GUERRA ÀS DROGAS E A CANNABIS MEDICINAL: A HIPOCRISIA DA PROIBIÇÃO E OS PARADOXOS DOS AVANÇOS REGULATÓRIOS

Resumo

O artigo aborda a questão da funcionalidade da guerra às drogas sob a ótica da economia política da pena, traçando em seguida uma abordagem crítica acerca da aplicação da Lei de Drogas e das regulamentações administrativas da ANVISA quanto à evolução da cannabis medicinal. Por fim, delineio à luz das experiências nacionais e internacionais possíveis caminhos pro estancamento do genocídio à conta-gotas operado pela guerra às drogas e caminhos para universalização da cannabis medicinal.

Artigo

GUERRA ÀS DROGAS E A CANNABIS MEDICINAL: A HIPOCRISIA DA PROIBIÇÃO E OS PARADOXOS DOS AVANÇOS REGULATÓRIOS

 

Autor: Natan Aguilar Duek. Advogado atuante nas áreas de direito penal, direito canábico e litígio estratégico de direitos humanos, formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e com Mestrado em Teoria e Filosofia do Direito pela PPGD-UERJ, com ênfase em Criminologia e Sociologia da Punição.

Resumo: O artigo aborda a questão da funcionalidade da guerra às drogas sob a ótica da economia política da pena, traçando em seguida uma abordagem crítica acerca da aplicação da Lei de Drogas e das regulamentações administrativas da ANVISA quanto à evolução da cannabis medicinal. Por fim, delineio à luz das experiências nacionais e internacionais possíveis caminhos pro estancamento do genocídio à conta-gotas operado pela guerra às drogas e caminhos para universalização da cannabis medicinal.

Palavras-chave: Guerra às drogas; economia política da pena; cannabis medicinal; criminologia crítica.

  1. Introdução

Enquanto o debate sobre a maconha medicinal no âmbito regulatório avança, escancara-se a hipocrisia da guerra às drogas operada nas últimas décadas. O paradoxo é evidente: a cannabis medicinal é entregue a domicílio legalmente para quem tem recursos para custear um medicamento importado, mas centenas seguem sendo presos e mortos por portarem quantidades de maconha. Nas palavras de Malaguti Batista, “a política criminal de drogas imposta ao mundo pelos Estados Unidos forjou uma nova guerra e um novo inimigo: a ponta pobre do mercado varejista[1]”. Neste artigo, abordarei, em primeiro plano, sob a ótica da economia política da punição[2], a função estrutural da criminalização das drogas no âmbito da reprodução do capitalismo, para adentrar às determinantes estruturais e topologias de poder[3] que atuam em favor da proibição[4]. Em seguida, discutirei alguns dos recentes (e tímidos) avanços no cenário medicinal e possíveis caminhos para uma legalização à brasileira que enfrente a profunda dívida histórica relativa à reparação dos efeitos deletérios da criminalização ocasionados nas populações negras, pobres e faveladas.

Não é novidade na literatura criminológica que a guerra às drogas (ou guerra aos pobres) cumpre funções determinadas no âmbito da estrutura social de acumulação e da reprodução da dominação. A criminalização das condutas relativas ao porte e uso de drogas ilícitas, bem como a demonização dos integrantes das organizações varejistas de tráfico atuam como mecanismo de othering[5] e como justificativa ideológica para militarização de bairros, subtração de direitos, ampliação do sistema penal letal[6] e para os chamados “enquadros”. É uma atividade que, pela sua grande penetração no imaginário como altamente reprovável, “serve de sustentáculo ideológico para o avanço do controle penal sobre os alvos efetivos do sistema”, nas palavras de Flauzina[7].

Tais enquadros[8], batidas policiais, e o perfilamento racial dessas abordagens, por óbvio, também não podem ser excluídas do âmbito dos fenômenos da punição com determinada função disciplinadora: trata-se de uma lembrança a todo o momento às populações pobres, negras e faveladas que o olhar seletivo do sistema punitivo está voltado a elas e sua chance de encontrarem criminalização secundária será substancialmente maior, por serem alvos frequentes da atividade policial. Nesse cenário, a guerra às drogas serviu (e continuou servindo) por décadas, em todo o globo, como justificativa perfeita para perpetuação destas categorias de punição e disciplinamento em prol das classes historicamente concebidas como perigosas.

Os dados, de fato, confirmam o que a teoria criminológica latinoamericana já afirmava há décadas. Segundo um relatório preliminar derivado de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “a política antidrogas em vigor no Brasil criminaliza a pobreza, se pauta pela prisão de jovens negros de baixa escolaridade e com baixas quantidades de drogas, envolve pouco esforço investigativo e tem como regra violação de domicílios e de outros direitos[9].”. Quanto ao perfil dos criminalizados, como seria esperado, 86% são homens, 45% negros (muito embora quase 56% dos perfis não informe a cor do réu, devendo este dado ser visto com bastante desconfiança), com idade até 30 anos (71%), sem educação básica (50%) e trabalha como autônomo (43%). Em 73% dos processos, houve algum tipo de condenação por algum dos crimes imputados. Além disso, 84% dos casos começam com prisões em flagrantes (sem diligências prévias), sendo que 50% dos flagrantes ocorