resistentes à aplicação da qualificadora do feminicídio, ao menos nos casos que alcançaram a segunda instância já com este enfoque delimitado. Em relação à natureza da qualificadora e seus impactos na determinação da pena, em seis casos o réu havia sido condenado por feminicídio junto com outra qualificadora subjetiva, enquanto em quatro a condenação foi cominada com alguma qualificadora objetiva.

A partir de leitura dos relatórios dos acórdãos, que descrevem os pedidos realizados pela defesa ou pela acusação, percebe-se que, nos casos em que houve a aplicação do feminicídio e de outra qualificadora subjetiva, a defesa pleiteou genericamente o afastamento das qualificadoras, sem que houvesse menção à prática de bis in idem[163]. Com isso, em apenas um caso, no qual o julgador adotou posicionamento que considera que o feminicídio tem natureza objetiva, o debate acerca da natureza das qualificadoras foi pontuado de maneira clara no acórdão:

Importa considerar, a propósito, que, no que concerne ao reconhecimento das qualificadoras previstas nos incisos I e VI do § 2º do art. 121 do Cód. Penal, é compatível com as circunstâncias do fato em tela reveladas pela prova colhida durante a persecução penal. Insta consignar, neste aspecto, quanto ao reconhecimento das qualificadoras em questão, que não há que se falar em indevido bis in idem, pois decorrem de objetividades jurídicas diversas, quais sejam, motivo torpe, ciúme, e, por outro lado, feminicídio, em razão da condição de sexo feminino. (Acórdão 0004999-46.2016.8.26.0483, grifos nossos).

Em acórdão que segue a mesma linha de raciocínio, os julgadores consideraram que seria possível aplicar a figura do homicídio privilegiado em conjunto com a qualificadora do feminicídio. Conforme já explicitado acima, tal postura só é possível se o feminicídio é visto como circunstância objetiva do crime. Contudo, tal debate não é feito no acórdão, que limita-se a referendar a aplicação da figura do privilégio:

O recorrente foi condenado porque, agindo com intenção homicida, por motivo torpe, mediante recurso que dificultou a defesa da vítima e por asfixia, provocou a morte de G.C.S.P.R., sua esposa. A defesa pleiteia a anulação do julgamento alegando genericamente que a decisão pautou-se tão-somente por um sentimento de vingança velada dos jurados. (…) Conquanto a defesa, nesse aspecto, procure mitigar a gravidade da conduta pelo fato de a vítima ser mulher e, mais, sua esposa, a lei, a doutrina e a jurisprudência, de forma bastante harmônica e amplamente majoritária, conferem proteção especial nesse sentido, reconhecendo a fragilidade e a vulnerabilidade da mulher, sobretudo no âmbito das relações domésticas, impondo, de outro lado, maior rigor na repressão e prevenção a delitos dessa natureza. Incensurável o recrudescimento da pena-base. (…) Ao final, reconhecido o privilégio, a sanção penal foi reduzida de 1/6, o que também deve ser mantido, porquanto condizente com a injusta provocação, no caso, relacionada a meros xingamentos. (Acórdão 0003523-55.2014.8.26.0058, grifos nossos).

O que primeiro salta aos olhos no trecho acima é o fato de que as considerações da defesa foram apontadas pelo magistrado apenas como “alegações genéricas”. Ademais, o acusado foi condenado por homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima), o que já torna a pena mínima mais alta. Mesmo assim, houve exasperação da pena-base por conta da “condição de vulnerabilidade da mulher”, circunstância que não foi considerada como qualificadora do crime. Por último, aplicou-se a figura do privilégio sem discutir-se o paradoxo de aplicá-la em conjunto com a circunstância do motivo torpe. A pena final foi estabelecida em 17 anos e 6 meses.

Em outro caso em que a condenação se deu com base no motivo fútil e também no feminicídio, a última qualificadora foi aplicada na segunda fase na dosimetria pelo juízo de primeiro grau, situação referendada na segunda instância.

Na segunda fase da dosimetria, considerando que o réu é reincidente (ostenta condenação com trânsito em julgado por tráfico ilícito de entorpecente ? fls. 134/35) e a presença da qualificadora do feminicídio, o juiz de primeiro grau majorou a sanção na fração de 1/5. Assim, seguindo idênticos parâmetros, tem-se 14 anos, 4 meses e 24 dias de reclusão. (Acórdão 0000065-26.2016.8.26.0360, grifos nossos).

Esses três exemplos, longe de serem casos isolados, representam a forma como o feminicídio vêm sido inserido nos processos. Apesar da discussão mostrar-se relevante dentro da doutrina, os magistrados do TJSP não demonstram apropriação do debate – aplicando mecanicamente a qualificadora, geralmente de maneira objetiva e com altos custos penais. Fica evidente, pela falta de fundamentação e coerência ao adotar um ou outro posicionamento, a falta de clareza acerca de seus pressupostos.

Isso demonstra a carência de reflexões embasadas sobre a aplicação do instituto, condizentes, além de tudo, com o princípio da individualização da pena. Tal postura mascara as incongruências do sistema, que, se em um primeiro momento parecem meramente formais, em realidade têm grande impacto diante do ideal do direito penal mínimo. Ainda, como veremos a seguir, as lacunas argumentativas das sentenças esquivam-se do objetivo de criar uma prática que potencialize a percepção social das problemáticas de nossas estruturas de poder patriarcais.

 

5.2.2. “Aplicação da justiça sob uma perspectiva de gênero”: discursos jurídicos e a mobilização de estereótipos

Conforme destacado pelas diretrizes nacionais de aplicação do feminicídio, a linguagem é um instrumento extremamente importante para desconstruir estereótipos e discursos tradicionalmente produzidos sobre a mulher. Em análise aos processos de violência doméstica fatal antes da tipificação do feminicídio, Machado (2015) detectou a mobilização de categorias de gênero e moralização das partes na construção das narrativas de violência:

Em relação à atuação do sistema de justiça perante o feminicídio, um dos aspectos que merecem aprofundamento é a construção da imagem da vítima e do autor do crime na narrativa construída ao longo do processo, por meio dos múltiplos atores que nele intervêm. Foram detectados dois pólos que, em grau menor ou maior, são demarcados nos discursos que constam dos processos judiciais. As mulheres são classificadas no espectro que vai da castidade à devassidão, da obediência à transgressão. Já os homens vão do provedor honesto ao explorador, da normalidade à monstruosidade. (MACHADO, 2015, p. 50, grifos nossos)

Buscamos, então, retomar de modo breve as narrativas que vêm sendo construídas sobre esse crime após a promulgação da lei do feminicídio. Em muitos dos casos analisados, a linguagem continua a operar em desfavor da existência de uma justiça que atue de fato de acordo com uma perspectiva de gênero. Abaixo, são destacados trechos que ainda utilizam como estratégia discursiva traços de valorização ou desmoralização da mulher de acordo com características familiares e sexuais, e do homem de acordo com sua situação de trabalho e suposta honra. A violência é explicada por eventos descontextualizados de seu caráter estrutural, sendo entendida mais como um acontecimento pontual, um “acidente biográfico” (MACHADO, 2015, p. 52) na vida de duas pessoas. Vale destacar que, mesmo quando esses traços vêm de teses da defesa ou acusação, não há esforço argumentativo por sua desconstrução:

O motivo fútil ficou caracterizado pela prova oral: o acusado matou a vítima porque não se conformava com o término do relacionamento. Ele tinha ciúme da ex-namorada (…). (Apelação 0022696-89.2015.8.26.0071, grifos nosso)

(…) nas condições de tempo e lugar referidas na inicial, o acusado, por motivo torpe e por razões da condição de sexo feminino, tentou matar L. P. S. O acusado, em razão de ciúmes, desferiu dois golpes de faca na região abdominal da vítima, sua ex-namorada (…). (Apelação 0004999-46.2016.8.26.0483, grifos nossos)

As qualificadoras restaram bem reconhecidas, em razão de o crime ter sido praticado por motivo fútil (o réu estava inconformado com o término do relacionamento), de surpresa e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima (ataque pelas costas) e praticado contra ex-companheira. (Apelação 0001641-45.2015.8.26.0536)

Além da violência ser percebida de forma episódica e individualizada, nos trechos acima as “condições de sexo feminino” reduzem-se à objetividade do critério de violência doméstica, deduzido da existência de laços afetivos. Vale destacar, ainda, o acórdão abaixo, que atravessa as construções sobre as possibilidades de incidência da figura do homicídio privilegiado:

Em plenário, o apelado aduziu ter agido sob o domínio de violenta emoção. Sempre ajudou financeiramente a vítima, que era usuária de drogas e álcool. Relatou que no dia dos fatos, recebeu uma ligação da vítima para que fosse até sua casa e lá, iniciaram uma discussão porque a vítima queria dinheiro para comprar drogas, tendo o réu se recusado. Vanessa foi para cima do depoente tendo desferido uma pancada em sua cabeça e machucado sua perna. Entraram em luta corporal. O depoente conseguiu tomar a faca que estava nas mãos de Vanessa e desferiu vários golpes contra ela. (…) Nesse quadro, diante da quantidade de facadas desferidas, depreende-se que o réu teria, no mínimo, exorbitado, os meios necessários para repelir uma agressão injusta, inviabilizando a tese de que agiu em legítima defesa. (Apelação 0008041-05.2015.8.26.0624)

            No último trecho, a tese da violenta emoção é descartada em razão do número de facadas dado pelo autor, mas não há menção alguma ao fato dele ter se justificado com base no fato da vítima ser usuária de drogas e álcool. Assim, novamente é possível observar superficialidade na desconstrução de narrativas generificadas e marcadas por estereótipos moralizados.

Na apelação 0003199-97.2016.8.26.0445, ainda, a qualificadora do feminicídio não é reconhecida pois, mesmo que o homicídio tenha decorrido, segundo as testemunhas, do “desejo de romper” da vítima, os envolvidos se relacionavam havia pouco tempo. Em seguida, na dosimetria, o autor é colocado no polo moral da monstruosidade, tendo sua pena é aumentada por isso:

Ademais, verifica-se que o acusado era usuário de substância entorpecente e, na madrugada dos fatos, em uma festa na residência de amigos, portava uma arma de fogo, devidamente municiada e que foi por ele utilizada para matar a vítima, o que demonstra sua má conduta social e personalidade distorcida. (Apelação 0003199-97.2016.8.26.0445, grifos nossos).

É possível destacar, ainda, o modo como as teses defensivas utilizam-se de estratégias de moralização e retratação da mulher como figura agressiva, na tentativa de descontruir o binômio vítima-autor. No trecho abaixo, o único elemento posteriormente trazido para destacar as “condições do sexo feminino” foi o fato das partes terem convivido maritalmente:

Na fase policial, disse que a vítima era usuária de drogas e, na data dos fatos, retornou para casa depois de ter ficado dois meses morando na rua. Afirmou que iniciaram uma discussão e a vítima foi em sua direção com uma faca e lhe desferiu um golpe que o atingiu no antebraço esquerdo. Em dado momento, conseguiu desarmar a vítima e desferiu nela três ou quatro golpes, porque “perdeu a cabeça”. Em Juízo, disse que não sabia dizer quantos golpes desferiu contra a vítima. (Apelação 0000783-14.2015.8.26.0536)

                Por fim, pode ser destacado um caso específico que mostra o modo como o judiciário, por mais que efetivamente aplique a qualificadora, o faz sem considerar uma perspectiva de gênero e estrutural:

por não aceitar a “justa intenção” de Ariana de romper o relacionamento, o recorrido decidiu matá-la, no que teria consistido a motivação torpe imputada pelo órgão ministerial. Nesse contexto, o acusado teria passado a ingerir bebidas alcoólicas e se armado com um facão. Ato contínuo, aproximou-se da vítima e a dominou pelo pescoço. Logo em seguida, levou Ariana até um espelho e disse: “tá vendo esse restinho bonito? Pena que você não vai ver mais o pescoço e nem ter mais esse rosto”. (…) Repetidamente, Ariana tentou se arrastar para fugir, mas o acusado a puxava de volta pelos seios, o que, inclusive, acabou por machucá-la nessa região. Por fim, o recorrido interrompeu a investida apenas quando percebeu a chegada da Polícia. (…) a qualificadora do feminicídio teria restado configurada, haja vista que o acusado e Ariana viviam em união estável havia aproximadamente 5 (cinco) anos, fazendo incidir, portanto, o regramento do artigo 5o, inc. III, da Lei Maria da Penha, revelador de violência doméstica e familiar contra a mulher. E, ainda, a qualificadora do artigo 121, § 2o, inc. III, do Código Penal, teria restado demonstrada, uma vez que o apelado “desferiu violentíssimos golpes de facão em regiões nobres do corpo da vítima, bem como a puxou pelos seios, causando-lhe, assim, atroz e desnecessário sofrimento”, o que teria revelado brutalidade incomum e total impiedade. (Apelação 0000565-81.2015.8.26.0569, grifos nossos).

            O crime denota claro sentimento de posse e controle sobre o corpo feminino – com agressões do autor dirigidas à sua beleza e seios, que seriam marcas dotadas de significado sexual dentro da relação conjugal. Entretanto, o feminicídio é visto a partir do núcleo familiar do ocorrido, e a brutalidade do crime é descolada do contexto de assimetria de poder em que se insere – sendo tomado apenas pelas lentes da qualificadora de realização do crime por meios cruéis.

            Fica clara a importância da disputa da linguagem jurídica e da aplicação da qualificadora de acordo com a perspectiva que buscou-se dar a essa violência: estrutural, marcada por relações sociais de gênero construídas por práticas discriminatórias reiteradas. Assim, enquanto a qualificadora tiver aplicação descontextualizada e reproduzir certos estereótipos, sua efetividade, para além de uma condenação penal, é ainda questionável.

 

  1. Conclusão: existe possibilidade de diálogo entre o acionamento do sistema punitivo e as demandas dos movimentos feministas?

No dia 9 de março de 2018, a lei que tipificou o feminicídio completou três anos. Como observado, sua entrada no judiciário se deu de maneira gradual e as diretrizes elaboradas para nortear sua aplicação só passaram a ser implementadas em 2017. Sendo um documento recente, em parte explica o porquê da dificuldade de implementá-lo de modo coerente e uniforme. Ao mesmo tempo, tal dificuldade lança luz sobre lacunas importantes da prática jurídica em relação aos objetivos traçados durante a elaboração legislativa. A fim de identificar seus principais pontos de conflito e buscar a construção de uma prática mais coerente, faz-se importante analisar como vêm sendo traçados os caminhos e contradições de sua aplicação pelo poder judiciário. Ao passo em que os movimentos feministas encaram o Judiciário como campo de disputas, sendo o direito tomado como espaço de reconhecimento e reivindicações, a aplicação de uma lei construída em conjunto com os movimentos sociais não pode ser descolada de tal realidade. Acompanhar o modo como vem sendo aplicada a qualificadora, então, significa mapear em que medida a tipificação tem alcançado seu objetivo de desinstitucionalização de padrões culturais discriminatórios.

A disputa por um Judiciário atento a categorias de gênero e à promoção de equidade, nesse sentido, se traduz principalmente pelas formulações que constam nas diretrizes nacionais de aplicação da lei. O documento coloca a disputa discursiva de crimes e sujeitos como pontos centrais para que não haja a reprodução de lógicas discriminatórias, destacando mais a ressignificação de sentidos produzidos sobre a violência fatal contra mulheres do que demandas pelo acionamento do sistema punitivo.

Entretanto, considerando o TJSP, primeiro tribunal a aderir às diretrizes, como campo de análise, identificamos a falta de diálogo entre a aplicação da qualificadora e as reivindicações sociais propostas pelas diretrizes. Desse modo, além de ser importante que os julgadores tenham uma perspectiva de gênero ao proceder aos julgamentos, devem ser tomados com cautela os custos penais oriundos de escolhas dogmáticas pretensamente neutras como, por exemplo, a aplicação da qualificadora como circunstância subjetiva ou objetiva do crime. A questão traz diversas repercussões para o âmbito do processo, podendo refletir um debate de gênero raso, baseado em estereótipos socialmente construídos, e que prioriza o sistema penal como ferramenta punitiva – e não simbólica, como pleiteado.

Para além de repensar a abordagem dada pelo judiciário para o crime de feminicídio, entretanto, é necessário disputar uma atenção integral para o problema da violência de gênero no Brasil. Os mecanismos de produção de diferença entre homens e mulheres necessitam de uma ação mais incisiva do Estado, a partir de políticas públicas que considerem o caráter estrutural da questão e dirijam-se à desconstrução de representações sociais assimiladas.

Ou seja, a solução não pode ser a simplesmente punitiva, tendo em vista que a capacidade de mudança estrutural apresentada pelo uso do direito penal é mínima. A Lei Maria da Penha, nesse sentido, traz ampla previsão de políticas públicas e ligadas à educação em gênero. Entretanto, o cenário institucional atual mostra-se contrário à formulação de soluções preventivas à questão, sendo barradas diversas propostas nesse sentido – como, por exemplo, a inclusão de “gênero” nos Planos de Educação de municípios e estados.

Assim, faz-se importante encarar o judiciário como campo de disputas discursivas e dogmáticas, pleiteando a construção de uma justiça atenta a construções de gênero, e, mais do que isso, entender suas limitações para desconstruir relações estruturais de desigualdade.

 

  1. Referências

 ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. Pesquisas em processos judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar Empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. Cap. 9. p. 275-320.

BIANCHINI, Alice. A Qualificadora do Feminicídio é de Natureza Objetiva ou Subjetiva? R. Emerj, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p.203-219, jan.-mar. 2016.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

                          , Cezar Robert. Tratado de direito penal: Parte Especial, v.2. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

PASINATO, Wânia (coord). Diretrizes nacionais Feminicídio. Investigar, processar e julgar com a perspectiva de gênero. As mortes violentas de mulheres. Brasília: ONU Mulheres, Secretaria de Política para as Mulheres, Secretaria Nacional de Segurança Pública; 2016.

BRASIL. Código de Processo Penal, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 20/04/2018.

BRASIL. Código Penal, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 20/04/2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20/04/2018.

CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: Uma análise crítico-feminista. Sistema Penal & Violência, [s.l.], v. 7, n. 1, p.103-115, 7 ago. 2015. EDIPUCRS.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Caderno especial: Lei do Feminicídio. 2017. In: Portal Compromisso e Atitude. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2017/09/informativo_especial_web.pdf>, acesso em 23 abr. 2018.

LAGARDE Y DE LOS RIOS, Marcela. Por los derechos humanos de las mujeres: la Ley General de Acceso de las Mujeres a una vida libre de violencia. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, vol. XLIX, No.200, maio-ago, 2007, p.143-165.

MACHADO, M. R. de A. (org.). A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil. Diálogos sobre Justiça. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

SCHRITZMEYER, A.L.P. Afetos em jogo nos Tribunais do Júri. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 70-79, jul./dez. 2007.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 13 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SOUSA, Tânia Teixeira Laky de. Feminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista. Ex Aequo – Revista da Associação Portuguesa de Estudos Sobre As Mulheres, [s.l.], n. 34, p.13-29, 15 dez. 2016. Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres – APEM.




A importância do orçamento público na efetivação de políticas públicas: uma análise acerca da dotação orçamentária do PRONERA. 

The importance of the public budget in the effectiveness of public policies: an analysis of the PRONERA budget appropriation.

Jaqueline Pereira de Andrade

Jeferson Pereira da Silva[164]

Resumo: O presente artigo versa sobre a importância do orçamento público na efetivação de políticas públicas, com ênfase no Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária). No que dispõe a estipulação de gastos e alocação de recursos provindos do Estado, para a efetivação deste programa e uma análise de 6 anos (entre 2013 e 2018) da dotação orçamentária prevista para a sua realização. Analisamos ainda que a luta popular por políticas públicas tem que amparar também a luta por um orçamento participativo, porque é no ensejo orçamentário que a continuidade das políticas pode ser garantida. Observamos também que é imprescindível que o Estado cumpra com os compromissos e obrigações previstas para programas como estes, que são assegurados constitucionalmente e por garantias legais. O Pronera em sua extensão está sendo diretamente sucateado, tendo em vista a amplitude de cursos, de beneficiários e de gastos, o recurso previsto para o programa simplesmente põe fim a política pública. Além da importância do recurso para o programa, é necessário que haja uma boa gestão financeira que consequentemente levará a uma boa prestação do Pronera. Todos esses elementos são de fundamental importância para que políticas como essa, continuem a existir e a garantir o acesso à educação a milhares de beneficiários.

Palavras-chave: Orçamento Público; Pronera; Políticas Públicas.

Abstract: This article deals with the importance of the public budget in the implementation of public policies, with emphasis on the Pronera (National Program for Education in Agrarian Reform). In terms of the stipulation of expenditures and allocation of resources from the State, for the implementation of this program and a review of 6 years (between 2013 and 2018) of the budget allocated for its realization. We also analyze that the popular struggle for public policies must also support the struggle for a participatory budget, because it is in the budget area that the continuity of policies can be guaranteed. We also note that it is essential that the State comply with the commitments and obligations envisaged for programs such as these, which are constitutionally guaranteed and guaranteed by law. The Pronera in its extension is being directly scrapped, given the breadth of courses, beneficiaries and expenditures, the resource provided for the program simply puts an end to public policy. Besides the importance of the resource for the program, it is necessary that there is a good financial management that will consequently lead to a good performance of Pronera. All these elements are of fundamental importance for policies like these to continue to exist and to guarantee access to education for thousands of beneficiaries.

Keywords: Public budget; Pronera; Public policy.

 

 

  1. INTRODUÇÃO

Para que políticas públicas como o PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, aconteçam na prática, além das lutas políticas, sociais e populares, é necessário que o estado dispenda recurso para tais políticas. Ou seja, é necessário que seja garantido no orçamento a fatia equivalente para a criação, desenvolvimento e manutenção do Programa. O orçamento público é quem vai garantir a efetivação do PRONERA.  O direito a educação é garantido na constituição Federal, diz o artigo 205 da Constituição Federal de 1988: ” A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Porém, os direitos por si só não se concretizam, é necessário recurso para que eles possam materializar-se no mundo real, ou seja todo direito tem um custo, e esta realização depende de uma previsão orçamentário para tal. Então o direito à educação e educação do campo, que é a proposta do PRONERA, está condicionado a dotação orçamentária para que seja de fato realizado. O Pronera como programa Nacional que propõe e apoia projetos de educação voltados para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária, necessita de recursos para que se efetive. Segundo o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o custo anual de cada aluno do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), de acordo com a portaria de nº 563, de um aluno de EJA– modalidade alfabetização varia, conforme a região, de R$ 2,7 mil a R$ 3 mil. Para Ensino Médio, os valores variam entre R$ 5,5 mil e R$ 6,9 mil. Para Graduação e Pós-Graduação não há variação entre as regiões e os valores são de R$ 7,6 mil e R$ 8,3 mil, respectivamente, como demonstra a tabela a seguir:

FONTE: INCRA, 2012.

TABELA 1 – CUSTO ALUNO ANO NO ÂMBITO DO PRONERA

Percebemos, então que mesma a educação, sendo um direito fundamental e constitucionalmente assegurado, se não dispor recursos, sua realização fica totalmente prejudicada. Neste sentido, é necessário haver a previsão dentro da esfera pública das despesas e previsão de receitas. Ou seja, toda a construção e desenvolvimento das políticas deverão estar contida nas leis orçamentárias que culminaram no orçamento público, mas especificamente na LOA (Lei Orçamentária Anual).  Este importante instrumento de gestão e planejamento público, é considerado uma peça indispensável para a manutenção e efetivação dos direitos constitucionais. A própria constituição apresenta os direitos tutelados pelo Estado e como eles serão efetivados na prática. Nos termos da Constituição:

A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

A própria CR/88, indica os caminhos e competências dos entes federados no que tange os recursos provindos e destinados à educação e   assegura a disposição de talreceitas e os percentuais que serão destinados para este direito aconteça.  Ela determina que União aplique, no mínimo, 18% para educação e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25%. É da esfera federal que provém a maior soma de recursos para o ensino superior, enquanto os Estados e Municípios os destina mais para o ensino fundamental.  De acordo a Emenda Constitucional n.º 14, de setembro de 1996, e regulamentado pela Lei n.º 9.424, de 24 de dezembro do mesmo ano, e pelo Decreto nº 2.264, de junho de 1997, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão destinar pelo menos 15% dos impostos e transferências dos mesmos na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. Dentro da seara da educação, está a política pública do Pronera. Os cursos do Pronera são organizados em regime de alternância, em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei no 9.394/1996, cujo art. 23 determina:

A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar (Brasil, 1996).

  1. O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EXECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

 

2.1. Orçamento Público

 O orçamento público é um importante elemento de planejamento estatal.Atualmente o orçamento nos países tidos como democráticos, desempenha um importante papel, no planejamento monetário do Estado para um determinado tempo. Qualquer erro existente no orçamento, implicará diretamente na política do governo, produzindo reflexos negativos na consecução das finalidades que cabem ao Estado impactando diretamente na vida das pessoas, por isso é de suma importância que o povo tenha não só conhecimento do orçamento público, mas também possa ajudar na sua construção.

Segundo o renomado professor Aliomar Baleeiro (2002), nos países democráticos o orçamento público seria:

O ato pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei (BALEEIRO, 2002).

Neste sentido, podemos entender a partir de Baleeiro, que o orçamento, consiste numa organização estatal, que tem como iniciativa o poder executivo, que se relaciona com poder legislativo. O processo orçamentário brasileiro respeita o princípio da separação dos poderes, e se constrói de forma compartilhada, sendo que cada um dos poderes, elabora suas próprias propostas orçamentária e encaminham para o poder executivo para a consolidação.  No caso da proposta orçamentária da União, ela segue este mesmo caminho, passando pelas mãos do executivo e encaminhado para o congresso nacional, posteriormente retornando para o executivo para sua sanção ou veto. Neste ato fica evidente a aplicação do princípio republicano da separação dos poderes e sua inter-relação.

O orçamento tem natureza legal, ou seja, tem força de lei, e segue todo o rito exigidos pelas normas legais. O processo orçamentário está contido nas fases de elaboração e execução das principais leis orçamentárias: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). Cada uma dessas normativas tem ritos próprios de elaboração, aprovação e implementação pelos Poderes Legislativo e Executivo. Entender esses ritos se constitui num passo importante na democratização do Estado, fortalecendo assim, o exercício do controle social na aplicação dos recursos públicos. O orçamento público tem como principais bases legais a constituição da República no título VI- Capítulo II- das finanças públicas.Seção II- dos Orçamentos e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que amplia suas atribuições e de certa forma é a mais importante.  Sendo aprovada em 2000, introduziu novas responsabilidades para o administrador público com relação aos orçamentos da União, dos Estados e municípios, como limite de gastos com pessoal, proibição de criar despesas de duração continuada sem uma fonte segura de receitas, entre outros. A Lei introduziu a restrição orçamentária na legislação brasileira e cria a disciplina fiscal para os três poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário e do Ministério Público. Para que este orçamento se consolide, é necessário que ele respeite alguns princípios norteadores que servem para guiar sua execução. Nas quais vale citar algumas dentre as várias existentes:

  1. Princípio da Anualidade Orçamentária: parte do princípio de que o orçamento deve ser elaborado para vigorar por um período determinado, no Brasil como na maioria dos Estados, esse período corresponde ao do exercício financeiro (este no Brasil coincide com o ano civil, janeiro a dezembro). Importante destacar que este princípio é diferente, e não pode ser confundido com o princípio da anualidade tributária, que não mais vigora em nosso sistema.
  2. Princípio da Não Afetação da Receita: está contido no artigo 167, inciso IV da CF, veda a vinculação do tributo da espécie imposto a órgão, fundo ou despesa, ressalvada as exceções previstas no citado artigo. Importante destacar que a vedação se refere exclusivamente aos impostos, sendo a vinculação permitida no caso de outros tributos, como as contribuições sociais para previdência social.
  3. Princípio da Exclusividade da Matéria Orçamentária: dispõe sobre a ideia de que só pode constar na lei do orçamento, matéria relativa a receita e a despesa. Princípio expressamente previsto no art. 165, § 8º da CF. Existem duas exceções a este princípio: 1. Autorização para abertura de créditos suplementares; 2. Operações de crédito, ainda que por antecipação de receita.
  4. Princípio da Legalidade: neste caso a autorização relativa a receitas e despesas só pode ser dada por meio de lei formal (aquela que emana no Poder Legislativo e segue o processo legislativo determinado na Constituição Federal). As despesas extraordinárias, são exceção (prevista no art. 167, § 3º da CF) a este princípio (APRENDATRIBUTÁRIO, 2008).

Entendendo mais deste processo de organização orçamentária do estado, partiremos neste segundo momento para uma análiseprévia das disposições contidas no arcabouço orçamentário e como elas devem ser destinadas. A princípio vamos nortear nosso estudo sobre as políticas públicas, esta importante ação estatal prevista no contexto orçamentário.

2.2. Políticas Públicas

 As políticas públicas estão intimamente arraigadas na realização dos direitos sociais, sendo aqueles direitos presentes no rol dos direitos fundamentais, que se concretizam por meio da prestação jurisdicional do Estado.

      As políticas Públicas são hoje importantes instrumentos de atuação do estado – o governamental by policies que desenvolve e aprimora o government by law (COMPARATO, 1989).  Políticas públicas são os programas de ação do governo para a realização de objetivos determinados num espaço de tempo certo. As políticas públicas, podem assumir diversas formas, como por exemplo a forma prevista no artigo 165, § 2º, da CR/88, que dispõe sobre os planos e programas.

Há, no entanto, políticas que se traduzem em programas de ação, em sentido estrito, como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, cujo detalhamento se exprime por meio de formas normativas infra legais, como decretos, portarias ou resoluções, resultados da atividade regulamentar do Poder Executivo.  Frisando-se que no Brasil inexistem os decretos autônomos, de tal forma que a função normativa da administração se exerce sempre a partir de previsão legal. A formulação de políticas públicas voltadas a educação consistiria, portanto, num procedimento, e poder-se-ia conceituar, genericamente, os programas de ação do governo como o Pronera. Em grande parte, porém, o sucesso da política pública como a do Pronera, está relacionado com a qualidade do processo tanto orçamentário quanto administrativo do Estado, que precede a sua realização e que a implementa.

 

  1. HISTÓRIA DO PRONERA E COMO VEM SENDO DESENVOLVIDO ATUALMENTE

 O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) é uma política pública de Educação do Campo, desenvolvida nas áreas de reforma agrária e executada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

A história do Programa, cabe sinalizar, é fruto da luta dos movimentos sociais e sindicais do campo pela garantia do acesso à escolarização a milhares de jovens e adultos, trabalhadores das áreas de reforma agrária que, até então, não haviam garantido o direito de se alfabetizar, tampouco o direito de continuar os estudos em diferentes níveis e modalidades de ensino. Esse debate ganhou mais força durante o ano de 1997, no I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – ENERA, que culminou com a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999).

Fotografia de turma de jovens e adultos (eja). Fonte: INCRA, 2014.

O PRONERA foi regulamentado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria Nº. 10/98 vinculado ao extinto Ministério de Política Fundiária e posteriormente transferido para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para viabilizar a regionalização (SILVA; LIMA 2015).

A partir da aprovação da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, o processo de intensificação da regulamentação e implantação da Educação do Campo tomou força, e em 2002, surgiu a Resolução CNE – Conselho Nacional de Educação/CEB – Câmara de Educação Básica n.º 1, de 03 de abril, que regulamentava as diretrizes nacionais para a educação básica nas escolas do campo. Em 2003 a Portaria n.º 1.374 de junho, emitida pelo Ministério da Educação, visava a implementação destas ações, a qual estabelece:

Art. 4º O projeto institucional das escolas do campo […] constituir-se-á num espaço público de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o mundo do trabalho, bem como para o desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente sustentável. Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as diferenças e o direito à igualdade […] contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia (BRASIL, 2002).

Os programas de Educação do Campo, dentre eles o Pronera, são desenvolvidos pela União em regime de colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de acordo com o as diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (CAMARGO, 2017).

Em 2009, o governo federal, na lei nº 11.947, DE 16 de junho de 2009, já acentuava a necessidade de dotação orçamentária que deveria ser destinada ao Pronera, como dispõe o art. 33-A “O Poder Executivo fica autorizado a conceder bolsas aos professores das redes públicas de educação e a estudantes beneficiários do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA”.

Foi somente em 2010, que o Pronera ganhou regulamentação própria a partir do decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispunha entre outras coisas, a integração do programa na política de Educação do Campo.

Art. 11.  O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, executado no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, nos termos doart. 33 da Lei no 11.947, de 16 de junho de 2009, integra a política de educação do campo.

Cabe ressaltar, que este decreto sobreveio de todo o acúmulo das diretrizes educacionais do campo e das experiências dos movimentos sociais campesinos que vinham sendo construídas durante esse período (1998 -2010).

Para concluir o rol de legislações, o Pronera, conseguiu a manutenção legal da sua execução orçamentária com a lei nº 12.695, de 25 de julho de 2012, que dispõe sobre a assistência financeira da União no âmbito do Programa de Apoio aos Sistemas de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos.

            Portanto, o entendimento do PRONERA como um programa essencial para os jovens e adultos do campo, se tornou pacífico tanto no âmbito interno das comunidades camponesas, como também no âmbito do poder executivo. O objetivo principal do programa nesse intuito é fortalecer as áreas de Reforma Agrária enquanto espaços de vida em todas as suas dimensões: econômicas, sociais, educacionais, políticas e culturais.

Desde que o programa foi instituído, milhares de jovens e adultos, trabalhadores das áreas de reforma agrária têm garantido o direito de alfabetizar-se e de continuar os estudos em diferentes níveis e modalidades de ensino (DINIZ, 2015).

O Programa promove a justiça social no campo por meio da democratização do acesso à educação, na alfabetização e escolarização de jovens e adultos, na formação de educadores para as escolas do campo e na formação técnico profissional de nível médio, superior, residência agrária e pós-graduação lato sensu e stricto sensu. Pelo PRONERA, afirma-se o compromisso com a educação como instrumento público para viabilizar a implementação de novos padrões de relações sociais no trabalho, na organização do território e nas relações com a natureza nas áreas de reforma agrária e demais territorialidades do campo, floresta e águas (MANUAL DE OPERAÇÕES, 2016).

O PRONERA já conta com 320 cursos realizados em 880 municípios, em todas as unidades da federação, por meio de 82 instituições de ensino em todo o País, sendo 167 de Educação de Jovens e Adultos Fundamental, 99 de nível Médio e 54 de nível Superior.

Até 2016, o Pronera havia formado 180 mil alunos de áreas da Reforma Agrária, sendo cerca de 170 mil formados pela Educação de Jovens e Adultos (EJA), nove mil formados no nível médio, além de mais de cinco mil alunos que concluíram o ensino superior e 1.765 especialistas formados pelo programa, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) (FERNANDES, 2017).

Enquanto política pública, o programa possibilita a participação da sociedade civil organizada na articulação da demanda e na discussão do projeto pedagógico do curso. Atualmente a gestão nacional é exercida pela Coordenação Geral de Educação do Campo e Cidadania (DDE) e Divisão de Educação do Campo (DDE-1), com assessoria e consultoria da Comissão Pedagógica Nacional (CPN) do Pronera (MANUAL DE OPERAÇÕES, 2016).

 

  1. ANÁLISE DO ORÇAMENTO DESTINADO AO PRONERA

O PRONERA, de acordo com o art. 14 do Decreto nº 7.352/2010, está incluso dentro do Programa Nacional de Educação do Campo, que integra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Por sua vez, o INCRA está atualmente atrelado a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República, como disposto no Decreto Federal, nº 8.865 de setembro de 2016. Antes do decreto presidencial o INCRA era ligado diretamente ao MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário. Essas informações são essenciais para o entendimento da dotação orçamentário do Pronera.

 Dessa forma, para instituir um curso do programa, o Incra celebrará convênios, termos de execução descentralizada ou outros instrumentos congêneres com instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos e demais órgãos e entidades públicas para a execução dos projetos no âmbito do PRONERA.

As parcerias com Organizações da Sociedade Civil sem fins lucrativos, serão firmadas pelos instrumentos vigentes à época da Celebração. Os instrumentos de parceria com as instituições terão como base um padrão custo aluno/ano, a ser definido pelo Incra por Norma de Execução, cujo valor será regionalizado e deverá atender despesas com: hospedagem, alimentação, transporte, deslocamento, diárias, material didático e bolsas para o pagamento de coordenadores, supervisores, monitores, professores e estudantes, desde que atendidos os critérios estabelecidos na legislação sobre bolsa. O projeto deverá conter orçamento com o detalhamento dos custos, levantados com base em elementos de convicção. Os custos deverão ser detalhados por elementos de despesa, que tem a finalidade de identificar os objetos dos gastos, tais como diárias, material de consumo, serviços de terceiros prestados sob qualquer forma, equipamentos, material permanente e outros que a administração pública utiliza para a consecução de seus fins. Os códigos dos elementos de despesa estão definidos no Manual Técnico Orçamentário (MTO) (MANUAL DE OPERAÇÕES, 2016).

A atual dotação orçamentária do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária apresenta um quadro preocupante em relação a manutenção dos cursos em andamento, bem como a criação de novos cursos.

Este trabalho realiza uma análise de 6 anos da destinação de recursos para o programa, de 2013 a 2018, a partir dos dados obtidos pela LOA, disponível no site na câmara dos deputados. Como será melhor explicitado no gráfico abaixo, o recurso entre 2013 e 2015 se apresentam relativamente equilibrado. A dotação orçamentária de 2013 foi cerca de R$ 30.600.000, de 2014 R$ 30.500.000, de 2015 R$ 32.550.000, porém há uma redução drástica nos anos seguintes, em 2016 o corte chega a 5 milhões, com o orçamento de R$ 27.027.196,00, depois o corte chega a 12 milhões (cerca de 45%), mais da metade do orçamento do ano de 2016, com o valor em 2017 de R$ 14.800.000 e, por fim no projeto de Lei Orçamentário Anual (PLOA) de 2018, o recurso do PRONERA, chega a R$ 2.053.683, um corte de 10 milhões (cerca 86,2%) em relação ao ano anterior. Como apresenta a tabela abaixo.

Gráfico 1 – Orçamento do PRONERA 2013 a 2018. Fonte: o autor, 2017.

GRÁFICO 2 – ORÇAMENTO DO PRONERA 2013 A 2018

Gráfico 2 – Orçamento do PRONERA 2013 a 2018. Fonte: o autor, 2017.

Os recursos da LOA 2017 e do PLOA 2018 são alarmantes, a previsão é que não tenha recurso que se quer custeie os compromissos com os cursos atuais. Esse corte pode prejudicar os 5.583 estudantes que estão atualmente em cursos do Pronera e também mais de 14.500 estudantes que aguardam outros cursos que seriam implementados – de Educação de Jovens e Adultos (EJA) até Pós-Graduação.

De acordo com a tabela 1, apresentada anteriormente elaboramos uma média geral do custo por educando do Pronera, na tabela 2 exemplificada abaixo:

TABELA 2 – MÉDIA CUSTO ESTUDANTE/PRONERA POR REGIÃO E MODALIDADE

Tabela 2 – Média custo estudante/PRONERA por região e modalidade. Fonte: o autor, 2017.

A partir dos dados obtidos pelo PLOA 2018, a destinação de R$ 2.053.683 para o Pronera ano que vem é irrisório diante da demanda posta, de 5.583 estudantes que estão cursando dentro do programa atualmente. Numa conta fácil, a média por estudante R$                  3.561,00 vezes5.583 (estudando atualmente) resulta o valor de R$ 19.881.063,00, ou seja, o horizonte é um desmonte crucial da política pública do PRONERA.

Esse cenário apresenta um total descumprimento com a política pública assumida pelo Estado brasileiro e até mesmo um confronto direto com a Constituição Federal, que prevê nos arts. 205 e 208 o acesso e a garantia da educação. Bem como, o descumprimento das legislações próprias que asseguram o desenvolvimento do Programa Nacional de Educação do Campo.

            Esse cenário, apresenta também a continua luta dos sujeitos do campo para garantir o acesso à educação aos trabalhadores e trabalhadoras, filhos e filhas dos acampados e assentados da Reforma Agrária por todo o país.Segundo uma entrevista fornecida ao site do MST – Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, Erivan Hilário do setor de Educação do MST afirma:

O Pronera é o que temos de mais avançado em termos de políticas públicas para a educação do campo. Através do tripé Estado, Universidade e Movimentos Sociais, conseguiu-se nesses últimos anos elevar a escolaridade da população do campo, que esteve por muito tempo marginalizada das políticas educacionais do Estado.

Contudo, como se observa a partir dos dados, depois de 2016 com o aprofundamento da crise política no país, o programa se configura em um processo de desestruturação, provocado pelo drástico corte no orçamento feito pelo governo federal. Como aponta Erivan,

A partir do orçamento podemos fazer a leitura de qual é o lugar que a educação tem nesse governo. No último período temos visto vários cortes em áreas essenciais. Isso demonstra que dentro do projeto de desenvolvimento desse governo para o nosso país, o campo não é lugar de vida e de cultura. Por isso, a educação do campo é tão pouco importante para eles.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Pronera foi uma conquista e resultado da pressão dos movimentos sociais e sindicais, que já conta com 17 anos sob responsabilidade do INCRA. Essa política pública é capaz de educar e formar sujeitos de direitos capazes de construir suas identidades de povo camponês e produzir, no cotidiano dos assentamentos e acampamentos da reforma agrária e em toda a sociedade alternativas de transformação.

Para que essa política se efetive é essencial compreender a importância do orçamento público, que em sem aspecto geral, desde seu nascimento até a sua consolidação tende a ser fundamental para a manutenção dos bens e serviços da que sustentação do nosso estado.  Neste sentido deve-se dar a devida importância ao seu papel econômico, financeiro e social, na perspectiva de maior participação e controle social.

Contudo, a partir desse estudo, observamos que a construção e consolidação do orçamento público para políticas públicas, como o PRONERA, está caracterizada por uma redução desastrosa como aponta a PLOA 2018. Com isso o governo atual, a partir do corte de 82% no orçamento define, entrelinhas que o programa não exercerá mais suas atividades, ou exercerá de maneira totalmente sucateada, dessa forma, sem bolsas para os estudantes, sem recursos para o retorno as atividades nas comunidades, sem material escolar, o que poderá inclusive resultar em evasão escolar. Portanto, milhares de beneficiários da reforma agrária não terá mais acesso à educação, um dos pilares constitucionais do nosso país, além disso nossa nação continuará com índices expressivos de analfabetismo e o desenvolvimento de ciência e tecnologia restará para outros países e o Brasil continuará dependente do conhecimento estrangeiro. Uma nação sem o desenvolvimento da educação e tecnologia está fadada ao fracasso, como diria Paulo Freire “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Ao estudarmos o orçamento público, compreendemos também os impactos sofridos pela população, quando a má gestão dos recursos, chega a impressionar os cortes em políticas públicas que atendem as classes menos favorecidas, a exemplo do programa de reforma agrária. Concluímos que conhecer os elementos constituintes, e políticos do orçamento públicos, nos ajuda a desempenhar nosso papel de agentes sociais que devem participar no processo de construção orçamento público e das políticas públicas.

A participação social é considerada importante elemento de gestão e componente fundamental para a elaboração das políticas públicas. As propostas do programa de governo são [ou devem ser] construídas a partir das demandas e necessidades da sociedade. Essas, na medida do possível, são incorporadas às políticas públicas (LAMBERTUCCI, 2009, p. 74).

REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

APRENDA TRIBUTÁRIO. Orçamento Público. Publicado em 19 de ago. de 2008. Disponível em: http://www.aprendatributario.com.br/?p=15. Acesso em 21/09/2017.

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 15ª ed. rev. e atual. Por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro. Forense, 2002.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Instituir Grupo Permanente de Trabalho com atribuição de articular as ações deste ministério pertinentes a Educação do Campo. Portaria n.º 1.374 de 3 junhode 2003. Disponível em:  http://www.cmconsultoria.com.br/legislacao/portarias/2003/por_2003_1374_MEC.pdf. Acesso em 22/09/2017.

BRASIL. Lei nº 12.695, de 25 de julho de 2012.Dispõe sobre o apoio técnico ou financeiro da União no âmbito do Plano de Ações Articuladas […]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12695.htm#art14. Acesso em 23/09/2017.

BRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009.Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica […]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Lei/L11947.htm#art33. Acesso em 22/09/2017.

BRASIL. Decreto nº 8.865, de 29 de setembro de 2016.Transfere a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário para a Casa Civil da Presidência da República e dispõe sobre a vinculação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8865.htm. Acesso em 22/09/2017.

BRASIL. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010.Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7352.htm. Acesso em: 23/09/2017.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em 23/09/2017.

CAMARGO. Guilherme Pessoa Franco de. A política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA – Decreto n.º 7.352/2010. Revista online Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8788. Acesso 21/09/2017.

CAMÂRA. Orçamento da União. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/orcamento-da uniao/leis-orcamentarias/loa/loa-2017. Acesso em 21/09/2017.

COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 102.

DINIZ. Daise Ferreira. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) no contexto do estado democrático de direito: movimentos sociais e gestão participativa. Fonte: 37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis. Disponível em: http://37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT03-4026.pdf. Acesso em 22/09/2017.

FERNANDES, Leonardo. Governo Temer promove o desmonte da educação do campo. Disponível em: http://www.mst.org.br/2017/09/19/governo-temer-promove-o-desmonte-da-educacao-no-campo.html. Acesso em 22/09/2017.

INCRA. Manual de operações do PRONERA. Disponível em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/projetos-e programas/pronera/manual_pronera_-_18.01.16.pdf. Acesso em 22/09/2017.

KOLLING, Edgar Jorge; NERY, Irmão; MOLINA, Mônica Castagna (Org.). Por uma educação básica do campo. Brasília: FUB, 1999.

LAMBERTUCCI, Antonio Roberto. A participação social no governo Lula. In: AVRITZER, Leonardo (org.). Experiências nacionais de participação social. São Paulo: Cortez, 2009. (Coleção Democracia Participativa)

LOA 2013. Lei Orçamentária Anual. Disponível em: http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2013/red_final/vol4/49_desenv_agrario.pdf. Acesso em 21/09/2017.

LOA 2014. Lei Orçamentária Anual.http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2014/red_final/vol4/49_desenv_agrario.pdf.Acesso em 21/09/2017.

LOA 2015. Lei Orçamentária Anual.http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2015/red_final/vol4/49_desenv_agrario.pdf. Acesso em 21/09/2017.

LOA 2016. Lei Orçamentária Anual. http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2016/red_final/vol4/49_desenv_agrario.pdf. Acesso em 21/09/2017.

LOA 2017. Lei Orçamentária Anual.http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2017/red_final/Volume_IV.pdf. Acesso em 21/09/2017.

PLOA 2018. Projeto de Lei Orçamentária Anual. http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2018/proposta/4_VolumeIV-TomoI.pdf. Acesso em 21/09/2017.

SILVA. Cícero; LIMA. Manoel Messias Antônio de. Educação do Campo: o descompasso entre a legislação e a realidade educacional para as comunidades camponesas. Revista Lugares de Educação [RLE], Bananeiras-PB, v. 5, n. 11, p. 241-254, ago.-Dez, 2015 ISSN 2237-1451. Disponível em http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/rle. Acesso em 21/09/2017.



 A Representatividade da Mulher nos Espaços de Poder no Sistema De Justiça Paranaense

Women’s Representativeness in Power Spaces in The Justice System from Parana

Bruna Maria Wisinki Tomasoni[165]

Gabriela Silva Ferreira[166]

Janaina de Oliveira Plasido[167]

Resumo: O presente trabalho almeja analisar a presença de mulheres nos órgãos atuantes no sistema de justiça paranaense, considerando o “universo jurídico” espaço moldado a partir de uma lógica masculina. O aporte teórico é capitaneado pelas obras “Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social”, “Diplomata: substantivo comum de dois gêneros”, “A dominação masculina” e “Diagnóstico e Perspectivas da Desigualdade de Gênero Nos Espaços de Poder do Ministério Público: ‘santo de casa não faz milagre’?”, das quais são extraídas as chaves de leitura “divisão sexual do trabalho” e “dominação masculina” que orientam o olhar sobre os dados. Tais dados são coletados a partir do Portal da Transparência e de contato com os departamentos de recursos humanos da Defensoria Pública, Ministério Público e Tribunal de Justiça estaduais. As conclusões a que chegamos são: i) é baixa presença de mulheres nos espaços diretivos de cada órgão, apesar de sua presença em quantidade semelhante ou maior aos homens entre os membros e servidores/as dos órgãos analisados e ii) há maior incidência de mulheres em cargos de assessoria jurídica e técnica do que em cargos de alto escalão.

Palavras-chave: Divisão sexual do trabalho. Mulher no sistema de justiça. Dominação masculina.

Abstract: This essay aims to analyze the presence of women in public agencies performing in the justice system from Paraná, considering the “legal universe” as an space built from a male logic. The theoretical basis is directed by the works “Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social”, “Diplomata: substantivo comum de dois gêneros”, “A dominação masculina” and “Diagnóstico e Perspectivas da Desigualdade de Gênero Nos Espaços de Poder do Ministério Público: ‘santo de casa não faz milagre’?”, from which we extract guidesof analysis, “sexual division of labour” and “male dominance”. The data is collected from Portal da Transparência and contact with Public Defense Office, Public Ministry and Court of Justice’s personnel department. The conclusions are: i) the presence of women is low in the directive functions, despite their presence in similar or superior numbers among civil servants and ii) women are more present in legal and technical assistance posts than in high echelon ones.

Keywords: Sexual division of labour. Women in the justice system. Male dominance.

  1. INTRODUÇÃO

           

            Nós, como bacharelas de direito, vivenciamos a faculdade de direito como estudantes, e presenciamos a rotina das instituições do sistema de justiça como estagiárias. No decorrer das aulas, percebemos a falta de juristas mulheres nas bibliografias das disciplinas e o diminuto número de mulheres em cargos de direção na faculdade. Nos estágios, descobrimos que a quantidade de mulheres em postos de comando em instituições como Ministério Público e Defensoria Pública é ínfimo.

            O fato de não nos depararmos com maior presença feminina nesses ambientes e dentre os referenciais teóricos jurídicos nos incomodou, como deve ter incomodado muitas mulheres que transitam nos espaços do direito.

A princípio não compreendemos a amplitude das ações que  poderíamos realizar no tocante a essa questão. Em 2017, porém, conhecemos a iniciativa conjunta do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do Ministério Público do Estado do Paraná e outras instituições do sistema de Justiça paranaense, que, por meio da celebração de termo de parceria, publicado no Diário Oficial do Paraná, deram início ao “Grupo de Estudos Interinstitucional de Gênero no Ministério Público e Poder Judiciário”. Nesse grupo, representantes do Ministério Público do Paraná, da Justiça Federal paranaense, do Ministério Público do Trabalho no Paraná, do Ministério Público Federal no Paraná, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, do Tribunal de Regional do Trabalho da 9ª Região, da Associação dos Magistrados do Trabalho da 9ª Região, da Associação dos Magistrados do Paraná, da Associação dos Juízes Federais do Paraná, da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e da Associação Paranaense do Ministério Público reúnem-se a fim de conjugar esforços destinados a detalhar e melhorar os índices de igualdade de gênero dentro de seus respectivos espaços de trabalho.  A partir desse grupo, de maneira incipiente, advieram alguns dados sobre a baixa representatividade das mulheres nos cargos de comando, especialmente quanto ao Ministério Público Estadual.

O primeiro contato com esses  dados, em confronto com as diversas experiências nos cenários jurídicos,  nos instigou a procurar entender melhor esse cenário e os motivos que o justificam. Por óbvio, esse trabalho não tem como objetivo esgotar o tema nem discorrer sobre toda a estruturação social que envolve a baixa representatividade das mulheres nos postos de comando, mas sim apresentar um quadro inicial sobre como essa problemática envolve as instituições do sistema de justiça paranaense.

  1. A ATUAL SITUAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL

 Os direitos das mulheres no Brasil foram conquistados recentemente e de maneira paulatina. Até 1962, devido ao disposto no Código Civil de 1916, as mulheres dependiam da autorização de seus pais, ou maridos se fossem casadas, para entrar no mercado de trabalho formal[168]. A igualdade entre homens e mulheres foi atingida apenas na Constituição de 1988. Assim como o reconhecimento da dupla jornada feminina, que resultou no menor tempo de contribuição para a aposentadoria às mulheres. Além disso, antes de 1988, os direitos previdenciários das trabalhadoras rurais foram negados, já que apenas um dos sujeitos do casal poderia ser considerado trabalhador rural (SAFFIOTI, 1987), questão parecida ocorre até hoje com as pescadoras artesanais, que dependem da relação de filha ou esposa de pescadores artesanais para serem reconhecidas pela previdência social (GERBER, 2015, p. 226).

Em 1997, com a Lei 9.504, que criou cotas para mulheres nas candidaturas de partidos políticos, admitiu-se, ainda que timidamente, o problema da baixa representatividade feminina na política. O termo “pátrio poder” que denota que o homem é o chefe da família apenas parou de ser utilizado em 2002, com a promulgação do novo Código Civil, que estabeleceu o termo “poder familiar”. No âmbito das políticas públicas voltadas a promover a igualdade de gênero, a Secretaria de Políticas para as Mulheres foi criada só no ano de 2003. O tratamento especial à violência doméstica e familiar contra a mulher, por sua vez, foi estabelecido apenas em 2006, com a Lei 11.340.

Em termos de representatividade, continuamos em baixa. Apesar das mulheres terem conquistado o direito ao voto e à candidatura em 1932, tivemos apenas uma mulher como presidente da República, sendo que a representação no Congresso Nacional também é irrisória. No Senado Federal, 16% das representantes são mulheres, já na Câmara dos Deputados, o número é ainda menor girando em torno de 9,94%, mesmo que a quantidade de cadeiras aqui mais que quintuplique (MONTEIRO, 2016).        Destaca-se também, nunca uma mulher foi presidente das Casas. No Paraná, considerando cargos do Legislativo e do Executivo, as mulheres correspondem 11,73% das eleitas entre governadoras, prefeitas, vereadoras, deputadas estaduais e federais, senadoras, ocupando o 23º lugar entre os estados da federação (SENADO FEDERAL, 2016).

No âmbito do direito, a situação não é muito diferente. O Superior Tribunal de Justiça teve sua primeira Ministra apenas no ano 1999, enquanto que no Supremo Tribunal Federal, a primeira mulher tomou posse em 2000 (SCHUMAHER; CEVA, 2015). O cargo de Procuradora-Geral da República, porém, foi ocupado por uma mulher pela primeira vez só em 2017.

Apesar da presença feminina no curso direito ter aumentado, inclusive ultrapassando a masculina (ALMEIDA; ZANLORRENSSI, 2017), como denota o número de inscritas na OAB (2018), instituição em que as mulheres são cerca de 48,4% das inscritas, a representatividade feminina nos postos de comando do sistema de justiça ainda é pequena, como detalharemos posteriormente.

Atualmente, o ingresso à Magistratura, ao Ministério Público e à Defensoria Pública se dá por meio de concurso público. A figura do concurso público foi criada lá no ano de 1934 e em 1967 esse critério ampliado a todas as carreiras de serviço público (ROSA, 2002). É possível dizer que essa forma de ingresso favorece a entrada igualitária entre homens e mulheres, devido ao caráter objetivo e sigiloso do processo. Por outro lado, a construção da carreira dentro dessas instituições leva em conta outros fatores além de antiguidade e merecimento. Nessa medida, percebe-se que esse aspecto político nas carreiras do sistema de justiça parece configurar um obstáculo às mulheres. Para validar essa afirmação, faz-se necessário trazer alguns argumentos que justifiquem a existência de um obstáculo.

2.1 A NATURALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE

A desigualdade entre homens e mulheres não pode ser facilmente compreendida, pois se baseia numa estrutura complexa e sutil ao mesmo tempo. Pierre Bourdieu (1998) explica que, essa estrutura se fundamenta em vários fatores, que ele denomina como “dominação masculina”.

Através da ideia de características inatas, ocultam-se os processos culturais que envolvem a socialização de homens e mulheres, dando a entender que cada gênero é limitado a determinados atributos que lhe seriam naturais. Essa naturalização das desigualdades seria construída a partir dos corpos, e por isso teria um fundamento biológico, o que presta cientificidade ao argumento da desigualdade.

A mulher por ter no corpo, em tese, atributos para gerar uma criança, consequentemente teria em sua natureza o dom de cuidar. A partir disso, construir-se-ia um arcabouço de características genericamente femininas. A sensibilidade, a compreensão, a maternidade, a docilidade, e nesse contexto seriam atribuídos papéis e lugares aos quais a mulher deveria se limitar.

Essas mesmas características de seu corpo seriam utilizadas para julgar seu profissionalismo, sua capacidade de se dedicar ao trabalho, já que a maternidade poderia afetar seu discernimento. No mesmo sentido, sua beleza e sua orientação sexual são tomadas como diretamente proporcionais a sua competência, a partir da conexão desses aspectos com estereótipos femininos e masculinos, respectivamente (MORIN, 1995 apud BALBINO, 2011, p. 48).

Além da naturalização de determinadas qualidades baseadas no gênero, a socialização de homens e mulheres cumpre o papel de perpetuar essas diferenças. Já de início, enquanto que às mulheres é reservado o espaço doméstico, sendo incentivado que a partir disso desenvolva determinadas características como doação, resignação, sensibilidade, compreensão, intuição e cooperação, voltadas ao bem estar do lar. Os homens, por sua vez, são educados de forma expansiva, voltados a vida pública, voltado ao estímulo da produtividade, individualidade, autonomia, para a conquista, sendo incentivados a serem agressivos e objetivos para conseguirem o que querem (MURARO; BOFF, 2002). Dessa forma, a identidade da mulher e também do homem é construída socialmente (SAFFIOTI, 1987, p. 10).

Por meio dessas estratégias, são forjados os papéis sociais, considera-se o papel do homem superior ao da mulher e, sendo assim, tem ele o privilégio de ocupar os espaços de poder. Nesse contexto, por meio do domínio do poder se reproduzem as relações em que esse se fundamenta (BOURDIEU, 1998), a mulher como sujeito dominado, na crença de que são as desigualdades naturais, coaduna com elas e as perpetua na próxima geração. Da mesma forma, instituições tidas como basilares na sociedade, como família, igreja e estado.

Esse fenômeno é denominado por Bourdieu (1998) como violência simbólica. As mulheres, por se acreditarem inferiores, ou na necessidade do cumprimento de seus papéis sociais, sem perceber que na verdade aqueles valores lhes são impostos, acabam sujeitando suas escolhas a eles.

Nesse sentido, é comum que as mulheres, influenciadas pela ideologia dominante, optem por trabalhos com horários mais flexíveis (SAFFIOTI, 1987), compatíveis com o trabalho doméstico, como também cujas funções exercitem a assistência, o cuidado e a formação, acreditando estarem realizando sua vocação (BRUSCHINI, 1981).

2.2 MULHERES NOS ESPAÇOS DE PODER

 O escopo deste trabalho é refletir acerca da (não) ocupação da mulher em postos de comando em carreiras jurídicas. Se acontece, em que medida e por quê. As duas primeiras questões serão trabalhadas posteriormente, por enquanto nos focaremos no porquê.

De acordo com pesquisa realizada por Morin (1995 apud BALBINO, 2011), nos Estados Unidos, que estudou a carreira das mulheres na diplomacia naquele país, os critérios utilizados para avaliar a qualidade do serviço desempenhado podem variar no que tange ao gênero doa profissional. Se por um lado homens seriam qualificados pelos resultados obtidos, as mulheres o seriam por sua personalidade.

Da mesma forma que as carreiras do sistema de justiça aqui abordadas, o crescimento dentro da carreira de diplomata se dá além de critérios de tempo e competência, mas também por ligações políticas construídas dentro da instituição, já que as nomeações, designações e eleições para cargos de chefia dependem daqueles que já estão nos altos postos de comando.

Nesse sentido, Bulard (2003 apud BALBINO, 2011, p. 43) aponta que muitas mulheres acabam direcionando sua carreira de forma a não se colocar em espaços que não lhe ponham no centro das atenções. Isso se deve a uma insegurança, oriunda de sua socialização dominada, de que seus colegas homens percebam sua presença ali e descubram que são uma “fraude”, que na verdade são mulheres. Diante disso, algumas optam por assumir posturas tidas como “andróginas”, assumindo características masculinas e negando suas debilidades femininas, a fim de tentar evitar ser julgada por seu gênero.

Apoiadas nessa insegurança, as mulheres que conseguem chegar a espaços de poder nem sempre compreendem a estrutura em que estão inseridas e sua posição não equivale ao aumento do número de mulheres nos espaços de poder (BULARD, 2003 apud BALBINO, 2011, p. 43). Percebe-se que o próprio mecanismo de dominação produz instrumentos para sua própria reprodução.

Tal insegurança não é injustificada, as mulheres sofrem tendo que lidar com escolhas que lhes parecem paradoxais. Quando priorizam a família em detrimento do trabalho são julgadas como tradicionais demais, mas quando colocam o trabalho como prioridade também sofrem represálias. Interessante lembrar que os homens não são expostos a tal julgamento (FISKE; GLICK, 1995 apud BALBINO, 2011, p. 48).

A principal questão aqui é que devido ao preconceito já formado na mentalidade social, independente das escolhas que a mulher fizer, ela será julgada por isso. É compreendida como um corpo que a qualquer momento pode engravidar, que tem o discernimento reduzido pela ação dos hormônios, que age pela emoção, e por tudo isso não é confiável. Assim, homens se utilizam desses argumentos para colocar outros homens no poder, e assim manter seus privilégios. Claro, vez ou outra, eles podem escolher uma mulher, considerada excepcional, para os postos de comando, já que toda regra é confirmada por uma exceção.

2.2.1 Feminização dos espaços de poder

 É importante destacar que o que se defende aqui não é uma masculinização das mulheres numa defesa de que podemos desenvolver as características valorizadas e tidas como masculinas. Também é isso verdade quando se compreende a construção daquelas características naturais e socialização que nos é imposta, entendemos que o nosso desenvolvimento não é limitado por nosso gênero.

Podemos sim ser austeras, individualistas, autoritárias e competitivas para adaptarmos a um ambiente de trabalho, mas a masculinização das mulheres não é algo a ser perseguido. Não apenas pelo fato de que muitas de nós já desenvolvemos características tidas como femininas, as quais também devem ser valorizadas, ou mesmo pelo fato de que continuaremos a ser vistas como mulheres, e nossa postura sempre será alvo de desconfiança. É preciso repensar o ambiente de trabalho que se constrói na maioria das carreiras, inclusive nas que aqui serão estudadas. Esse espaço, organizado por valores tradicionalmente masculinos, baseados em ambição e hierarquia, não é saudável nem ideal.

Assim, ao invés de negar categorias tidas como femininas, é importante analisar a contribuição que essas novas práticas podem trazer a forma como vemos as relações de trabalho atualmente. Características como criatividade, cooperação, comunicação não violenta podem transformar a perspectiva dessas relações.

Sobre isso, Fontenelle-Mourão (2006) comenta sobre a possibilidade de se pensar a conjunção de características atribuídas tradicionalmente a mulheres e homens para alcançar

um ambiente de trabalho mais eficaz.  Flexibilidade, cuidado com o outro, cooperação são práticas que devem ser incentivadas. A autora acredita inclusive que uma forma feminina de gerenciar estaria sendo aos poucos construída, a qual buscaria conciliar “eficiência, competência e as responsabilidades no cuidado com o outro”.

  1. MULHERES E O DIREITO: DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E PRESENÇA FEMININA EM CARREIRAS JURÍDICAS

3.1 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

A análise da presença feminina no universo de carreiras jurídicas tem como pano de fundo necessário o estudo da participação da mulher no mercado de trabalho, haja vista ser atividade jurídica uma atividade laboral[169]. Desta forma, requer-se , antes de tudo, a compreensão da divisão sexual do trabalho, tendo em vista que ela é, como aponta Mirla Cisne, “uma das formas centrais para a exploração do capital sobre o trabalho” (2012, p. 109).

A referida categoria pode ser “compreendida como a atribuição de atividades sociais diferentes e desiguais segundo o sexo, como fruto de uma construção sócio-histórica” (CISNE, 2012, p. 113-114). Assim, a chave de leitura “divisão sexual do trabalho” nos possibilita perceber que, sendo uma elaboração social e historicamente localizada, o direcionamento de mulheres a determinadas carreiras e postos de trabalho não se dá pela presença de habilidades inatas e sim pela recomposição de todo o processo de socialização que vivenciamos.

            Nesse sentido, há uma particularidade na exploração do trabalho da mulher, a qual é acentuada em relação à exploração do trabalho do homem (CISNE, 2012, p. 111). Por essa razão, coloca Cisne que se faz imperativa a desomogeneização da classe trabalhadora a fim de se enxergar a superexploração do trabalho e das atividades desenvolvidas por mulheres, tanto na esfera privada – “pela utilização/responsabilização da mulher pela garantia da reprodução social, o que possibilita a produção social ser realizada com um custo menor” (2012, p. 112), quanto na esfera pública – “pela desvalorização, subordinação, exploração intensificada (por exemplo, baixos salários) e desprestígios presentes no mundo produtivo (2012, p. 112).

Tal ponto relaciona-se diretamente com a dupla exploração sobre a mulher, a qual “implica em determinações relevantes para a produção e para a reprodução do capital” (CISNE, 2012, p. 112). Quanto a esse assunto, Ricardo Antunes observa que:

A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de trabalho duplamente, dentro e fora de casa […]. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer no espaço público seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si própria. Sem essa esfera da reprodução não diretamente mercantil, as condições de reprodução do sistema do metabolismo social do capital estariam bastante comprometidas, se não inviabilizadas (1999, p. 108-109).

Destarte, a inferiorização da mulher e as habilidades tomadas como naturalmente femininas são apropriadas pelo capital para se fazer considerar as atividades e trabalhos desenvolvidos por mulheres como dons e não trabalho. A não valorização do trabalho, somada à responsabilização da mulher para com o cuidado do lar e à cultura sexista de passivização das mulheres, “faz com que muitas mulheres não se percebam como trabalhadoras, não construindo, portanto, a identidade com sua classe” (CISNE, 2012, p. 114), não participando politicamente, assim, das lutas da classe trabalhadora.

Com tal naturalização dos papéis ditos femininos, os interesses do capital são satisfeitos, haja vista a possibilidade de ampliação de seus lucros por conta da diminuição significativa do custo da reprodução da força de trabalho, atribuída às mulheres (CISNE, 2012, p. 115). Percebe-se, dessa forma, que “o modo de produção capitalista, além de produzir desigualdades, apropria-se das anteriormente existentes ao seu sistema, como as decorrentes do patriarcado e do racismo” (p. CISNE, 2012, 116), refuncionalizando, entre outras, as subordinações das mulheres e da população negra “para atingir maiores lucros com a superexploração das suas forças de trabalho, geralmente, precarizadas e mal remuneradas” (CISNE, 2012, p. 116).

No que toca à inserção da mulher no mercado de trabalho, relevante é o apontamento do movimento social do feminismo negro lembrando que as mulheres negras estiveram inseridas em espaços de atividade laborativa precarizada muito antes das reivindicações de mulheres brancas e de classe média por maior participação em tal espaço. Em que pese essa realidade, como indica estudo técnico realizado em 2016 como consultoria para a Câmara dos Deputados, a participação feminina na População Economicamente Ativa passou de 13,6% em 1950 para 49,9% em 2010 (2016, p. 9).

A partir desse último comentário, lembra Cisne que a crise do capital iniciada na década de 1970 provocou a elaboração de estratégias no modo de produção e reprodução sociais de forma a garantir seus interesses. Destas, “se destacam a globalização e a reestruturação produtiva somada ao neoliberalismo, um novo modelo de Estado” (CISNE, 2012, p. 119). Isso posto, importante frisar que é como parte desse processo de transformação do capitalismo que se pode encarar a expansão da feminização do mercado de trabalho de forma crítica.

Nesse sentido, coloca István Mészáros que a maior participação das mulheres no espaço produtivo “surge do indispensável impulso do capital para a expansão e não da mais leve inclinação a uma esclarecida[170] preocupação emancipadora em relação às mulheres […]” (2002, p. 304-305). Na mesma direção se coloca Cisne, lembrando que não à toa “as mulheres, ao contrário da emancipação, se encontram submetidas às condições mais precárias do mercado de trabalho, além de sobrecarregadas com as atividades domésticas (dupla jornada de trabalho) […]” (2012, p. 121).

            Ainda no tocante ao caráter não emancipatório da mulher por sua massiva entrada no mercado de trabalho, coloca Cisne que esse processo acompanha a política neoliberal implementada no país desde a década de 1990, a qual é marcada por privatizações e “desresponsabilização do Estado para com as políticas sociais” (2012, p.125). Nesse cenário, ocorrem transformações no mundo do trabalho, especialmente o que se chama de flexibilização, que se externaliza na crescente informalidade e na precarização de direitos trabalhistas, exigindo das/os trabalhadoras/es polivalência.

            É possível compreender, em tal contexto, o incentivo à entrada da mulher no mercado de trabalho. Este vem de forma a atender às novas condições oriundas das mudanças no mundo do trabalho, tendo em vista a possibilidade de aproveitamento de características ensinadas às mulheres pelo capital. Sobre isso, lembra Cisne que

Além da docilidade e passividade historicamente aproveitadas e difundidas pelo capital, a educação destinada às mulheres  com o objetivo de dar conta de várias atividades ao mesmo tempo – por exemplo, cuidar dos filhos, da cozinha e da lavagem de roupas simultaneamente – desenvolve a capacidade da polivalência, facilitando o atendimento a essa nova exigência do mercado de trabalho (2012, p. 124).

Tendo explorado brevemente o conceito de divisão sexual do trabalho, passemos ao estudo da presença feminina no universo laboral jurídico.

3.2 MULHERES EM CARREIRAS JURÍDICAS

            O campo do direito é marcado por um discurso de neutralidade e igualdade, que seriam próprias de um profissionalismo na área. Essa construção impede a percepção da discriminação de gênero sofrida pelas mulheres profissionais do direito, estabelecendo-lhes “um “teto de vidro”, uma barreira invisível” (SCIAMMARELLA, 2017), as quais se tornam evidentes quando da análise numérica e qualitativa da participação feminina no universo jurídico.

            No que toca a tais discriminações de gênero no âmbito do direito, é menos perceptível a violência física, sendo as modalidades simbólica e psicológica as mais presentes. Em relação à primeira, tratamos do assunto no tópico acerca da naturalização da desigualdade.

Quanto à violência psicológica, coloca Gisele Mascarelli Salgado que

Essas práticas de violência psicológica são muitas vezes tratadas sem a devida importância social, mas causam graves danos as mulheres. Todas essas práticas são também silenciadoras da mulher (KIDD, s/d) no campo jurídico e são formas de um campo machista reafirmar seu poder (2016, p. 17).

                        As formas pelas quais essas violências se expressão são diversas; uma delas é a dificuldade de acesso por parte das mulheres a cargos de poder em suas carreiras. Sendo o processo de ascensão orientado, em especial em órgãos públicos, pela indicação, é possível dizer que há um entrave representado pela imposição às mulheres de “posturas profissionais mais rígidas e a necessidade constante – ainda – de afirmação de sua competência para ocupação do cargo” (SCIAMMARELLA, 2017).

            Nessa seara, a discrepância da representatividade de gênero no estado do Paraná pode ser visualmente aferida. Abaixo, temos fotografia do colégio de desembargadoras/es do estado, em que há 5 mulheres entre 14 homens, sendo todas as pessoas brancas:

Fonte: Justificando

            Ademais, Gisele Salgado lembra que a “mulher nas profissões jurídicas não é afetada apenas por uma dificuldade de acessar os altos cargos, mas por uma gama muito ampla de discriminações diárias” (2016, p.2). Uma modalidade marcante de tal processo de inferiorização cotidiano está na dificuldade de articulação entre papéis profissionais e familiares. Sobre esse tema, Ana Paula Sciammarella (2017), ao analisar o Censo do Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ – em 2014, indica que

Quase 70% das mulheres acreditam que a carreira afeta mais negativamente a vida pessoal delas que a dos colegas homens. Este dado quando analisado em conjunto com informações sobre estado civil e maternidade, e incrementado pela realização de entrevistas com as magistradas, sugere que quando estão em jogo a criação dos filhos, a carreira e a vida conjugal, ainda existem tensões.

[…]

O impacto da carreira na vida privada, evidenciado pela dificuldade de articulação entre os papéis profissionais e familiares, sugere a persistência de um modelo de família no qual cabe somente às mulheres as responsabilidades domésticas. Desta forma, a disponibilidade das mulheres para o investimento na carreira depende de uma complexa combinação de características pessoais, dentre elas o estado civil e a maternidade.

            As dificuldades da participação feminina no direito, entretanto, não iniciam quando da inserção no mercado de trabalho. A baixa representatividade docente – apenas 38% dos professores de direito no Brasil são mulheres (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2013, p. 48) – e o apagamento do trabalho doutrinário, legislativo e jurisprudencial feminino nos cursos de direito reproduzem e reforçam um modelo jurídico branco, masculino e elitista ditador da submissão das mulheres.

            Destarte, percebemos que o contexto jurídico segue uma lógica masculina- além de branca, elitista e eurocêntrica, recortes não trabalhados em razão da limitação teórica e metodológica do presente estudo. Tendo esse panorama em mente, podemos observar os dados coletados quanto à presença feminina no sistema de justiça paranaense.

 

  1. DIAGNÓSTICO DA SUB-REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NO SISTEMA DE JUSTIÇA PARANAENSE

A análise quantitativa da participação de mulheres em espaços de poder institucional e administrativo é um passo importante para a retratação da realidade indutiva, ainda que incipiente, acerca do (des)atendimento ao comando principiológico da igualdade de gênero, que deveria orientar a estruturação da sociedade brasileira, inclusive a esfera pública, em que se localiza o sistema de justiça.

Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que a formulação de políticas institucionais e administrativas perpassam pelo enfoque de ocupantes de cargos de representatividade e decisionais, especialmente de integrantes das cúpulas diretivas das instituições, de modo que a presença feminina em tais colocações, além de se colocar como termômetro das (des)proporções de gênero na composição de espaços intra-institucionais,  também demonstra em que medida existe o olhar diferenciado dessas profissionais quanto às respectivas e específicas necessidades (COSTA AZEVEDO et. al. 2017).

Nesse mesmo sentido, o delineamento dimensional no tocante à garantia de paridade interna de ocupações de cargos tem o condão de demonstrar a maneira como a divisão sexual do trabalho e a ordem masculina, assentada em visão androcêntrica aparentemente como neutra, projeta-se na sociedade, rechaçando-se a mulher dos lugares reservados ao masculino, ou seja, aqueles do lado exterior, do oficial, do público, do direito, do alto, do descontínuo,  (BOURDIEU, 1998, p. 41) e assinalando-lhes postos ‘inferiores’,  ‘baixos’, ‘curvos’,  e ‘contínuos’  (BOURDIEU, 1998, p. 34).

Assim, tendo-se em conta o propósito do presente estudo de analisar especificamente os cenários do Ministério Público do Estado do Paraná, da Defensoria Pública do Estado do Paraná e do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, enquanto instituições integrantes do sistema de justiça paranaense, realizamos levantamento de dados inerentes à representatividade segundo gênero nesses locais.

A pesquisa apoiou-se em informações constantes nos websites correspondentes às entidades, especialmente nos portais da transparência, em dados advindos dos departamentos responsáveis pela administração dos correspondentes quadros de recursos humanos, bem como no Censo do Poder Judiciário, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça. Diante das especificidades de cada estrutura organizacional e escalonamento de cargos, optamos, no presente estudo, pela abordagem do número de mulheres dentre os membros e servidores de cada instituição, bem como do detalhamento da representatividade feminina nas cúpulas diretivas, conforme organograma e detalhamento hierárquico formulados pelas próprias instituições, chegando-se ao diagnóstico da sub-representação de mulheres nos locais analisados, como se passa a expor.

Fonte: Autoras.

O Ministério Público do Estado do Paraná, de acordo com dados fornecidos conjuntamente pelo Departamento de Gestão de Pessoas, da Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Administrativos, e pela Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional, em março de 2017 era composto por 729 membros, sendo que, dessa totalidade, 367 era o número de promotores de justiça, 255 de promotoras de justiça, 83 de procuradores de justiça e 24 de procuradoras de justiça. Além disso, no tocante ao quadro de servidores (concursados), do total de 829 integrantes, 408 era o número de mulheres servidoras.  Isso significa que as mulheres ocupavam, em março de 2017, cerca de 38, 27 %,  dos cargos de membros ministeriais, cuja forma de provimento se dá por concurso público, bem como 49,22 % dos cargos de servidores efetivos (MPPR, 2017).

Partindo desse quantitativo referente à presença de mulheres como membros na instituição ministerial paranaense, buscamos verificar a representatividade atual feminina na cúpula diretiva da entidade em análise. Para tanto, analisamos o organograma organizacional, segundo o qual os cargos e as funções com maior poder decisório e administrativo estão concentrados no Colégio de Procuradores, no Conselho Superior, na Procuradoria-Geral, na Ouvidoria e na Corregedoria-Geral (MPPR, 2018).

 Fonte: Autoras

A Procuradoria-Geral de Justiça, cuja chefia é nomeada pelo Governador de Estado a partir de lista tríplice definida por meio de eleição pelos membros do Ministério Público, é dirigida por 1 membro homem. O Colégio de Procuradores, integrado pelo procurador-geral de Justiça e todos os demais procuradores de justiça ativos, é composto por 107 integrantes, dos quais 25 (23,36%) são mulheres. O Conselho Superior, integrado por dois membros natos – o Procurador-Geral de Justiça e o Corregedor-Geral do Ministério Público estadual, além de outros sete Procuradores de Justiça na função de titulares, eleitos anualmente pelos membros da instituição, e mais dois suplentes,  possui um total de 11 integrantes, dos quais 2 (18,18%) é o número de  mulheres. A Ouvidoria-Geral do Ministério Público – composta por Procurador(a) de Justiça em atividade, eleito(a) em votação uninominal pelo Colégio de Procuradores e nomeado(a) pelo Procurador-Geral de Justiça- é  dirigida atualmente por 1 membro homem. A Corregedoria-Geral de Justiça,   cuja chefia, o/a Corregedor/a de Justiça, é eleito/a pelo Colégio de Procuradores e assessorada por promotores de justiça indicados pelo Corregedor-Geral e designados pelo procurador-geral de Justiça, por fim, é integrada por cerca de 6 homens e 4 (40%) mulheres membros (MPPR, 2018).

No  tocante ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, esclarece-se inicialmente que, de acordo com a folha de pagamento referente à março de 2018, disponível no respectivo Portal da Transparência, a instituição é composta por 119 desembargadores, dentre os quais 19 (15,96%)  é o número de mulheres; e por 782 magistrados/as, dentre os/as quais  344 (43, 98%) são mulheres (TJPR, 2018); além do mais, segundo o Censo do Poder Judiciário, elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça,  até o ano de 2013 as mulheres representavam cerca de 56,2% do número de servidores da justiça estadual paranaense (CNJ, 2013).

Fonte: Autoras.

Embora não tenha sido disponibilizado organograma institucional no website da justiça estadual, com o destaque da administração superior, existe a descrição direta, no referido sítio eletrônico, da composição do que a própria instituição denomina de “cúpula diretiva”, a qual é integrada por 1 homem presidente; 1 homem na posição de 1° vice – presidente; 1 mulher na posição de 2ª vice-presidente, 1 corregedor-geral e 1 corregedor, resultando na predominância da presença masculina. Essa hierarquia estrutural, cuja composição se deu por eleição pelo Tribunal Pleno (TJPR, 2018), segue a definição de “dirigentes do tribunal de justiça”, realizada no título III, do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná, Lei Estadual nº 14277,  de 30 de dezembro de 2003 (PARANÁ, 2003).

Mencione-se, também, de modo a se traçar comparações ao Ministério Público do Estado do Paraná, que o Conselho da Magistratura é composto por 2 mulheres (25%), de um total de 8 desembargadores integrantes, e a Ouvidoria institucional conta com a participação de 2 desembargadoras (totalidade de membros), sendo uma Ouvidora-Geral e outro Ouvidora, todos eleitos em sessão especial do Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR, 2018).

Fonte: Autoras.

No que diz respeito à Defensoria Pública do Estado do Paraná, cabe ressaltar que, de acordo com o relatório de pessoal do mês de março de 2018 disponibilizado no portal da transparência, integram a instituição cerca de 95 membros, dos quais 49 (51, 57 %) é o número de mulheres; e cerca de 194  servidores, dos quais 120 (61,85 %)  são mulheres (DPPR, 2018).

Fonte: Autoras.

O organograma organizacional acessível no website da Defensoria Pública estadual indica que fazem parte da cúpula diretiva da instituição o Conselho Superior, a Corregedoria-Geral, a Defensoria Pública-Geral e a Subdefensoria Pública-Geral (DPPR, 2018).

Nesse contexto, destaca-se que a Corregedoria é integrada por 1 mulher (50%), que exerce a função de Corregedoria-Geral, após formação de lista tríplice pelo Conselho Superior e nomeação pelo Defensor Público-Geral; e integrada por 1 homem (50%), que ocupa a função de Subcorregedor; nomeado pelo Corregedor Geral, nos termos do artigo 30, caput e parágrafo único, da Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado do Paraná – Lei Complementar n. 136, de 19 de Maio de 2011 (PARANÁ, 2011). A Defensoria-Geral, por sua vez, é dirigida por 1 homem membro, que ocupa o cargo de Defensor Público-Geral, após formação de lista tríplice pelos seus membros, em eleição direta e secreta, e nomeação pelo Governador do Estado, nos termos do artigo 13, da Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado do Paraná.  A Subdefensoria Pública-Geral conta com a presença de 1 homem membro (100%), nomeado pelo Defensor Público-Geral do Estado, nos termos do artigo 19 da referida lei. O Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado do Paraná, formado por  14 membros, conta com a presença 6 mulheres (42,85%), sendo que há 1 mulher dentre 4 membros natos (o Defensor Público-Geral do Estado, o Subdefensor Público-Geral do Estado, a Corregedor Geral, e o Ouvidor Geral), 3 mulheres dentre os 5 membros titulares eletivos, e  2 mulheres dentre os 5 suplentes eletivos. Para fins comparativos, ainda, é importante destacar que na Ouvidoria da Defensoria Pública há apenas 1 homem membro integrante, que ocupa a função de Ouvidor-Geral (DPPR, 2018).

Fonte: Autoras.

Destarte, perceptível se torna a sub-representatividade de mulheres nos cargos de poder/ decisão de cada instituição, não obstante estarem presentes em quantidade aproximada ou maior aos homens entre os membros e servidores/as concursados. Além disso, é expressivamente menor a presença feminina no exercício dos cargos eletivos, preenchidos por designação, promoção e/ ou nomeação sem prévio concurso, os quais recaem em critérios subjetivos de seleção e, portanto, cedem espaço para que a ordem masculina se estabeleça de maneira mais evidente.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Diante do exposto, compreendemos que embora as mulheres estejam cada vez mais presentes nos cursos de direito e como membros de instituições do sistema de justiça, sua caminhada até o topo continua lenta e permeada por pedras. Os dados confirmam as nossas impressões iniciais: a representatividade da mulher nos espaços de poder é demasiado pequena. Apesar de já termos alcançado altos cargos, como a Presidência da República e a Presidência do Supremo Tribunal Federal, o fato de podermos contar rapidamente o número de vezes que isso ocorreu, uma e duas, respectivamente, revela a extraordinariedade do acontecimento.

Essa constatação por si só quanto à história de um país como o Brasil, repleta de homens brancos socialmente privilegiados e ricos poderosos, demonstra que pautar a ocupação dos postos de comando por mais mulheres ainda é nadar contra a corrente.

Nesse sentido, tendo em vista que a dominação patriarcal é umbilicalmente ligada às demais dominações, inclusive as de classe e de raça, entendemos que a plena libertação das mulheres só é alcançada com a emancipação humana total.

Por outro lado, reconhecemos que a presença de mulheres nos espaços de poder, ainda que singela, demonstra que a luta vale a pena, a conquista é possível e está acontecendo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 ALMEIDA, Rodolfo; ZANLORENSSI, Gabriel. Gênero e raça de estudantes do ensino superior no Brasil por curso e área. 13 dez. 2017. NEXO.
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/12/13/G%C3%AAnero-e-ra%C3%A7a-de-estudantes-do-ensino-superior-no-Brasil-por-curso-e-%C3%A1rea> Acesso em: 20 abr. 2018.

ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

AZEVEDO, Maria Clara Costa Pinheiro de; AZEVEDO, Mônica Louise de; BERALDO, Maria Carolina Silveira; FREITAS, Ana Teresa Silva de, FREITAS, Hosana Regina Andrade de; e SERRA, Daniela Campos de Abreu. Diagnóstico e Perspectivas da Desigualdade de Gênero Nos Espaços de Poder do Ministério Público: ‘santo de casa não faz milagre’? Tese apresentada no XXII Congresso Nacional do Ministério Público. In: XXII CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017, Belo Horizonte. Disponível em: <https://congressonacional2017.ammp.org.br/public/arquivos/teses/55.pdf>. Acesso em: 16/04/2018.

BALBINO, Viviane Rios. Diplomata: substantivo comum de dois gêneros: um estudo sobre a presença das mulheres na diplomacia brasileira. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Vocação ou profissão? Revista Ande. São Paulo, v. 2, p. 70-74, 1981.

CISNE, M. Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social. São Paulo: Outras Expressões, 2012.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Censo do Poder Judiciário 2013: Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/07/7ea0e2437b68c20a7efb3976315cefb3.pdf>. Acesso em 11 abr. 2018.

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ. Pessoal – 2018. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=544>. Acesso em 18 abr. 2018.

–––––. Organograma. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=20>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Organização. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=79>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Equipe. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=243>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. O que é Ouvidoria-Geral. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=73>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Organização. Disponível em: <http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=76> Acesso em: 11 abr. 2018.
FELIPE, Maura das Graças Lisboa de et al. Empoderamento ou Violência Simbólica: Percepção de Mulheres Docentes em Cursos de Engenharia do CEFET-MG. In: VIII ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS DA ANPAD, 2014. Disponível em: <http://www.anpad.org.br/admin/pdf/2014_EnEO339.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2018.

FONTENELE-MOURÃO, Tânia M. Mulheres no topo de carreira: flexibilidade e persistência. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006.

GERBER, Rose Mary. Mulheres e o mar: pescadoras embarcadas no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.

GHIRARDI, José Garcez; CUNHA, Luciana Gross; FEFERBAUM, Marina (Coords.). Detalhamento regional da área de direito. Observatório do Ensino do Direito, FGV Direito SP, v. 1, n. 1, Out. 2013. Disponível em: <http://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_oed_out_2013quem_e_o_professor_de_direito_no_brasil.pdf>. Acesso em 21 abr. 2018.

Essas fotos de desembargadores ilustram como a meritocracia premia homens brancos. Justificando. 30 mar. 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/30/essas-fotos-de-desembargadores-ilustram-como-meritocracia-premia-homens-brancos/>. Acesso em 21 abr. 2018.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Ministério Público do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/organograma/20180110_Organograma.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Procuradoria-Geral de Justiça. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=235>. Acesso em: 10 abr. 2018.
–––––. Colégio de Procuradores. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=4330>. Acesso em  10 abr. 2018.
–––––. Composição do Colégio de Procuradores de Justiça – Até 20/02/2018. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/pagina-4353.html>. Acesso em 10 abr. 2018.
–––––. Conselho Superior do Ministério Público. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=141>. Acesso em: 10 abr. 2018.
–––––. Lei Complementar nº 117/07. Disponível em: <http://www.ouvidoria.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=5>. Acesso em 10 abr. 2018
–––––. Equipe. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=41>. Acesso em: 10 abr. 2018.
MONTEIRO, Esther. Lugar de mulher também é na política. 08 mar. 2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/08/lugar-de-mulher-tambem-e-na-politica> Acesso em 22 mar. 2018.

MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonardo. Feminino e Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. 3 ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

OAB, Institucional/ Quadro de advogados. Quantitativo por gênero. 24 abr. 2018. Disponível em: <http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em 24 abr. 2018.

 ROSA, Dênerson Dias. O concurso público como princípio constitucional e a promoção interna para cargos organizados em carreira. 30 ago. 2002. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/868/O-concurso-publico-como-principio-constitucional-e-a-promocao-interna-para-cargos-organizados-em-carreira> Acesso em 21 abr. 2018.

SALGADO, Gisele Mascarelli. As mulheres no campo do direito: retratos de um machismo à brasileira. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/revistafadir/article/view/40411/21140>. Acesso em 21 abr. 2018.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

SENADO FEDERAL. PROCURADORIA ESPECIAL DA MULHER. + Mulheres na política: retrato da sub-representação feminina no poder. Brasília, 2016.

SCIAMMARELLA, Ana Paula. O lugar das mulheres no “mundo do direito”. Justificando. 08 dez. 2015. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2015/12/08/o-lugar-das-mulheres-no-mundo-do-direito/>. Acesso em 21 abr. 2018.

SCHUMAHER, Schuma; CEVA, Antonio. Mulheres no Poder: trajetórias na política a partir da luta das sufragistas do Brasil. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro. 1 ed., 2015.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. Detalhamento da Folha de Pagamento de Pessoal. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/folha-de-pagamento>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Eleição no TJPR define Cúpula Diretiva, Ouvidoria e Conselho da Magistratura para o biênio 2017/2018. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/destaques/-/asset_publisher/1lKI/content/eleicao-no-tjpr-define-cupula-diretiva-ouvidoria-e-conselho-da-magistratura-para-o-bienio-2017-2018/18319?inheritRedirect=false>. Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Membros do Conselho da Magistratura. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/en/composicao-do-conselho-da-magistratura> Acesso em 11 abr. 2018.
–––––. Ouvidoria TJPR. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/en/composicao>. Acesso em 11 abril. 2018.



 Narrativas de acesso à justiça e as inovações democráticas introduzidas pela Defensoria Pública no sistema de justiça brasileiro[171]

Narratives of Access to Justice and the Democratic Innovations Introduced by the Public Defender’s Office in the Brazilian Justice System

Maurício Buosi Lemes[172]

Fabiana Cristina Severi[173]

 

Resumo: A Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) inovou no sistema de justiça ao prever a participação social na definição de suas diretrizes institucionais, através da realização de Ciclos de Conferências. Esses Ciclos pretendem proporcionar o acompanhamento das ações e dos projetos desenvolvidos pela instituição e elaborar, em conjunto com a sociedade politicamente organizada, o Plano Anual de Atuação Institucional. A partir de revisão bibliográfica, argumentaremos que criação da Defensoria Pública está inserida em uma narrativa democratizante de acesso à justiça e do sistema de justiça, em construção por entidades e movimentos sociais nos marcos político-jurídicos de um Estado Democrático de Direito. Essa narrativa busca romper com um histórico de distanciamento da cultura jurídica e judiciária brasileira em relação à realidade socioeconômica da maioria da população, tornando o sistema de justiça mais permeável às reivindicações populares envolvendo violações de direitos humanos. Contudo, a construção de uma política pública democrática de acesso à justiça não é linear, está sujeita a avanços e retrocessos, e depende da articulação das escolhas políticas com uma lógica de aproximação e de apropriação do direito e da justiça pelos cidadãos e cidadãs.

Palavras-Chave: Acesso à justiça. Defensoria Pública. Sistema de Justiça. Políticas Públicas. Participação Popular.

Abstract: The Public Defender’s Office of São Paulo State has innovated the justice system by predicting social participation in the definition of its institutional directives, through the realization of Conference Cycles. These Cycles intend to promote the oversight of actions and projects developed by the institution and elaborate, conjointly with the politically organized society, the Annual Institutional Action Plan. From bibliographic revision, we argue that the creation of the Public Defender’s Office is inserted in a democratizing narrative of access to justice and the judicial system, being constructed by entities and social movements in the legal and political marks of the Democratic State of Law. This narrative seeks to break with a history of the ever-distancing legal and judiciary culture in Brazil from the social and economical reality of the majority of the population, in a way that the justice system becomes more permeable to popular claims involving violations of Human Rights. However, the construction of a democratic public policy of access to justice is not linear, it is subject to advances and set backs, and depends on the articulation of political choices with a logic of proximity and appropriation of Law and justice by citizens, man and women.

Keywords: Access to justice. Public Defender’s Office. Justice System. Public Policies. Popular Participation.

I – Introdução

O presente texto apresenta alguns avanços da revisão bibliográfica de nosso projeto de pesquisa[174], que se insere em um campo de estudos que buscam investigar os modos de relação entre a sociedade civil, o direito e as instituições jurídicas, na perspectiva dos processos sociojurídicos recentes de democratização do acesso à justiça e do sistema de justiça brasileiro.

O objetivo central consiste em analisar as potencialidades e os limites de impacto da sociedade civil organizada em Ribeirão Preto na disputa pela conformação dos modelos de serviços jurídicos prestados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) na cidade. Para atingi-lo, delimitamos como objetivos específicos: a) identificar o perfil das demandas sociais direcionadas às Pré-Conferências  Regionais da DPESP em Ribeirão Preto em matéria de cidadania, direitos humanos e meio ambiente; habitação, urbanismo e conflitos agrários; e política de atendimento e educação em direitos humanos; b) descrever o percurso das propostas aprovadas na fase das Pré-Conferências Regionais, considerando a etapa estadual, a elaboração do Plano Anual de Atuação Institucional e o monitoramento dos Ciclos de Conferências da DPESP; c) compreender como membros da DPESP e representantes de grupos e movimentos sociais locais percebem as experiências de funcionamento e de concretização das propostas aprovadas nos Ciclos de Conferências da DPESP; e d) fornecer subsídios para a definição dos contornos dogmáticos contemporâneos do direito de acesso à justiça e de participação nas instituições públicas do sistema de justiça.

Em termos metodológicos, propomos a realização de uma pesquisa sociojurídica empírica, de cunho qualitativo, com a utilização das técnicas de análise documental referente aos Ciclos de Conferências da DPESP (atas de conferências, planos de atuação institucional e relatórios de monitoramento) e de entrevistas semiestruturadas com defensores e defensoras públicas e representantes de grupos e movimentos sociais locais de Ribeirão Preto.

O tema do acesso à justiça na sociedade brasileira tem adquirido relevância na agenda política de diversos grupos e movimentos sociais, devido à perpetuação de processos de diferenciação e hierarquização social que limitam o acesso aos direitos legalmente consagrados. Embora o Estado capitalista moderno venha se mostrando incapaz de promover uma realização material irrestrita da promessa da igualdade, a previsão de instituições, de mecanismos e de procedimentos voltados à garantia de direitos assume uma importante função de justiça distributiva (LAURIS, 2009).

      Desde a década de 1980, acompanhamos um processo de construção do ideário democrático, que se expressa na reivindicação e na afirmação de direitos fundamentais, na criação de espaços públicos e na participação da sociedade civil nas discussões e na tomada de decisões relacionadas às questões de políticas públicas, cujo marco formal é a Constituição Federal de 1988 (CF/88) (DAGNINO, 2004).

Essas mudanças têm favorecido algumas formas de democratização do aparelho estatal, instaurando uma nova gramática para as lutas sociais através do aprendizado social do significado e da linguagem dos direitos, uma vez que a sociedade civil e a esfera pública se juridificaram. Desse modo, ao menos desde a redemocratização do Brasil após a CF/88, a linguagem dos direitos parece dar o tom da maior parte das lutas sociais brasileiras e ocidentais (RODRIGUEZ, 2016).

No Brasil, o acesso à justiça foi elevado à categoria de direito fundamental em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Após a lei fundamental instituir o Estado Democrático de Direito e definir os direitos de cidadania, o país ratificou, em 1992, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica, que reconhece o acesso à justiça como um direito inerente aos direitos humanos. Contudo, a efetiva realização dos direitos não é decorrência imediata do reconhecimento formal do direito de acesso à justiça na CF/88 e em outros textos legais. Embora a legalidade provoque impactos na sociedade, sua extensão e profundidade também dependem fundamentalmente de outras variáveis, relacionadas a circunstâncias objetivas e ao grau de desempenho dos integrantes das instituições responsáveis por sua efetividade (SADEK, 2016).

Para Severi (2014), as instituições jurídicas vem incorporando em seu modo de atuação, ainda que em medidas variadas, os conflitos e as tensões sociais. O reconhecimento de novos direitos e de novos sujeitos de direitos realizado sobretudo a partir da CF/88, somado ao uso crescente da Constituição e da linguagem dos direitos na ação política dos movimentos sociais, levaram as tensões e os conflitos sociais para o interior das instituições jurídicas, provocando alterações em seu perfil de funcionamento.

Sadek (2008), ao discutir a nova identidade do sistema de justiça[175] e seus reflexos na sociedade, aponta para uma nova arquitetura institucional voltada à proteção de direitos individuais e supra individuais. A autora destaca algumas mudanças: o Poder Judiciário foi configurado como um real poder de Estado, com garantias de autonomia e independência, em um sistema presidencialista assentado na separação e na divisão de poderes; o Ministério Público foi concebido como essencial à função jurisdicional do Estado, com atribuições de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; e a Defensoria Pública foi constitucionalizada e desenhada como essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados e das necessitadas (artigo 134 da CF/88), tendo, posteriormente, ganhado autonomia, com a Emenda Constitucional nº 45, de 2004.

Quando observamos o sistema de justiça no Brasil, percebemos que, historicamente, os sujeitos que devem ser atendidos pela Defensoria Pública e a quem a prestação jurisdicional é dirigida não têm participado de qualquer espaço de intervenção nos modos de operação do Poder Judiciário, bem como não têm contado com formas de diálogo ou possibilidades de fiscalização das funções exercidas pelo Estado nesse âmbito. Algumas inovações democráticas introduzidas pela Defensoria Pública no sistema de justiça, de que trataremos no decorrer do texto, parecem ir na direção oposta ao legado judicial brasileiro (ZAFFALON L. CARDOSO, 2010).

Cover (2016) sustenta que nenhuma instituição ou norma jurídica existe em separado das narrações que a situam e lhe proporcionam significado na experiência social. A elaboração do significado dos direitos está ativamente associada às narrativas que edificam e fornecem sentidos ao conjunto de instituições e de normas jurídicas. Essas narrativas estabelecem paradigmas para dinâmicas de obediência, consentimento, contradição e resistência.

Nesse texto, à luz da reflexão proposta por Cover (2016), nosso objetivo volta-se para a compreensão da narrativa de política pública de acesso à justiça que situa a criação da Defensoria Pública no Brasil, bem como das potencialidades democráticas e dos limites que seus Ciclos de Conferências de participação popular têm, ao possibilitarem formas de interação entre a sociedade civil, o direito e as instituições jurídicas.

II – A conformação de um modelo de acesso à justiça: a Defensoria Pública paulista e os Ciclos de Conferências de participação popular

 Lauris (2009), apoiada nos estudos de Boaventura de Sousa Santos, identifica dois grandes campos de disputa no que se refere à definição do papel da justiça e das reformas jurídicas contemporâneas. De um lado, temos um campo hegemônico, cujos protagonistas são o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e as grandes agências internacionais e multilaterais de empréstimos. Esse campo orientou grande parte das reformas do sistema judiciário por todo o mundo, vinculando-as aos negócios e aos interesses econômicos e reclamando por uma justiça eficiente, célere, que garanta a previsibilidade dos negócios, a segurança jurídica e a salvaguarda dos direitos de propriedade.

            De outro lado, temos um campo contra hegemônico em que atuam atores, grupos e movimentos sociais que lutaram pelos direitos sociais e econômicos trazidos sobretudo pelos processos constituintes e de mudança constitucional. Esse campo contra hegemônico indaga qual é o papel do sistema de justiça ante as aspirações dos sujeitos em situação de vulnerabilidade social (LAURIS, 2009).

O sistema de justiça brasileiro passou a ser encarado, por diferentes organizações de direitos humanos e movimentos populares, como um campo estratégico de disputas envolvendo a justiciabilidade dos direitos humanos de grupos subalternizados, com um potencial de transformação da realidade social pela possibilidade de correção, em parte, de alguns fatores responsáveis pela reprodução dos mecanismos de desigualdade e discriminação entre as pessoas (SEVERI, 2016).

A incidência do princípio da inércia institucional acaba por delegar o controle da pauta do Poder Judiciário para os litigantes. Assim, a transformação do campo jurídico encontra-se no âmbito das disputas objetivas entre os diferentes agentes, interesses e instituições do sistema de justiça (GEDIEL et al, 2012).

            Do ponto de vista das instituições políticas, a preocupação com o reforço das condições de igualdade dos cidadãos e das cidadãs no recurso ao direito e à justiça tem se confrontado com os pressupostos neoliberais de uma nova gestão pública centrada no racionamento dos serviços jurídicos públicos. O desejo de ampliação, propagação e proximidade das estruturas jurídicas encontra limites nos propósitos de concentração dos serviços jurídicos e de redução de custos e de financiamento (LAURIS, 2009).

No caso do Brasil, o processo recente de afirmação de direitos (políticos, econômicos, sociais e culturais) foi acompanhado pela introdução de medidas neoliberais de redução do investimento social do Estado, o que tem favorecido a realização de reformas jurídicas vacilantes entre a consolidação de uma política social de acesso à justiça e a adoção de soluções de privatização/fragmentação dos serviços jurídicos e enfraquecimento da importância política e social da justiça (LAURIS, 2009).

Com o objetivo de implementar uma justiça dotada de funcionalidade democrática e que execute políticas, propostas e ações estratégicas de redistribuição, reconhecimento e participação popular que afirmem a transversalidade das diferentes demandas, o Fórum Justiça[176] sistematizou as recomendações contidas nos documentos finais resultantes de diversos seminários relacionados à democratização do sistema de justiça (FÓRUM JUSTIÇA, 2015).

O documento traz recomendações relativas a diferentes categorias e, ao tratar de mecanismos funcionais das agências do sistema de justiça, prevê a

Participação popular dos indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade no planejamento estratégico e financeiro das agências do sistema de justiça, incluindo e dialogando com suas perspectivas e demandas, por meio de ouvidorias externas, audiências, conferências públicas, estaduais e nacionais, e outros instrumentos, sendo realizados também processos de escuta nas comunidades, em dias e horários acessíveis (FÓRUM JUSTIÇA, 2015, p. 21).

Com a criação da Defensoria Pública na CF/88, o Brasil consolidou a preferência por um modelo público e democrático de acesso à justiça, com um corpo profissional próprio dedicado à informação e consulta jurídicas, judicial e extrajudicial. Sua atuação tem a possibilidade de romper com uma situação caracterizada por desigualdades cumulativas. Esse traço, definidor da realidade brasileira, retrata uma situação em que as múltiplas formas de opressão (de gênero, raça/etnia e classe social) estão imbricadas e produzem vidas precárias que se traduzem na precariedade de acesso à justiça, à educação, à saúde, à habitação, enfim, aos recursos necessários a uma vida digna. Nesse contexto, sobra pouco espaço – se algum – para a experiência dos direitos (SADEK, 2013; SEVERI, 2017).

A Constituição cidadã deu vida à paridade Defensoria Pública e cidadania, termos de uma mesma equação. Cabe à instituição prestar assistência jurídica integral e gratuita a todas as pessoas hipossuficientes. Não se trata, apenas, de ingressar em juízo, mas de conferir assistência integral aos necessitados e às necessitadas, com funções que vão desde a educação em direitos até a solução de conflitos e a garantia de direitos, seja ajuizando ações no Poder Judiciário ou extrajudicialmente. Essa amplitude de atribuições permite que, legitimamente, se possa afirmar que a Defensoria Pública se constitui na porta de entrada para a inclusão (SADEK, 2013).

De acordo com Zaffalon L. Cardoso (2013), a responsabilidade de identificar e protagonizar uma maior aproximação entre as necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade e o sistema de justiça restou, pela CF/88, a cargo da Defensoria Pública. Para tanto, e consolidando a experiência vivenciada inicialmente em São Paulo, a legislação federal[177] dotou formalmente a Defensoria de instrumentos de gestão democrática hábeis a promover uma maior interação e possibilidades de diálogo entre os sujeitos sociais. As inovações advindas da criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) parecem representar uma fenda no inacessível universo das instituições do sistema de justiça, na medida em que se cria um novo paradigma democrático.

O grande atraso na criação da Defensoria Paulista, efetivada apenas no ano de 2006, desencadeou um intenso processo de participação popular com o nascimento do Movimento pela Defensoria Pública, que congregou mais de 400 entidades politicamente organizadas que passaram a dialogar, propor e reivindicar dos Poderes Executivo e Legislativo os necessários encaminhamentos para a urgente observância do texto constitucional que, desde 1988, dispôs sobre a criação das Defensorias Estaduais. As inovações observadas na Lei Complementar Estadual nº 988/2006, que criou a Defensoria Paulista (e em parte consolidadas na Lei Complementar Federal nº 132/2009) constituem fruto de uma mobilização social que foi capaz de viabilizar a incorporação, no texto legal, das prioridades construídas pelos protagonistas do Movimento pela Defensoria Pública, em torno de uma instituição democrática, autônoma, descentralizada e transparente (ZAFFALON L. CARDOSO, 2013).

Caminhando no sentido de democratização da gestão da DPESP, a lei que a instituiu inovou ao prever a participação social com foco na definição de suas diretrizes institucionais, através da realização de Ciclos de Conferências Regionais e Estaduais, que se concretizam a cada dois anos com a participação dos destinatários de seus serviços[178]. Esses Ciclos de Conferências também pretendem proporcionar o acompanhamento das ações e dos projetos desenvolvidos pela instituição e elaborar, em conjunto com a sociedade politicamente organizada, o Plano Anual de Atuação da Defensoria. A realização da Conferência da Defensoria Pública ocorre em âmbito estadual, sendo precedida de Pré-Conferências Regionais que devem produzir subsídios, de acordo com a realidade de cada região, para as discussões e deliberações da etapa estadual. As ações locais são indicadas nos relatórios produzidos nessas Pré-Conferências Regionais (ZAFFALON L. CARDOSO, 2013).

Do acúmulo construído por entidades, movimentos sociais e organizações não governamentais e consolidado em diretrizes no Plano Anual de Atuação da instituição, a Defensoria pode se valer para a potencialização, diversificação e aprofundamento dos trabalhos necessários à efetivação de suas atribuições, devendo apropriar-se dessa construção e observá-la como parâmetro para as suas prioridades. Assim, o Ciclo de Conferências da DPESP configura-se em um espaço educativo que busca incluir as diversas vozes que compõem o público-alvo da Defensoria, fortalecendo, de maneira emancipatória, os debates sobre a promoção do acesso à justiça (ZAFFALON L. CARDOSO, 2013). Posteriormente, o modo como a instituição encaminhou as propostas aprovadas nos Ciclos de Conferências da DPESP é discutido junto a representantes da sociedade civil, em reuniões de monitoramento.

A organização da DPESP procura atender aos conflitos estruturais e às questões coletivas levantadas pelos movimentos e organizações sociais, apostando na criação de núcleos especializados: Núcleo de Habitação e Urbanismo, Núcleo da Situação Carcerária, Núcleo da Infância e da Juventude, Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, Núcleo dos Direitos do Idoso, Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher e Núcleo de Combate ao Racismo e Preconceito.

Nesse sentido, não se pode perder de vista o sentido dialógico que a democracia imprime a todo processo institucional, o que implica em inserir os defensores e as defensoras públicas numa disposição mediadora e dialógica com os atores sociais e é condição democrática para a aplicação do direito. Esse empenho pode ampliar as possibilidades de compreensão dos problemas fundamentais do direito e das instituições que o realizam, de modo a criar e a reorganizar as condições para a realização da justiça em interação com as transformações sociais. Logo, pensar sobre a participação social na administração da justiça impõe, na prática, a formação de espaços de reflexão coletiva acerca das maneiras possíveis de intervir nas estruturas que sustentam e comandam o mundo (SOUSA JÚNIOR, 2015).

No caso da DPESP, a democratização dos seus processos decisórios potencialmente implica na legitimação do exercício de sua função de garantidora da cidadania dentro do Poder Judiciário à medida que, através da participação social, passa a ser possível a compreensão do exato quadro de exclusão da ordem jurídica que precisa ser superado e do que precisa ser priorizado. A participação é um instrumento para que as desigualdades sejam visibilizadas na forma de questões prioritárias e de possíveis soluções coletivas para os problemas individuais, mas principalmente coletivos, vinculados ao acesso à justiça (ZAFFALON L. CARDOSO, 2010).

A criação, a exemplo do ocorrido na DPESP, de mecanismos por meio dos quais a sociedade politicamente organizada tem a oportunidade de dialogar com as instituições jurídicas alinha-se com bastante nitidez às concepções vinculadas à democracia participativa, que, celebrada em outras esferas de poder, também se mostra crucial no campo da função jurisdicional do Estado. Nesse sentido, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, por meio do acesso igualitário ao Sistema de Justiça, implica a criação de novos espaços de deliberação e de minipúblicos, tendo em vista as implicações sociais das decisões judiciais para a sociedade como um todo (ZAFFALON L. CARDOSO, 2010, pp. 168-169).

Uma concepção mais ampla de acesso à justiça exige um procedimento de tradução capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de práticas e de desejos sociais que formam a identidade dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos, o que faz do acesso à justiça um campo mais abrangente que acesso ao Poder Judiciário. Esse processo de tradução pode criar sentidos e direções para novas práticas de realização da justiça, mediadas por um direito construído e realizado no espaço público (SOUSA JÚNIOR, 2015).

Uma compreensão meramente institucional, restrita e formal de acesso à justiça impõe limites para a participação popular na interpretação e na concretização dos direitos, visto que esgota a tensão e a porosidade entre o ordenamento jurídico constituído e a prática instituinte dos atores sociais. Já um nível mais amplo de acesso à justiça se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça, em que novas subjetividades sociais abrem perspectivas para outros modos de considerar o próprio direito ou de estabelecer estratégias não judiciais para conhecer, mediar e resolver casos de violação a direitos humanos (SOUSA JÚNIOR, 2015).

Apesar das inovações democráticas introduzidas pela Defensoria Pública no sistema de justiça brasileiro, há uma série de obstáculos estruturais e funcionais à sua consolidação, tais como graves restrições orçamentárias, que dificultam a ampliação dos critérios de elegibilidade das pessoas atendidas, a garantia de qualidade dos serviços, o fortalecimento do trabalho de litigância coletiva e estratégica (que exige mais tempo, preparo e maior investimento em pessoal e em formação) e da orientação e da capacitação jurídica dos cidadãos e cidadãs (LAURIS, 2009). Tais deficiências de financiamento apontam para uma lógica neoliberal de precarização dos serviços jurídicos públicos promovidos pela Defensoria e ameaçam o modelo democrático de acesso à justiça consagrado pela CF/88.

            Além dessas deficiências, em estudo mais recente, Zaffalon L. Cardoso (2017), a partir da hipótese de que o sistema de justiça tanto pode favorecer o aprofundamento democrático quanto, ao contrário, pode o obstaculizar, argumenta que as disputas por afirmação corporativa dentro do sistema de justiça estão imbricadas com as disputas da política convencional, em que as pautas corporativo-remuneratórias aliam-se à agenda do Executivo dentro das instituições da justiça.

Como consequência, a autora sugere que a Defensoria Pública Paulista, apesar de ter sido criada a partir de disputas políticas que contaram com intensa mobilização social e de ter sido considerada um movimento de renovação democrática no sistema de justiça, vem inserindo-se em um processo de cooptação, com o rompimento da proximidade com os movimentos sociais e populares. A participação popular na sua gestão tem sido esvaziada através do enfraquecimento da ação da sociedade civil pelos projetos hegemônicos do Estado neoliberal (ZAFFALON L. CARDOSO, 2017).

 

III – Considerações finais

 O tema do acesso à justiça, dentro dos estudos jurídicos, é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo jurídico e a justiça social, entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades sociais (SANTOS, 1999). Em sentido amplo, portanto, refere-se às condições reais da população participar do processo político, econômico e social, devendo o processo jurídico ter conexão com a realidade sociopolítica a que se destina, e servir de instrumento à efetiva realização dos direitos (HADDAD; SOARES, 2009).

A criação da Defensoria Pública no Brasil está inserida em uma narrativa democratizante de acesso à justiça e do sistema de justiça, em construção por diversas entidades e movimentos sociais nos marcos político-jurídicos de um Estado Democrático de Direito. Essa narrativa busca romper com um histórico de distanciamento da cultura jurídica e judiciária brasileira em relação à realidade socioeconômica da maioria da população, tornando o sistema judiciário mais permeável às reivindicações populares envolvendo violações de direitos humanos.

Com as graves deficiências e limitações orçamentárias, o Movimento pela Defensoria Pública foi revigorado em torno de um fórum de fortalecimento e valorização, que tem dinamizado protestos e intervenções públicas com o objetivo de pressionar os Poderes Executivo e Legislativo a investir no aperfeiçoamento da instituição. A construção de uma política pública democrática de acesso à justiça não é linear, está sujeita a avanços e retrocessos, e depende da articulação das escolhas políticas com uma lógica crescente de aproximação e de apropriação do direito e da justiça pelos cidadãos e cidadãs (LAURIS, 2009).

Referências:

COVER, Robert M. “Nomos e narração”. Tradução de Luis Rosenfield. In: Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 2, n. 2, julho/dezembro de 2016, p. 187-268.

DAGNINO, Evelina.             “¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?”. In: MATO, Daniel (coord.). Políticas de ciudadanía y sociedad civil em tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004, p. 95-110.

FÓRUM JUSTIÇA. Redistribuição, reconhecimento e participação popular: por uma política judicial integradora. 100 diretrizes para modelo de justiça integrador, 2015. Disponível em: <http://www.forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2015/08/miolo_100diretrizes_portugues_completo_v2-2.pdf>. Acesso em 24 de abr. de 2018.

GEDIEL, José Antônio P. et al. Mapa territorial, temático e instrumental da assessoria jurídica e advocacia popular no Brasil. Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB: Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular, outubro/2012.

HADDAD, Eneida G. de Macedo; SOARES, Thaís A. “Notas sobre a história da Defensoria Pública Paulista”. In: Prisma Jurídico. São Paulo: Universidade Nove de Julho, vol. 8, núm. 2, julho-dezembro, 2009, p. 383-402.

LAURIS, Élida. “Entre o social e o político: a luta pela definição do modelo de acesso à justiça em São Paulo”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 87, dezembro de 2009, p. 121-142.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Luta por direitos, rebeliões e democracia no século XXI: algumas tarefas para a pesquisa em direito”. In: Revista Digital de Direito Administrativo, vol. 3, n. 3, 2016, p. 609-635.

SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça no Brasil: índice de fragilidade dos municípios. Realização: Open Society Foundations, Programa Cidades Sustentáveis e Rede Nossa São Paulo, 2016. Disponível em: <http://www.cidadessustentaveis.org.br/arquivos/acessoajusticanobrasil.pdf>. Acesso em 06 de jul. de 2017.

_____. “Acesso à Justiça: Visão da Sociedade”. In: Justitia. São Paulo, 65 (198), jan./jun. 2008, p. 271-279.

_____. “Defensoria Pública: a conquista da cidadania”. In: RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri (coord.). Temas Aprofundados da Defensoria Pública. Editora Jus Podivm, 2013, p. 19-31.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7 ed. Edições Afrontamento, 1999.

SEVERI, Fabiana Cristina. Cartografia social e análise das experiências de assessorias jurídicas universitárias populares brasileiras. Relatório de Pesquisa. Ribeirão Preto: Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, FDRP/USP, 2014. Disponível em: <http://www.najurp.direitorp.usp.br/cartografia-social-analise-experiencias/>. Acesso em 06 de jul. de 2017

_____. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. Ribeirão Preto: Tese de Livre-Docência em Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, USP, 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/107/tde-22062017-093152/pt-br.php>. Acesso em 06 de jul. de 2017.

_____. “O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres”. In: Revista Direito & Práxis. Rio de Janeiro, vol. 07, nº 13, 2016, p. 81-115. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/16716>. Acesso em 31 de ago. de 2017.

SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”. In: ESCRIVÃO FILHO, Antonio; FRIGO, Darci; MEDEIROS, Érica de Lula; PRIOSTE, Fernando Gallardo Vieira; e PRIVATO, Luciana Cristina Furquim (coord.).   Justiça e direitos humanos: perspectivas para a democratização da justiça. Curitiba: Terra de Direitos, 2015, p. 19-25. Disponível em:  <http://www.jusdh.org.br/files/2015/07/Justi%C3%A7a-e-Direitos-Humanos-vers%C3%A3o-final.pdf>. Acesso em 06 de jul. de 2017.

ZAFFALON L. CARDOSO, Luciana. “Fendas democratizantes: mecanismos de participação popular na Defensoria Pública e o equacionamento da luta social por oportunidade de acesso à justiça”. In: RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri (coord.). Temas Aprofundados da Defensoria Pública. Editora Jus Podivm, 2013, p. 33-65.

_____. Participação social: inovações democráticas no caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. São Paulo: Programa de Pós Graduação (Mestrado) em Adminsitração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2010.

_____. Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do Sistema de Justiça paulista com as disputas da política convencional. São Paulo: Programa de Pós Graduação (Doutorado) em Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2017.



A efetivação da política pública municipal de resíduos sólidos como instrumento para a inclusão social de catadores e catadoras em Volta Redonda/RJ.

 

Josinete Maria Pinto[179]

Resumo: Este trabalho tem como objetivo identificar as dificuldades vivenciadas pelas cooperativas de catadores e catadoras para realização da coleta seletiva no município de Volta Redonda e apontar sugestões de ações que possam superar os limites encontrados a partir da assinatura do contrato de prestação de serviço com o Poder Público Municipal. Para realização do mesmo participei da reunião do grupo de trabalho que é composto pelas Cooperativas de catadores e catadoras, a InTECSOL – Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia Solidária do Médio Paraíba da Universidade Federal Fluminense, as Defensorias Públicas da União e do Estado e o Poder Público Municipal. Realizei pesquisa qualitativa que entrevistou nove cooperados. Os resultados revelaram especificidades em relação ao funcionamento de cada uma das cooperativas e ao mesmo tempo semelhanças nas condições de trabalho de cada uma delas. Estimula-se o desenvolvimento da autogestão para o funcionamento de forma autônoma e a concretização do contrato para prestação de serviços que se encontra em fase de finalização. Para que essa autogestão ocorra de forma satisfatória e sustentável, aconselha-se o desenvolvimento de ações de formação continuada dos cooperados e cooperadas para que estes se apropriem e possam realizar em condições de igualdade a gestão da coleta seletiva em Volta Redonda.

Palavras-chave: políticas públicas; cooperativas; coleta seletiva; inclusão social; Economia Solidária.

1.       INTRODUÇÃO

A Lei 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), reconhece os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania. E reforça a necessidade de integração dos catadores e catadoras de materiais recicláveis com incentivo à criação e o fortalecimento das cooperativas já existentes (BRASIL, 2010).

A considerar que a construção da política de resíduos sólidos envolve dois atores: poder público e cooperativas de catadores e catadoras, um elo entre eles se estabelece, o que para efetivação da coleta seletiva compreenderá uma gestão social dialética, como práxis dialógica das decisões em torno de um interesse público dos atores envolvidos. A gestão social deverá ter clareza que se trata de construir políticas públicas para catadores e catadoras que vivem em condições sociais vulneráveis.

Segundo Tenório (2010), quando se fala de gestão social é preciso dar atenção para o marco conceitual que enfatiza a necessidade dos gestores, pois, independente da configuração jurídica da organização, é importante “atuar sob uma perspectiva na qual o determinante de suas ações deve ser a sociedade e não o mercado” (TENÓRIO, 2010).

A problemática a ser enfrentada será a construção e efetivação do contrato de prestação de serviços pelas cooperativas de catadores e catadoras de resíduos sólidos com a Prefeitura, para coleta seletiva no município de Volta Redonda/RJ.

Sendo assim, o objetivo geral deste trabalho foi identificar as dificuldades vivenciadas pelas cooperativas para realização da coleta seletiva no município de Volta Redonda/RJ; e consequentemente apontar ações que contribuam para fortalecer o trabalho destas cooperativas; e compreender o processo de construção e consolidação do contrato de prestação de serviços.

1.1. O cenário da coleta seletiva em Volta Redonda: a história como referência para seguir.

Volta Redonda está localizada na mesorregião Sul Fluminense do estado do Rio de Janeiro, às margens da Rodovia Presidente Dutra. Conhecida como “Cidade do Aço”, é o maior município em número de habitantes da região e nele está localizada a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), uma das mais importantes produtoras de aço do país. Juntamente com Barra Mansa, Porto Real e Resende, compõe o eixo econômico-industrial da região. Além da atividade industrial no entorno da siderurgia, o setor de serviços e o comércio varejista compõem a base da economia local.

As cooperativas de catadores também atuam neste cenário, gerando riqueza socioeconômica que não aparece nas estatísticas da economia local. Não aparecem assim como os grandes depósitos que compram das cooperativas e dos catadores e catadoras avulsos e vendem direto para as empresas. Autores como Demajorovic (2014) e colaboradores exemplificam como valores de venda são capazes de invisibilizar esse processo, de forma a manter o status quo pelo aspecto financeiro (FGV, 2014).

O lixão de Volta Redonda funcionou por muitos anos no bairro Roma e foi desativado no ano de 2001. Na ocasião, o poder público municipal, criou a Associação dos Catadores do município (Reciclar VR), para receber catadores e catadoras que trabalhavam no antigo lixão, e outros  que desenvolviam a catação   nas ruas de forma avulsa, além de pessoas em situação de risco pessoal ou social encaminhadas pelo Departamento de Proteção Especial da Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC).

A partir do ano de 2009 a associação dá lugar à Cooperativa Popular dos Agentes do Meio Ambiente (Cooperativa Reciclar VR), que até hoje funciona no antigo prédio de uma escola municipal no bairro Vila Santa Cecília, com adaptações feitas pela prefeitura, alguns equipamentos também cedidos por ela e outros recebidos em doação. Esta cooperativa sempre foi tutelada pelo poder público e, até hoje, não adquiriu a capacidade de se organizar de forma autogestionária.

O atrelamento da Reciclar VR ao poder público levou alguns associados ligados ao Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e com vivências junto à Economia Solidária a fomentarem, a partir de 2009, a organização de um empreendimento autônomo, que desembocou, em 2011, na criação da Cooperativa de Catadores Folha Verde.

Esta cooperativa demarcou uma nova forma de organização da política pública municipal de resíduos sólidos. A atuação junto ao MNCR, somada à sanção da Lei 12.305/2010, possibilitou por um determinado tempo, ter certas reivindicações atendidas pela prefeitura, como o aluguel de um galpão, o pagamento das despesas mensais de água, energia elétrica e alimentação (almoço). Fez parcerias com a iniciativa privada, que se traduziu em aquisição de equipamentos industriais e de proteção individual para os cooperados, além de treinamentos e assessorias oferecidas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E como resultado da participação no MNCR, recentemente a Cooperativa Folha Verde foi contemplada com equipamentos e assessorias por meio do projeto Catadores e Catadoras em Redes Solidárias – CRS, fruto de um convênio assinado em junho de 2012 entre a Secretaria Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), com o objetivo de promover a inclusão socioprodutiva de catadores de materiais recicláveis no estado do Rio de Janeiro.

No ano de 2013, algumas mulheres que saíram da Cooperativa Folha Verde, formaram o Grupo Mulheres Guerreiras, que resultou na constituição da Cooperativa Cidade do Aço. O grupo inicial de cooperados era composto por oito mulheres e um homem, sendo que a maioria das mulheres tinham filhos e/ou netos vivendo sob sua responsabilidade. O processo de constituição dessa cooperativa manifesta a busca por autonomia, construção de relações menos patriarcais e, sobretudo, de uma identidade coletiva baseada no respeito à condição da mulher catadora e no exercício da autogestão.

A constituição da Cooperativa Cidade do Aço tinha como propósito qualificar esse coletivo como um terceiro empreendimento de catadores a ser contemplado pelo Programa de Coleta Seletiva de Volta Redonda, que começou a ser estruturado a partir do ano de 2010. A luta pelo reconhecimento e inclusão do grupo como prestador de serviço junto ao Programa de Coleta Seletiva inicia com a constituição da cooperativa, que finalmente no ano de 2016 conseguiu o seu Cadastro Nacional  de Pessoa Jurídica (CNPJ).

Para realizar as atividades de coleta e triagem de materiais recicláveis, a Cooperativa Cidade do Aço, alugou um terreno, com recursos oriundos da venda do material triado, localizado num bairro próximo às residências da maioria das integrantes iniciais.

No terreno alugado foi construído inicialmente um pequeno galpão, onde o grupo se dividia em dois turnos para o trabalho de triagem. Houve no início uma tentativa de coleta independente nos bairros de residência das cooperadas e numa escola pública do local, mas, sem deixar de reivindicar o reconhecimento do grupo por parte do poder público, a Cooperativa também passou a receber material da coleta seletiva realizada por empresa contratada pela Prefeitura.

Em 2013, a Cooperativa Cidade do Aço, em razão de sua participação nos Seminários de Economia Solidária do Médio Paraíba, promovidos pela Universidade Federal Fluminense (UFF), passa a receber uma assessoria da Universidade, por intermédio do Grupo PET Gestão Social, para apoiar o processo de formalização da cooperativa. Com a implantação da InTECSOL – Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia Solidária do Médio Paraíba, na UFF em Volta Redonda, a Cooperativa Cidade do  Aço passa a ser  incubada[180] a partir de  meados do ano de 2014.

Com o passar do tempo, às condições de trabalho no terreno foram se tornando inviáveis, o material que chegava trazido pela empresa contratada pela Prefeitura era sempre de qualidade inferior e misturado com resíduos molhados e, muitas vezes, lixo hospitalar, colocando em risco a saúde dos catadores e catadoras e o meio ambiente. Do ponto de vista socioeconômico, a quantidade de materiais que chegavam ao galpão passou a ser cada vez menor, levando a diminuição do pró-labore[181] ou retirada e até no atraso do pagamento do aluguel do espaço.

Para resolver a questão, o gestor municipal apresentou como “alternativa” a mudança de local da cooperativa, para ocupar o mesmo terreno onde está situada a Cooperativa Reciclar VR. O coletivo resistiu, argumentou, apresentou possibilidades, mas, no ano de 2015 foi obrigada a mudar. A mudança gerou uma desarticulação do grupo, já que várias integrantes não puderam continuar trabalhando, devido à distância do bairro de residência, a falta de recursos para o transporte e também por não concordarem com a decisão tomada, de forma unilateral, pelo poder público municipal.

As duas cooperativas continuam trabalhando no mesmo espaço e, embora o representante do poder público não esteja mais coordenando a Cooperativa Reciclar VR, ainda enfrentam problemas com a divisão do espaço de trabalho e do material recolhido pela empresa que realiza a coleta seletiva, onde muitas vezes era necessário recuar para evitar maiores conflitos, prejudicando os princípios de trabalho coletivo.

O debate dentro do Poder Público Municipal, até o final do ano de 2016, se deu no Comitê Intersecretarial, composto por Secretarias Municipais, indicadas pelo prefeito como instância de decisão sobre a política de resíduos sólidos em Volta Redonda, mas não chegou a estabelecer um diálogo autêntico com as três cooperativas, portanto, o processo de tomada de decisão sobre a coleta seletiva e a relação com as cooperativas não representavam uma prática de gestão social, assim como a construção do Plano Municipal de Resíduos Sólidos (2015) também foi construído desconsiderando o protagonismo das cooperativas, subordinando-as aos seus interesses.

A partir do ano de 2017, com a eleição da atual Gestão Pública Municipal, o Comitê Intersecretarial foi desativado. As três cooperativas junto com a InTECSOL, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública Estadual (DPE) inicia um diálogo com a nova gestão com o objetivo de reivindicar a contratação das cooperativas para a realização da coleta seletiva na cidade, sem licitação pública, conforme assegura a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Desta forma, um novo grupo de trabalho foi criado e passou a contar com a participação das Secretarias Municipais de Meio Ambiente (SMMA) e da Secretaria Municipal de Planejamento, Transparência e Modernização da Gestão (SEPLAG) para discussão, construção e efetivação do Plano Municipal de Resíduos e a contratação das cooperativas com intuito de assumir a gestão da coleta seletiva no município.

2.            REFERENCIAL TEÓRICO

Para este trabalho, trouxe como referenciais teóricos: Demajorovic (2014) com o artigo “Integrando empresas e cooperativas de catadores em fluxos reversos de resíduos sólidos pós-consumo: o caso ‘Vira-Lata’”; Plano de Resíduos Sólidos do Município de Volta Redonda (2015); livro “Políticas Públicas” de Maria das Graças Rua (2102); artigo “A questão social em Hannah Arendt: apontamentos críticos”; “The Human Condition”. Chicago: Un. Chicago Press (1958); Entrevista sobre Economia Solidária de Paul Singer (2008) e; livro “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire (1987).

O aprofundamento teórico trouxe contribuições relevantes que embasaram a pesquisa acadêmica e promoveram a correta explicação e aplicação dos conceitos envolvidos e suas relações, além de favorecer o debate para a identificação dos problemas e a apresentação de propostas que possam contribuir para a implantação da PNRS, na relação dialética entre as Organizações Sociais e o Estado.

2.1. A Política Pública como um direito.

Trazendo o conceito de política pública como um direito, é importante entender a diferença entre política pública e decisão política. Para a autora, Maria das Graças Rua, Política pública, em geral envolve mais que decisão, pois é necessário diversas ações escolhidas de forma estratégica para  se  colocar  em prática as decisões que forem tomadas. E decisão política é escolha dentre as possíveis alternativas, de acordo com as prioridade e preferências dos atores envolvidos, expressas em maior ou menor grau de adequação, considera os fins pretendidos e os meios disponíveis (RUA, 2012).

A contratação das cooperativas de catadores e catadoras de resíduos sólidos   é um direito porque está assegurado pela PNRS. A sua efetivação é uma decisão política, e mexe com interesses socioeconômicos diferenciados dentro do município. A consolidação do contrato de coleta seletiva vai proporcionar transformações socioeconômicas para a vida dos catadores e catadoras e um marco político na modernização da gestão pública municipal, com interesses e visões diversas que fazem parte da relação dialética entre a sociedade e o Estado. A educação ambiental com informação acessível e de qualidade serão grandes aliadas para que a população e as empresas voltem a destinar os resíduos sólidos para as cooperativas.

Para a autora Hannah Arendt, é preciso observar o que está em jogo pois toda a ação, por definição, parte das necessidades vitais e crescentes na esfera social e econômica, e que muitas vezes têm ficado ofuscadas no âmbito político da sociedade moderna (ARENDT, 1993).

Nesse sentido, é preciso efetivar a política pública nas dimensões socioeconômica e ambiental e priorizar a inclusão social de catadores e catadoras, e assim garantir o direito ao trabalho digno para quem sempre esteve à margem da sociedade.

A atuação de membros das cooperativas de catadores no Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e na Economia Solidária resgata o sentido profundo do trabalho, constituído sobre os princípios da autogestão, que prioriza a organização e as tomadas de decisões de forma coletiva, a cooperação, a solidariedade com respeito às relações de gênero e à natureza.

Paul Singer, ex-secretário da SENAES, define a Economia Solidária como um modo de produção mais igualitário onde as decisões são tomadas por todos os integrantes e com igualdade de direitos, assim os trabalhadores e trabalhadoras passam ser os donos dos meios de produção, E a autogestão, é a forma como estes fazem a gestão do empreendimento de economia solidária, de forma coletiva e democrática, onde todos e todas têm direito a voz e de votar e ser votado, independente da função que ocupe na cooperativa (SINGER, 2008).

A considerar a realidade social de exclusão de muitos catadores e catadoras, estas transformações não são imediatas, é preciso se reconhecer como parte de um coletivo que se propõe a viver novos princípios e valores. Se tornar um cooperado é saber que tem direitos, mas também tem responsabilidades.

O educador popular Paulo Freire (1987), diz que reflexão e mundo, subjetividade e objetividade não se separam. A reflexão crítica sobre o mundo origina-se a partir da prática, da compreensão da “práxis” constitutiva do mundo humano. Sendo assim foi de extrema importância o envolvimento do pesquisador no cenário da pesquisa, pois possibilitou compreender os conflitos internos e externos,   a partir da realidade estrutural em que todos estão inseridos.

Atuar nos princípios da economia solidária e da educação popular exige formação contínua para enfrentar e transformar os valores impregnados pela economia capitalista. É sair da lógica do individual para o coletivo, onde muitas vezes a visão predominante é a econômica, condicionada ao recebimento do salário. Para a maioria, aqueles que assumem função de coordenação são os  patrões  que vão fazer o “acerto” no final do mês, e estes são quem devem assumir as responsabilidades para com a cooperativa. Por isso, a formação para gestão se faz necessária e deve acontecer no local de trabalho, onde saberes e vivências são ressignificados diariamente.

3.                METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi a da pesquisa-ação que é um tipo de pesquisa social qualitativa com base empírica e a sua concepção tem estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo,  onde quem pesquisa e quem participa da situação ou do problema estão envolvidos de  modo  cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2011).

Thiollent (2011) aponta que uma das especificidades da pesquisa–ação consiste no relacionamento e envolve dois tipos de objetivo. O primeiro é prático e contribui para o melhor equacionamento possível do problema considerado como central na pesquisa, apontando soluções e proposta de ações correspondentes. E o segundo objetivo é obter informações que seriam de difícil acesso por meio de outros procedimentos, aumentar nosso conhecimento de determinadas situações (reivindicações, representações, capacidade de ação ou de mobilização etc.).

A pesquisa iniciou no ano de 2015 e foi atualizada no mês de setembro de 2017 após visita da pesquisadora às cooperativas para atualização de informações e a participação na reunião do grupo de trabalho para compreender a construção do contrato a ser assinado pelas cooperativas. Foram entrevistadas nove pessoas, sendo elas, seis mulheres e três homens na faixa etária de 32 a 56 anos. O grau de escolaridade de todos os sujeitos da pesquisa é ensino fundamental incompleto. Para tanto entrevistamos três representantes de cada uma das cooperativas. Foram utilizados questionários com intuito de saber detalhes sobre as condições de trabalho e as propostas de ações para fortalecer o ofício das cooperativas de catadores e catadoras. As entrevistas foram compiladas e deram origem a um relatório descritivo, onde os dados foram consolidados e serão apresentados na forma de texto nos resultados e discussões deste trabalho.

4.            RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram muitas questões apontadas pelos cooperados e cooperadas escolhidos para a pesquisa, entre os temas mais relevantes, consideramos pertinente criar algumas categorias relacionadas às cooperativas de catadores e catadoras com intuito de dialogar a respeito dos avanços e desafios a serem enfrentados.

As categorias foram relacionadas ao diálogo com o poder público para efetivação e regularidade da coleta seletiva; a garantia das estruturas físicas seguras, equipamentos de proteção individual, condições de maquinários; o recurso para o transporte dos cooperados até o local de trabalho em condições de segurança; a regularidade na entrega dos resíduos sólidos nos galpões, e a consolidação do contrato de prestação de serviço ao município.

4.1. O diálogo necessário

Para os catadores entrevistados, o trabalho na cooperativa é a única fonte de renda e a retirada mensal média varia entre R$ 300,00 e R$ 500,00. A regularidade das retiradas depende da chegada do material proveniente da coleta seletiva, do ambiente e da organização do trabalho de triagem, do funcionamento dos equipamentos e da realização de boas vendas. Mas, mesmo enfrentando com frequência problemas como esses, os entrevistados não demonstram interesse em deixar as cooperativas, em razão da flexibilidade da estrutura hierárquica e do horário de trabalho.

O autor, Milton Santos (2010) no seu livro: Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal afirma: que a dialética dentro de um universo empírico nos encorajará a superar a práxis invertida até o momento comandada pela ideologia dominante e de que existe possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e a esperança.

Essa construção dialética aponta uma variedade de contradições e, portanto, não se trata apenas da assinatura do contrato de prestação de serviços para realização da coleta seletiva em Volta Redonda. As cooperativas de catadores e catadoras se organizam e lutam para serem reconhecidas, remuneradas e respeitadas pelo trabalho e compromisso com as transformações socioeconômicas, políticas e ambientais do município.

A autora, Rosemeire Barboza da Silva (2006), diz que essa luta, torna-se possível porque começa a ser ativada como visível, e a participação no  espaço público contribui em diferentes níveis para que catadores e catadoras tenham consciência de seu papel como sujeito público que presta um serviço imprescindível e que poucos estariam dispostos a executar.

Sendo assim, contratar as cooperativas é reconhecer que estes trabalhadores e trabalhadoras cumprem uma função social importante no município pelo trabalho que realizam de coleta, triagem e destinação correta dos resíduos que não são coletados pelos depósitos e grandes geradores.

  • Condições das estruturas físicas dos galpões

As cooperativas localizam-se em terrenos públicos, mas os espaços comuns, como banheiros, copa, cozinha e espaço administrativo funcionam em condições precárias. Não existem espaços nas sedes apropriados para realização de atividades como reuniões, assembleias e momentos de formação, assim como armários para guardar os pertences com segurança.

  • Condições dos equipamentos de proteção individual e maquinários

A maioria dos equipamentos de triagem, prensagem e pesagem dos resíduos como esteiras, prensas e balanças funcionam de forma precária. Os que têm melhores condições de uso foram conquistados ou cedidos por empresas privadas parceiras. Economia solidária defende que há necessidade de se reconhecer os trabalhadores cooperados como categoria e, portanto, sujeitos de direitos à proteção social, já que a profissão de catador de material reciclável é reconhecida e foi oficializada pela classificação Brasileira de Ocupações (2002).

  • Condições de deslocamento e de segurança para chegar aos locais de trabalho.

Várias pessoas, principalmente as mulheres alegam que a chegada ao local de trabalho exige caminhar longo trecho a pé e gera insegurança, principalmente em um dos galpões situado em local afastado. Uma linha de transporte público pode melhorar o trajeto até o local, sem a necessidade de maiores esforços físicos.

  • Da chegada dos resíduos nos galpões

A entrega de materiais recicláveis nos locais de triagem é precária, consequência da coleta irregular e da alta rotatividade de coletores que muitas vezes vêm trabalhar nos galpões com a expectativa de receber um salário. Os caminhões que fazem a coleta muitas vezes param o trabalho com a justificativa que não tem combustível para circular. Com a assinatura dos contratos, a expectativa é que as cooperativas constituam um capital de giro para num futuro breve poder adquirir os caminhões. Enquanto isso não acontece, serão contratados os caminhões de empresas que prestam este tipo de serviço, já contendo motorista e combustível incluídos no valor do contrato.

Por desconhecimento da população, o material que chega aos galpões muitas vezes é misturado com resíduos molhados, o que diminui a quantidade resíduos triados e vendidos e aumenta o trabalho dos catadores e catadoras, no entanto, os intermediários que compram esses materiais das cooperativas, impõem preços muito baixos. Sendo assim, neste cenário, é importante fortalecer a articulação dos catadores em redes solidárias para que estes possam se juntar e vender o material diretamente às empresas com margem de negociação.

4.6. A espera inquieta pela assinatura dos contratos de prestação de serviço de coleta seletiva.

No passado, a prestação de serviço de triagem junto ao Programa de Coleta Seletiva do município ocorria sem nenhuma remuneração, mesmo tendo sua determinação prevista em lei. A demora em realizar a assinatura dos contratos de prestação de serviço está provocando desmobilização nos galpões, porque se não tem material, os cooperados não tem pró-labore e nem recursos para pagar as passagens e chegar no local de trabalho. Sendo assim, as cooperativas têm adotado o sistema de rodízio para garantir que os cooperados possam obter alguma remuneração.

As relações pessoais são frágeis no âmbito das cooperativas, por isso a necessidade da formação continuada para fortalecer os elos sociais. Várias cooperadas dependem dos programas de transferência de renda, por ser muito baixa a remuneração proveniente do trabalho de triagem. A maioria dos cooperados não recolhe INSS por falta de organização e/ou de recursos, o que pode comprometer garantias sociais futuras.

Por fim, os investimentos das cooperativas não dão conta para a formação continuada dos cooperados para a autogestão. A maioria não compreende o que seria uma cooperativa autogestionária e qual a diferença para uma empresa tradicional, com a presença permanente do patrão.

 

4.7. Propostas apresentadas pelas cooperativas de catadores e catadoras de Volta Redonda.

Os entrevistados avaliaram que há muito que se avançar na organização da atividade em Volta Redonda, e propõem que a prefeitura remunere as cooperativas e pare de destinar os resíduos ao aterro sanitário de Barra Mansa. As cooperativas possuem condições de assumir todo o processo da coleta seletiva, inclusive com ações educativas junto à população. Para tanto, as cooperativas deveriam ser contratadas diretamente pela prefeitura, assumindo a gestão do Programa de Coleta Seletiva do município, mas tendo sua autonomia garantida. Além disso, reivindicam espaços de trabalho apropriados, com máquinas e equipamentos de proteção individual adequados para realizar o trabalho de coleta seletiva, triagem e comercialização dos resíduos.

Sugerem que se mantenha um canal de diálogo permanente entre a Gestão Pública Municipal, representada pelas secretarias de governo ligadas ao tema e as instituições que apoiam as cooperativas, e após a concretização da assinatura dos contratos seja feito um convênio da Prefeitura com a InTECSOL/UFF para garantir a continuidade da formação em gestão dos cooperados.

Sobre monitoramento da coleta seletiva na cidade, propõem ajustes no trabalho sem prejuízo de ambas as partes (a contratada e a contratante), respeitando a forma de organização e gestão das cooperativas.

5.            CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo identificar as dificuldades vivenciadas pelas cooperativas para realização da coleta seletiva no município de Volta Redonda e apontar sugestões de ações que possam superar os limites encontrados a partir da assinatura do contrato de prestação de serviço com o Poder Público Municipal.

Enquanto pesquisadora que desenvolveu a pesquisa-ação, considero que os objetivos foram alcançados, embora não tenha sido possível entrevistar os gestores públicos envolvidos diretamente por questão da agenda. Ao acompanhar às reuniões do grupo que construiu o contrato de prestação de serviços, avalio que a Gestão Pública avançou no diálogo com as cooperativas, mas ainda mediadas pela presença da UFF, da DPU e DPE. Portanto, o desafio é consolidar este diálogo direto sem a necessidade de mediação.

As cooperativas mostraram na prática que é possível construir novas relações de trabalho através da organização coletiva e autogestionária. A mobilização e reivindicação dos seus direitos explicitaram os conflitos da relação das organizações com o Estado.

É necessário continuar desenvolvendo a formação sobre os temas: autogestão, cooperativismo, relações interpessoais e de gênero e a atuação dos catadores e catadoras em rede de cooperação solidária como estratégia socioeconômica para proporcionar a venda direta para as grandes empresas geradoras de resíduos.

Pela importância do tema, consideramos o trabalho de pesquisa desenvolvido com as cooperativas de alta relevância socioeconômica, política, cultural e ambiental. Destacamos a coragem e determinação destes catadores e catadoras ao perseguirem seus objetivos, até conquistar o direito de serem contratados pela Gestão Pública Municipal. A assinatura dos contratos está ocorrendo paulatinamente, entre as três cooperativas atuantes no município, duas delas  já  foram contempladas, e a outra, está em trâmite, devido à necessidade de ajustes na documentação.

Como sugestão para que as cooperativas possam superar os limites encontrados no desenvolvimento de suas atividades consideramos importante o alinhamento das relações de poder dentro das cooperativas, através de uma metodologia dialética, que influencia na construção e efetivação da política pública, assim como o desafio da construção da autogestão sob o olhar das mulheres catadoras no cotidiano do trabalho, na família e na sociedade.

É importante acompanhar as transformações socioeconômicas na vida dos catadores e catadoras a partir da efetivação da política pública de coleta seletiva no município, alinhadas com  as ações  de educação ambiental focadas  para população  e empresas grandes geradoras de resíduos, assim como proporcionar que  a sociedade de Volta Redonda tenha acesso a informações de qualidade sobre o novo modelo de coleta seletiva instalado.

Que seja avaliada a qualidade e a efetividade da coleta seletiva em parceria com a população, promovendo ações conjuntas. O fortalecimento da atuação das cooperativas em rede para proporcionar melhoria na qualidade de vida dos catadores e proporcionar a venda direta para as empresas grandes geradoras de resíduos. E a Gestão Pública Municipal poderá ser reconhecida pelo seu compromisso e decisão política de enfrentar as grandes questões relacionadas com   o lixo, pelo menos no que se trata da gestão da coleta seletiva.

Longe de querer esgotar o debate sobre a coleta seletiva e a situação do município de Volta Redonda, consideramos pertinente, o fomento a estudos acadêmicos que venham relacionar a importância de resíduos sólidos em âmbito nacional.

6.            REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. A QUESTÃO SOCIAL EM HANNAH ARENDT: apontamentos críticos. The human condition. Chicago: Un. Chicago Press, 1993, pág.155. File:///C:/Users/lele/Downloads/1468-2404-1-SM%20(2).pdf. Acessado: em 02/10/2017.

BAPTISTA, Vinicius Ferreira. Governança pública do lixo ou como a subversão do “social” contamina as políticas públicas para cooperativas de materiais recicláveis. Demajorovic, J.; Caires, E.; Silva, L.; Silva, M. J. C. E. “Integrando empresas e cooperativas de catadores em fluxos reversos de resíduos sólidos pós-consumo: o caso Vira-Lata”. Cadernos Ebape.Br (FGV), v. 12, p. 513-532, 2014.

BRASIL. Lei nº 12.305, de 02 de agosto 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, p. 3, 03 ago. 2010.

CBO.                    Classificação               Brasileira              de            Ocupações,               2002.

http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTitulo.jsf                         Acessado em: 03 de out. de 2017.

FREIRE, PAULO. Pedagogia do Oprimido, 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pág. 15.

JANNUZI, Paulo de Martino. Indicadores Socioeconômicos na Gestão Pública – ed. reimp. – Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC, 2012. 110 p.:il., pág.20.

NETO Luís Moretto1, GARRIDO Paulo Otolini2, JUSTEN Carlos Eduardo3. Desenvolvendo o aprendizado em gestão social: proposta pedagógica de fomento às incubadoras sociais. Cad. EBAPE.BR, v. 9, nº 3, artigo 7, Rio de Janeiro,                      Set.             2011             p. 831-845.                         Disponível             em: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v9n3/a08v9n3 Acessado em: 03 de out. de 2017. PMVR – PREFEITURA MUNICIPAL DE VOLTA REDONDA. Plano de Resíduos

Sólidos               do      Município       de      Volta      Redonda,       2015.       Disponível       em: http://www.portalvr.com/projetos/saneamento/index.php/8-noticias/27-secretaria- municipal-de-planejamento-de-volta-redonda-apresenta-planos-municipais-de- saneamento-e-gerenciamento-de-residuos. Acesso: em 02 de out. de 2017.

PMVR – PREFEITURA MUNICIPAL DE VOLTA REDONDA. Coleta Seletiva Solidária, chamamento público  para habilitação  de associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Processo Nº 005275/2017. Edital de Habilitação Chamamento Público N°005/2017- permanente. Publicado no Diário Oficial do Município, dia 30 ago. 2017.

RUA, Maria das Graças. Políticas Públicas – 2. Ed. reimp. – Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC, 2012, pág. 17.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal – 19ª ed. – Rio de Janeiro. Recordo, 2010, pág. 168.

SILVA, Rosemeire Barboza. O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis: atores, governação, regulação e questões emergentes no cenário brasileiro. Revista Internacional Interdisciplinar-Interthesis, vol 2, nº 32, jul/dez 2006, PÁG. 4. Disponível em: file:///C:/Users/lele/Downloads/882-34485-1-PB.pdf Acessado em: 03 de out de 2017.

SINGER, Paul. Entrevista sobre Economia Solidária. Scielo – Estudos Avançados Print version ISSN 0103-4014                                                                         On-line version ISSN 1806-9592                 Estud. av. vol.22 no.62 São Paulo Jan./Apr. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0103- 40142008000100020 Acessado em 29 de set. 2017.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. – 1ª ed. – São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. Pág. 12.

TENORIO, Fernando Guilherme. Gestão social: reflexões teóricas e conceituais. Cadernos Ebape.Br (FGV), v. 9, nº 3, artigo 1, Rio de Janeiro, set. 2011 p. 689- 703. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v9n3/a02v9n3. Acesso em 28 de set. 2017.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa–ação. São Paulo, Editora Cortez, 2011, pág. 20 – 24.


NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 09 – Observatório Sistema de Justiça, de políticas públicas e do Legislativo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Graduado pela UFPR

[3] VAN PARIJS, Philippe. “Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?”. Revista Estudos Avançados. São Paulo: Instituto de estudos Avançados/USP, 2000, nº 40, de setembro/dezembro. p. 2.

[4] Nascido na Bélgica, estudou filosofia, direito, economia, política, sociologia e linguística na Universidade de Saint Louis, em Bruxelas, além das universidades de Louvain, Oxford, Bielefeld e Califórnia. Doutorou-se em Ciências Sociais na Universidade Católica de Louvain (1977) e Filosofia na Universidade de Oxford (1980). Professor da Faculdade de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais da Universidade Católica de Louvain (UCL), onde também dirige a Cátedra Hoover de ética econômica e social desde sua criação em 1991. É também professor visitante na Universidade de Harvard desde 2004 e no Instituto KuLeuven de Filosofia desde 2006.

[5] VAN PARIJS, Phillipe. The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 172.

[6] FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. (Coleção temas fundamentais de direito; v. 1) p.47.

[7] Idem. p.48.

[8] Tradução livre de “Objections from feminists are thought to be particularly important. Feminist critiques of the welfare state have been directed firstly at the family model (male breadwinner/female housekeeper model) assumed by the welfare state, and the androcentric concept of citizenship built on top of it. These have extended to critiques of institutions based on such citizenship, and gender division of public and private spheres.” KATADA, Kaori. Basic Income and Feminism: in terms of ‘the gender division of labor’. In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 1. Disponível em: <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/katada.pdf>. Acesso em: 8 Ago. 2017.

[9] RIOS-NETO, Eduardo L. G (Org.). A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça. Brasília: CNPD: UNFPA, 2006. p. 20.

[10] A título de exemplo, apesar do crescimento no número de mulheres eleitas em 2014, as casas legislativas federais ainda apresentam sub-representação feminina: são apenas 51 deputadas federais (9,9% do total) e 11 senadoras (13,6% do total), representando um eleitorado de 74,2 milhões de brasileiras (52,1% do total) – números de 2014. Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Outubro/eleicoes-2014-numero-de-deputadas-federais- cresce-13-33-em-relacao-a-2010>. Acesso em: 06 de novembro de 2017.

[11] FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. (Coleção temas fundamentais de direito; v. 1) p.48.

[12] VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017. p. 137

[13] VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017. p. 190.

[14] “Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.” BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[15] OFFE, Claus. A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade. In: Sociedade e Estado em transformação. Luiz Carlos Bresser-Pereira, Jorge Wilheim e Lourdes Sola. (Orgs.). São Paulo: Editora da UNESP, Brasília: ENAP, 1999. p. 122

[16] VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017. p. 222.

[17]§ 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias. [grifo nosso] BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[18] BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[19] “Art. 3o O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2o desta Lei.” [grifo nosso] BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[20] “Art. 4o A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do Programa.” [grifo nosso] BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[21] “Art. 2o Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.” BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004.

[22] BRASIL. Lei complementar nº 101, de 05 de maio de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 05 mai. 2000. p. 1.

[23] MARICÁ. Lei Municipal nº 2.651, de 11 de dezembro de 2015. Jornal Oficial de Maricá, Poder Executivo, Rio de Janeiro, Maricá, Ano nº VII, ed. nº 622, p. 10, 16 dez. 2015.

[24] Disponível em: <http://www.marica.rj.gov.br/2017/02/19/marica-e-destaque-no-mundo-com-rbc/> Acesso em: 14 de novembro de 2017.

[25] MARICÁ. Lei Municipal nº 2.651, de 11 de dezembro de 2015. Jornal Oficial de Maricá, Poder Executivo, Rio de Janeiro, Maricá, Ano nº VII, ed. nº 622, p. 10, 16 dez. 2015

[26] SIGHING for Paradise to Come. The Economist, Londres, 4 jun. 2016. Disponível em: < https://www.economist.com/news/briefing/21699910-arguments-state-stipend-payable-all-citizens-are-being-heard- more-widely-sighing >. Acesso em: 10 nov. 2017.

[27] “No atual contexto exploratório brasileiro, a possibilidade de ocorrência do conjunto de rochas com potencial para gerar e acumular petróleo na camada pré-sal encontra-se na chamada província pré-sal, um polígono de aproximadamente 800 km de extensão por 200 km de largura, no litoral entre os estados de Santa Catarina e Espírito Santo. As jazidas dessa província ficam a 300 km da região Sudeste, que concentra 58,2% do Produto Interno Bruto (soma de toda a produção de bens e serviços do país). A área total da província do pré-sal (149 mil km²) corresponde a quase três vezes e meia o estado do Rio de Janeiro. A produção diária de petróleo no pré-sal atingiu o patamar de milhão de barris por dia em meados de 2016.” Disponível em: < http://www.petrobras.com.br/pt/nossas- atividades/areas-de-atuacao/exploracao-e-producao-de-petroleo-e-gas/pre-sal/>. Acesso em: 16 de novembro de 2017.

[28] ORDOÑEZ, Ramona; ROSA, Bruno. Pré-sal cria novo mapa de royalties. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 17 set. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/pre-sal-cria-novo-mapa-dos-royalties-21832755>. Acesso em: 16 nov. 2017.

[29] Instituto Pela Revitalização da Cidadania – RECIVITAS, CNPJ nº 08.518.270/0001-09, OSCIP Processo MJ nº 08071.018450/2007-0. Disponível em: <https://www.recivitas.org/sobre>. Acesso em 15 de novembro de 2017.

[30] Disponível em: <https://medium.com/@mbrancaglione/quatinga-velho-a-experi%C3%AAncia-de-renda- b%C3%A1sica-como-projeto-cidad%C3%A3o-para-o-cidad%C3%A3o-ed43ea9cd170>. Acesso em 15 nov. 2017.

[31] Idem.

[32] Segundo Yuri Gitahy, especialista em startups, “há uma definição mais atual, que parece satisfazer a diversos especialistas e investidores: uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza.” Disponível em: <https://exame.abril.com.br/pme/o-que- e-uma-startup/> Acesso em: 17 nov. 2017

[33] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2017/05/basic-income-experiments-and-those-so-called-early-2017- updates/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

[34] Disponível em: <https://www.recivitas.org/basic-income-startup>. Acesso em: 17 nov. 2017.

[35] Disponível em: <https://www.recivitas.org/basic-income-startup>. Acesso em: 17 nov. 2017.

[36] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2016/12/brazil-basic-income-startup-gives-lifetime-basic-incomes- villagers/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

[37] WIDERQUIST, Karl. Basic Income’s Third Wave. Open Democracy. Londres, 18. Out. 2017. Disponível em:

<https://www.opendemocracy.net/beyondslavery/karl-widerquist/basic-income-s-third-wave>. Acesso em: 10 nov. 2017

[38] Idem.

[39] Nas palavras de Hobsbawm, a Grande Depressão “foi o maior terremoto global medido na escala Richter dos historiadores econômicos […]. Em suma: entre as guerras, a economia mundial capitalista pareceu desmoronar. Ninguém sabia exatamente como se podia recuperá-la.” HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914 -1991. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 91.

[40] WIDERQUIST, Karl. Basic Income’s Third Wave. Open Democracy. Londres, 18. Out. 2017. Disponível em:

<https://www.opendemocracy.net/beyondslavery/karl-widerquist/basic-income-s-third-wave>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[41] Idem.

[42] Ibidem.

[43] Ibidem.

[44] O bitcoin “é uma tecnologia digital que permite com que pagamentos eletrônicos […] sejam rápidos, baratos e sem intermediários. Além disso, eles podem ser feitos para qualquer pessoa, que esteja em qualquer lugar do planeta, sem limite mínimo ou máximo de valor.” Disponível em: <https://www.bitcoinbrasil.com.br/o-que-e-bitcoin/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[45] WIDERQUIST, Karl. Basic Income’s Third Wave. Open Democracy. Londres, 18. Out. 2017. Disponível em:

<https://www.opendemocracy.net/beyondslavery/karl-widerquist/basic-income-s-third-wave>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[46] Tradução livre de: “People in the European Union (EU) are slowly beginning to realize that beyond the immediate triggers, the fundamental cause of the crisis of the euro zone, in contrast to the stability of the currency shared by the fifty states of the United States, is the absence of two major buffer mechanisms: (1) inter-state migration, which is about six times more intensive in the United States than in the EU, and (2) trans-state transfers, which are between twenty and forty times larger in the United States, depending on the indicator used. Because of language differences, there is little chance of the first buffer, migration, becoming much more significant in the EU. The only serious hope for the sustainability of the euro is therefore a strengthening of the second buffer, transfers. But the EU will never manage to integrate its many welfare states into a unified mega welfare state. The only form this buffer could take is therefore a very simple one. Once you exclude a number of schemes plagued with intrinsic perversities, there is not much left but an EU-wide or eurozone-wide basic income— not as a substitute for existing national welfare states, but as a floor to be fitted under them in order to secure their viability.” VAN PARIJS, Phillipe. The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 175.

[47] VAN PARIJS, Philippe. No Eurozone without euro-dividend, In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 9. Disponível em http://basicincome.org/research/. Acessado em: 08 de Agosto de 2017

[48] “Ao invés de basear-se na criação de dinheiro, pode-se pensa na criação de uma renda básica à partir da taxação sobre a circulação de dinheiro. A “Taxa Tobin” nas transações financeiras internacionais pode ser vista como uma versão modesta deste tipo de taxação, tendo sido proposta em outros momentos como uma fonte de custeio para uma renda básica.” Tradução livre de “Instead of relying on the creation of money, one could also think of funding basic income by taxing the circulation of money. The “Tobin tax” on internacional financial transactions can be viewed as a relatively modest version of such a tax and has also occasionally been proposed as a source of funding for a basic income.” VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017. p. 293.

[49] Idem. p. 237.

[50] Idem. p. 293.

[51] Acerca da proposta ver mais em: Disponível em: <https://www.theguardian.com/business/2016/aug/03/cash-handouts- are-best-way-to-boost-growth-say-economists>. Acesso em: 15 nov. 2017.

[52] O Brexit resultou na saída do Reino Unido da União Europeia, para ler mais: Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/brexit-entenda-os-pontos-mais-polemicos-da-negociacao-21133924>. Acesso em: 15 nov. 2017.

[53] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2017/05/survey-of-11000-europeans-finds-68-would-vote-for-basic- income/>. Acesso em: 15 nov. 2017.

[54] Disponível         em: <http://basicincome.org/news/2017/07/china-city-social-dividend-proposal-captures-national- attention/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[55] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2017/09/scottish-universal-basic-income-experiments/>. Acesso em 10 nov. 2017.

[56] Disponível         em: <http://basicincome.org/news/2017/08/barcelona-spain-design-minimum-income-experiment- finalized/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[57] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2017/07/the-netherlands/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[58] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/31/opinion/1483187073_097272.html>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[59] Disponível em: <http://basicincome.org/news/2017/06/hawaii-study-universal-basic-income-impact-job-automation- social-safety-net/>. Acesso em: 10 nov. 2017.

[60] Os montantes arrecadados pela produção petrolífera e os dividendos revertidos em renda básica podem ser conferidos no site oficial do Governo do Alasca. Disponível em: <https://pfd.alaska.gov/Division-Info/Summary-of- Applications-and-Payments>. Acesso em: 20 nov. 2017.

[61] VAN PARIJS, Phillipe. The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 175.

[62] Disponível em: <https://pfd.alaska.gov/Division-Info/Summary-of-Applications-and-Payments>. Acesso em: 20 nov. 2017.

[63] HOWARD, Michael W.; WINDERQUIST, Karl. The Alaska Model: a republican perspective. In: Alaska’s Permanent Fund. New York: Plagrave Macmillan, 2012. p. 169.

[64] SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda Básica de Cidadania: a resposta dada pelo vento. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 63-64.

[65] VAN PARIJS, Phillipe. The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 172.

[66] Tradução livre de “[…] the most remarkable fact about Iran’s basic-income-like system of cash transfers is that it evolved not by design but by default. It was not a deliberate policy decision but the fortuitous outcome of a process aimed at reforming an inefficient and unfair system of subsidies and making the transition palatable to politicians and the public at large. There could hardly be a more dramatic vindication of Philippe Van Parijs’s (2006) characterisation of basic income as a “simple and powerful idea.” TABATAI, Hamid. The Basic Income Road to Reforming Iran’s Price Subsidies. In: Basic Income Studies. Berlin: 2011, vol. 6, Issue 1, june. p. 23

[67] Tradução livre de: “(…) social protection policies can have a positive impact on the economic environment, both directly through fostering productivity and – more indirectly – through fostering social cohesion and social peace which are prerequisites for stable long-term economic growth.” GINNEKEN, Wouter Van. Poverty, Human Rights and Income Security in Europe. In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 4. Disponível em: <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/ginneken.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2017.

[68] Tradução livre de: “Basic income is a radical political program aimed at implementing social justice. Transforming this programmatic idea into practical public policy of social reform, however, depends largely upon addressing concerns about fiscal preconditions and consequences involved in such a reform, as well as the (hard to determine yet arguably significant) consequences its realization would have upon labor and capital markets.” OFFE, Claus. Basic Income and Labor Contract. Berlin: Basic Income Studies, 2008, vol. 3, Issue 1, april. p. 2.

[69] SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda Básica de Cidadania: a resposta dada pelo vento. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 72-74.

[70] Tradução livre de: “minimum wages would only be helpful for those who have a full-time job, whereas basic income would have a much wider impact.” WILKENS, Herbert. Basic Income and Minimum Wages – Temporary or Permanent Complements? In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 1. Disponível em: <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/wilkens.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2017.

[71] Idem.

[72] Tradução livre de: “On a macroeconomic level, abstaining from minimum wage would mean wage dumping as well as subsidising employers. The state is not responsible for financing part of the employers’ wage bill in the low-wage section. It should be expected from employers that they fully cover the cost of value creation by all of their employees. Labour must be paid according to its performance for the firm. Minimum wage make sure that the achievements of all employees are acknowledged appropriately. At a time when social standards are permanently deteriorating, Minimum wage introduce an element of stability in labour relations.” WILKENS, Herbert. Basic Income and Minimum Wages – Temporary or Permanent Complements? In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 1. Disponível em: <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/wilkens.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2017.

[73] Idem.

[74] GINNEKEN, Wouter Van. Poverty, Human Rights and Income Security in Europe. In: XIV International Congress of BIEN in Munich, Germany, September 2012. p. 10. Disponível em <http://basicincome.org/bien/pdf/munich2012/ginneken.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2017.

[75] NASCIMENTO, Carlos Valder do. Finanças Públicas e Sistema Constitucional Orçamentário. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 76

[76] Idem. p. 78.

[77] Neste sentido, as previsões da Lei são claras “Art. 1º (…) § 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias.” BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004. p. 1.

[78] NASCIMENTO, Carlos Valder do. Finanças Públicas e Sistema Constitucional Orçamentário. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 76.

[79] CAMPELLO, T.; FALCÃO, T.; COSTA, P. V. (Orgs.). O Brasil sem Miséria. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2014.

[80] BRASIL. Lei ordinária nº 13.414, de 10 de janeiro de 2017. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2017. p. 1.

[81] Prevista em seu “Art. 3o O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2o desta Lei.” Apesar de não realizada em 2005, seria perfeitamente realizável em um futuro próximo. BRASIL. Lei ordinária nº 10.835, de 08 de janeiro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 01 jan. 2004. p. 1.

[82] BRASIL. Lei complementar nº 101, de 05 de maio de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 05 mai. 2000. p. 1

[83] VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A radical proposal for a free society and a sane economy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2017. p. 138.

[84] Tradução livre de “ (…) an unconditional basic income is not exclusively nor ultimately about the distribution of income or consumption power. It is about the power to decide what sort of life one wants to live. It is about the power to say no to the dictates of a boss, a bureaucrat, or a spouse. And it is about the power to say yes to activities that are poorly paid or not paid at all, but are nonetheless attractive either in themselves or because of the training and the contacts they provide. The expectation is that spreading more evenly this bargaining power, the power to say yes and to say no, will not only make our societies more equal, but also systematically improve the quality of work—and thereby the quality of life—through the very operation of the capitalist labor market once subjected to different structural constraints.” VAN PARIJS, Phillipe. The Universal Basic Income: why utopian thinking matters, and how sociologists can contribute to it. In: Politics & Society. Londres: 2013, vol. 41(2), Issue 171-172, june. p. 174.

[85] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Observatório de Justiça, de políticas públicas e do Legislativo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[86] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 999883716.

[87] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 98718-0306

[88] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 98891-5446

[89] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 98873-7313

[90] Superior em andamento – FND/UFRJ  – [email protected] – +55 21 99525-3632

[91] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 98799-9753

[92] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 97201-2828

[93] Superior em andamento – FND/UFRJ – [email protected] – +55 21 96755-2575

[94] Doutora – FND/UFRJ) – [email protected] – +55 21 98040-0044

[95] A Aliança Democrática foi uma coligação formada pelas diferentes forças que se opunham ao regime militar.

[96] Essa frente foi criada em 1978, com a articulação de 18 organizações de oposição que apoiavam a candidatura de Bentes Monteiro a sucessão ao Presidente Geisel.

[97] A Aliança Democrática tinha assumido o compromisso de convocar uma assembleia nacional constituinte para a elaboração de um novo texto constitucional. Desde 1982, em meio à ascensão das lutas dos trabalhadores urbanos do ABC paulista e da multiplicação de lutas e organizações no campo, ganhou força uma campanha pelas eleições diretas para presidente, com a bandeira das “Diretas já!”. Apesar desta campanha e da intensa mobilização política em que vivia o país, ocorreram eleições indiretas para Presidente da República. Nestas eleições, a Aliança Democrática garantiu a eleição de Tancredo Neves para Presidente, que não chegou a assumir devido à sua morte, assumindo em seu lugar o vice, José Sarney.

[98] O PMDB, na época, dividia-se em “autênticos” e “conservadores”. Os autênticos eram considerados como o setor progressista do PMDB.

[99] Reunião presidida por Jaqueline Pitanguy na Câmara dos Deputados o Encontro Nacional Mulher e Constituinte

[100] Essa carta foi entregue ao presidente do Congresso Nacional Ulysses Guimarães e, na esfera estadual, aos presidentes das Assembleias Legislativas.

[101] Campanha ficou conhecida como “O Lobby do Batom” – denominação dada às mulheres que fizeram pressão junto aos constituintes, pois “tinha um adesivo com um batom que era o Congresso e a tampinha do batom formava as duas cúpulas do Congresso.” (CABRAL, Gilda. 8 de março de 2008. http://www.nominuto.com/noticias/brasil/luta-pelos-direitos-das-mulheres-na-constituinte-ficou-conhecida-como-lobby-do-batom/12927/)

[102] Em 15 de abril de 2018 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco-historico-no-combate-a-discriminacoes

[103] Sr. Constituinte José Mendonça – Acho que quanto mais separamos mais discriminamos. Não há igualdade entre o homem e a mulher, inclusive física. Sei que há diferenças na constituição de cada um, tanto no espírito como na mente, porque homem e mulher foram feitos para finalidades diferentes. São complementares: um complementa o outro. O homem é parte do ser humano genérico, como também a mulher o é. E ambos formam a perfeição do ser humano. O homem e a mulher se aperfeiçoam na sua relação íntima, na sua compreensão, na sua ajuda e na sua complementação. Acho louvável a atitude das nossas companheiras mulheres que são Constituintes, de quererem marcar a sua presença. (…) Pessoa humana se refere ao homem e à mulher, conceito que acho mais rico. É melhor do que separar: direitos do homem, direitos da mulher. (…) Dou razão a elas de lutarem pelo seu espaço, que foi usurpado muitas vezes pelo machismo. Mas, para quem tem muita mulher em casa, como eu, que tenho 7 filhas, não tem razão de separar essa relação. E juridicamente, podem ter as repúblicas comunistas populares vontade de valorizar mais a mulher, já que lá elas são muito mais escravizadas do que no mundo ocidental.

Sra. Constituinte Lúcia Vânia – Gostaria de não entrar nessa discussão. Peço aos companheiros que ouçam o Conselho da Condição Feminina. Quero acrescentar o seguinte: isso não foi feito com o objetivo de marcar a presença da bancada feminina no Congresso. Apenas refletimos o desejo de centenas de mulheres estudiosas da matéria e que estão reivindicando a sua presença na Constituinte, presença no sentido de que seja realmente aberta a discussão em torno da discriminação. O companheiro deve sentir que temos um problema gravíssimo: trabalhos iguais para salários diferentes. Isso não é coisa que se possa passar num Brasil moderno, num Brasil que nós queremos. Acho que não compete ficar aqui defendendo a posição da mulher ou do homem. (…) Não sou nenhuma militante do movimento feminista, mas acredito nele e aceito a ideia como forma de podermos realmente abrir a discussão em torno da mulher (…). Se ela fosse só sobre o ser humano, não estaríamos discutindo a posição da mulher. Repito: a própria denominação da Comissão faz com que o problema da mulher seja encarado de forma mais clara e evidente, e que a posição, principalmente da mulher trabalhadora, seja respeitada nesse país.        (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 20.)

[104] Essa organização foi a Convergência Socialista que, em 1994, integrou o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).

[105] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 9 – Observatório Sistema de Justiça, de políticas públicas e do Legislativo do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[106] Possui doutorado em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e é professora adjunta da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em partidos políticos em perspectiva comparada e gênero.

[107] Em contraposição a este argumento poder-se-ia mencionar que este mesmo Congresso Nacional não hesitou em depor uma Presidenta da República, e que esse seria um indício de cumprimento de sua função fiscalizatória. Entretanto, tal assertiva cometeria o equívoco de desconsiderar que a presidenta Dilma Rousseff se encontrava em uma situação que poderia ser definida como de “lame duck”. De maneira precisa, esta categoria se remete a governantes cujo sucessor já foi eleito, mas sua consequência é a mesma vista no caso de Dilma que, tal como o governante com sucessor, sofria com a diminuição contínua de sua influência junto a outros políticos durante aquele que muito provavelmente seria um limitado tempo a frente do governo. Não se tratava, portanto de uma ação fiscalizatória, mas da escolha da maior parte do Legislativo de formar uma coalizão junto ao Chefe do Executivo que viria, em detrimento daquela que no momento atuava no Palácio do Planalto.

[108] Agradeço muitíssimo ao Secretário Parlamentar Arthur Rotta, que realizou a intermediação junto à Cedi. Seu apoio foi fundamental para que eu tivesse acesso célere a dados fundamentais para essa pesquisa que estavam indisponíveis no sítio da Câmara dos Deputados.

[109] Neste trabalho foram analisados todos os casos disponibilizados pelo site da Câmara entre 2001 e abril de 2018. As ausências identificadas em função das descontinuidades na numeração foram listadas e solicitadas junto ao setor responsável na Câmara dos Deputados. Este, apesar de ter confirmado o recebimento da demanda, até a data do envio deste artigo, ainda não havia dado retorno em relação ao conteúdo solicitado.

[110] Lei Maria da Penha, artigo 5º.

[111] Lei 243 de 2012. Disponível em: http://www.comunicacion.gob.bo/?q=20130725/ley-n%C2%BA243-contra-el-acoso-y-violencia-politica-hacia-las-mujeres. Acesso em: 09 de abril de 2018. Defiine como “political harassment” as “acts of pressure, persecution, molestation, or threats” and “political violence” as “acts and/or threats of physical, psychological, or sexual violence”, aimed at shortening, suspending, impeding, or restricting the exercise of a woman’s political po- sition, or inducing a woman, against her will, to commit an act or fail to do something related to her political mandate.

[112] Decreto n. 8, 2016

[113] Art. 10 do Código de Ética e Decoro Parlamentar.

[114] Segundo relato da Deputada Federal Maria do Rosário, o Conselho de Ética não cumpriria sua função em casos de denúncias de agressões às mulheres: “Na Câmara dos Deputados as parlamentares atuam em um ambiente hostil, em que o desrespeito é comum e a impunidade constante. O Conselho de Ética fecha os olhos às agressões que sofremos e dessa maneira contribuem com a perpetuação de uma cultura sexista”. Disponível em: http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/nao-aceitaremos-por-maria-do-rosario/. Acesso em 05 de março de 2018.

[115] É sabido que nem Madison nem Tocqueville, tal como a maioria de seus contemporâneos, expressavam qualquer preocupação com a exclusão política das mulheres, mobiliza-se aqui seus argumentos em relação a sobreposição das maiorias em relação às minorias, pois ainda que estes não debatam o tema central do presente trabalho, trazem reflexões importantes sobre as limitações ao direito das maiorias quando estes subjugam as minorias.

[116] Fonte: http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm. Acesso em 05 de março de 2018.

[117] Os dados disponibilizados iniciam-se a partir da segunda gestão do Conselho de Ética e Decoro da Câmara, por isso não há coincidência com o ano em que a 51º legislatura foi iniciada.

[118] A posse dos Deputados Federais ocorre em 01 de fevereiro, razão pela qual seus mandatos se estendem até o ano seguinte à eleição que renova os mandatos.

[119] Ana Arraes (PSB/PE), Eliziane Gama, Iara Bernardi (PT/SP), Iriny Lopes (PT/ES), Janete Capiberibe (PSB/AP), Liliam Sá (PROS/RJ), Margarida Salomão (PT/MG),  Maria Do Carmo Lara (PT/MG), Maria Lúcia Cardoso (PMDB/MG), Neyde Aparecida (PT/GO), Sandra Rosado (PSB/RN), Vanessa Grazziotin (PC do B/AM).

[120] Ângela Guadagnin (PT/SP), Marisa Serrano (PSDB/MS), Jozi Araújo, Luiza Erundina (PSB/SP), Professora Marcivania (PT/AP), Rosane Ferreira (PV/PR), Solange Amaral (DEM/RJ), Tia Eron, Zelinda Novaes (PFL/BA).

[121] Para cada estudante homem do ensino superior brasileiro, as mulheres ocupam 1,4 vaga, e a expectativa de vida feminina é de 67,8 anos, frente a 63,1 anos da masculina.

[122] Disponível em: http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm. Acesso em: 07 de abril de 2018.

[123] Eva Chiavon (Casa Civil), Kátia Abreu (Agricultura), Emília Maria Silva Ribeiro Curi (Ciência, Tecnologia e Inovação), Izabella Teixeira (Meio Ambiente), Inês Magalhães (Cidades) e Nilma Lino Gomes (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos).

[124] Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/presidencia/ministros. Acesso em: 08 de abril de 2018.

[125] Disponível em: http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/nao-aceitaremos-por-maria-do-rosario/. Acesso em 05 de março de 2018.

[126] Disponível em: http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/11/24/violencia-contra-mulheres-na-politica-violencia-politica-de-genero-por-vanessa-grazziotin/. Acesso em: 05 de março de 2018.

[127] Representação 27 de 2014 apensada à 26 de 2014 e 31 e 32 de 2008

[128] Representação 41 de 2005 foi tornado sem efeito pela aprovação do Parecer do processo 01/2005, referente à Representação nº 28/2005.

[129] Representação 02 de 2015, p. 2.

[130] Ibdem

[131] Disponível em: http://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/eticaedecoro/pareceres/parecer-preliminar-do-dep-sandro-alex-rep-02-15-em-desfavor-do-dep-alberto-fraga. Acesso em: 24 de abril de 2018.

[132] Representação 03 de 2015, p. 2.

[133] Relatório Deputado Iazzi, p.3

[134] Ibdem

[135] Representação 17 de 2016, p.1.

[136] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão “ Observatório Sistema de Justiça, de políticas públicas e do Legislativo” do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[137] Graduanda em direito pela Universidade de São Paulo

[138] Graduanda em direito pela Universidade de São Paulo

[139] Argentina (2009), Bolívia (1995), Brasil (2006), Chile (2005), Colômbia (2008), Costa Rica (2007), Equador (1995), El Salvador (2010), Guatemala (2008), Honduras (1997), México (2007), Nicarágua (2012), Panamá(2013), Paraguai (2000), Peru (1997), dentre outros países.

[140] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: FLACSO, 2015.

[141] O TJSP aderiu às diretrizes no dia 9/03/2017. Fonte: <http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=38986>. Acesso em: 3 mar. 2018.

[142] A plataforma pode ser acessada através do site: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjpg/>. Acesso em 3 mar. 2018.

[143] A plataforma pode ser acessada através do site: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do>. Acesso em 3 mar. 2018.

[144] A pronúncia refere-se ao processamento da denúncia pelo Tribunal do Júri; uma fase anterior ao julgamento que decide por quais crimes o réu será inicialmente julgado. Tal questão é melhor abordada na seção 3.2.1. do presente artigo, na qual as linhas gerais do processamento dos casos nos Tribunais do Júri são delineadas.

[145]  Nos termos do art. 74, § 1°, do Código de Processo Penal “Compete ao tribunal do Júri os julgamentos previstos nos arts. 121, §§ 1° e 2° (…) do Código Penal, consumados ou tentados.

[146] 413, §1º do Código de Processo Penal (CPP).

[147] As diretrizes nacionais de aplicação do feminicídio, nesse sentido, colocam: “Uma especificidade na atuação do Poder Judiciário no Brasil, nos crimes contra a vida, é o julgamento por Conselho de Sentença formado por jurados leigos, homens e mulheres, em sessão presidida por juiz(a) de direito. Neste sentido, a incorporação da perspectiva de gênero no julgamento das mortes violentas de mulheres, sobre a qual vem se tratando nessas Diretrizes Nacionais, assume caráter especial nesses processos, uma vez que toda a prova colhida, a tese da acusação e da defesa são direcionadas ao convencimento do Conselho de Sentença, a quem caberá a decisão final de reconhecimento da prática do crime e a responsabilidade penal do acusado, resultando assim em sua condenação pelo crime que lhe é imputado. (…) é importante enfatizar que a mudança de olhar e de práticas que se pretende promover na atuação de todo(a)s o(a)s profissionais que atuam na inves gação, processo e julgamento desses crimes terá maior êxito se considerarem que o(a)s jurado(a)s, como representantes da sociedade, pautarão sua compreensão dos fatos e sua decisão a par de valores e percepções calcadas em estereótipos de gênero que normalmente surgem para justificar a violência contra as mulheres.” (PASINATO, 2016, p. 103)

[148] Homicídio qualificado. Art. 121. […] § 2° Se o homicídio é cometido: […] Feminicídio. VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: Pena: reclusão, de 12 a 30 anos. § 2°-A. Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

[149] Regis Prado (2014, p. 428) opõe-se a tal distinção. Por outro lado, Bianchini, Bittencourt, Delmanto e Mirabete, entre outros, trabalham com tal diferenciação.

[150] Homicídio qualificado – § 2° Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (grifos nossos).

[151]O TJDFT foi o primeiro a uniformizar a aplicação da qualificadora, considerando-a objetiva na medida em que relacionada à LMP: “Para a incidência da qualificadora do feminicídio (CP, art. 121, §2º, VI), é desnecessário indagar a motivação do agente para a prática do delito, bastando que o homicídio tenha sido praticado contra a mulher, em contexto de violência doméstica e familiar, nos termos do artigo 5º da Lei 11.340/2006.” Cf: Acórdão n. 994055, Relator Des. WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 3ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 9/2/2017, Publicado no DJe: 17/2/2017.)

[152] Nesse sentido entendeu o TJ do Distrito Federal e Territórios, dizendo ser  “desnecessário indagar a motivação do agente para a prática do delito, bastando que o homicídio tenha sido praticado contra a mulher, em contexto de violência doméstica e familiar, nos termos do artigo 5º da Lei 11.340/2006.” Acórdão n. 994055, Relator Des. WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 3ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 9/2/2017, Publicado no DJe: 17/2/2017

[153] De acordo com o autor: Matar o mais fraco, algo francamente objetivo (…). O homem mata ou lesiona a mulher porque se sente (e é, na maioria imensa dos casos) mais forte. Mas seu motivo não é esse: mata porque acha que ela o traiu; mata porque quer livrar-se do relacionamento; mata porque é extremamente ciumento; mata até porque foi injustamente provocado. (p. 612).

[154] Conforme explicam as diretrizes, “entre as características da violência baseada no gênero, ressalta-se a continuidade no tempo e os efeitos diretos e indiretos sobre a mulher e pessoas próximas a ela. Na violência doméstica e familiar, esta continuidade é descrita como um continuum” (PASINATO, 2016, p. 40)

[155] Nesse sentido, pode ser ressaltado o seguinte trecho das diretrizes nacionais: Em ações penais instauradas em crimes cujas vítimas são mulheres é comum que sejam estabelecidas teses de defesa concentradas na apresentação de elementos nega vos com relação à ví ma, procurando, desta forma, com preconceitos e estereótipos de gênero, enaltecer a imagem do(a) réu(ré), em detrimento da imagem da vítima. Dentro desta construção, que revela cultura machista e patriarcal, a ví ma será considerada responsável pela violência perpetrada, o que, não raras vezes, leva ao reconhecimento do privilégio, ou, até mesmo, da legítima defesa, com a absolvição do(a) agressor(a). (p. 107)

[156] Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (…)  II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

[157] Art. 61 São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (…) II – ter o agente cometido o crime: a) por motivo fútil ou torpe; b) para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido; d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum; e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; (…) Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (…)  III – ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; (…) c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; (…)

[158]  Homicídio qualificado: §2° – Se o homicídio é cometido: (…) VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino

[159] § 2º-A: Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

[160] Homicídio qualificado: § 2° Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – por motivo fútil; (…)

[161] No caso, o argumento mobilizado pelo julgador para manter a determinação da primeira instância de condenar o réu por homicídio simples é o respeito à decisão soberana do júri. Acórdão 0003199-97.2016.8.26.0445.

[162] Depois da sentença do júri, os desembargadores não podem valorar novamente as provas, em respeito ao princípio da soberania dos veredictos, previsto pelo art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição, devendo limitar-se à verificação de eventual contrariedade entre a solução encontrada pelo júri e os elementos probatórios colhidos – o que determinaria a realização de um novo julgamento.

[163] Ao trabalhar apenas com os acórdãos, delimitamos nossa visão acerca dos argumentos mobilizados em todo o processo. Portanto, importante ressaltar que é possível que tal discussão tenha sido trazida pela defesa na peça da apelação, porém os magistrados optaram por não fazer referência a ela no relatório.

[164] Estudantes de Direito (graduação) pela Universidade Federal do Paraná no PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.

[165] Advogada. Bacharela em Direito pela UFPR

[166] Advogada. Bacharela em Direito pela UFPR.

[167] Estagiária de pós-graduação em Direito no MPPR. Pós-graduanda em Ministério Público: Estado Democrático de Direito na FEMPAR. Pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial na PUCPR. Bacharela em Direito pela PUCPR.

[168] Cabe ressaltar que aqui nos referimos às mulheres brancas e de classe média e alta, que ainda não tinham se inserido no mercado de trabalho, já que para as mulheres negras e pobres não trabalhar não era uma opção. Ademais, o termo mercado de trabalho formal foi utilizado já que dentro de casa as mulheres já realizavam o trabalho doméstico.

[169] Reconhecemos a imperatividade do debate sobre a divisão internacional do trabalho. Todavia, em razão do espaço limitado do presente estudo, não nos debruçaremos acerca do tema. Para mais informações, cf. BITTENCOURT, Naiara Andreoli. A superexploração da força de trabalho no neodesenvolvimentismo brasileiro: uma crítica teórico-jurídica. 2017. 216 f. Dissertação (Mestrado em Direito), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.

[170] Apesar de as autoras compreenderem que o termo “esclarecida” é marcado por racismo linguístico, como aponta o movimento negro, optamos pela transcrição do trecho de Mészáros, também como forma de desvelar tal marcador de raça na linguagem.

[171] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Observatório do Sistema de Justiça, de Políticas Públicas e do Legislativo, do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[172] Mestrando vinculado ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), desenvolvendo pesquisa sobre acesso à justiça, democratização do sistema de justiça brasileiro, participação popular e Defensoria Pública, com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

[173] Professora Associada ao Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) e do Programa de Mestrado em Direito da mesma Instituição. Livre Docente em Direitos Humanos pela FDRP/USP (2017).

[174] A pesquisa conta com fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – processo nº 2017/14883-2.

[175] Entendemos por sistema de justiça o conjunto amplo de instituições, agências, textos legais, atores e práticas responsáveis pela administração dos conflitos e pela efetivação de direitos formalmente reconhecidos via Estado (SEVERI, 2017).

[176] O Fórum Justiça constitui-se em uma livre iniciativa proveniente de um grupo de Defensores(as) Públicos(as) fluminenses, em parceria com a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade (DHPJS), vinculado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como construção coletiva de espaço, assenta-se no tripé agentes do sistema de justiça (Estado), setor acadêmico e organizações e movimentos sociais. Projeta-se em diferentes regiões do país, agregando sujeitos interessados em discutir política judicial e em elaborar ações estratégicas para a democratização do sistema de justiça (FÓRUM JUSTIÇA, 2015).

[177] A Lei Complementar Federal nº 132/2009 reformou a Lei Complementar Federal nº 80/1994, que organiza e prescreve normas gerais relativas às Defensorias Públicas dos Estados, do Distrito Federal e da União.

[178]As propostas debatidas e aprovadas nos Ciclos de Conferências da DPESP são organizadas em nove temas: infância e juventude; direitos do idoso e da pessoa com deficiência; promoção e defesa dos direitos da mulher; diversidade e igualdade racial; cidadania, direitos humanos e meio ambiente; situação carcerária; direitos do consumidor; habitação, urbanismo e conflitos agrários; e política de atendimento e educação em direitos humanos.

[179] Cursa Gestão Pública Municipal na Universidade Federal Fluminense – UFF/UAB.

[180] Incubadora: projetos das Universidades que apoia Organizações Sociais para os temas da formação para gestão, dentro do tripé ensino, pesquisa e extensão (2011).

[181] Retirada ou pró-labore, refere-se aos valores recebidos ao final de cada mês, como resultado do trabalho de coleta, triagem e venda do material, não cabe o termo salário por se tratar de relações de trabalho cooperativo, ou seja, não existe a pessoa do patrão (2002).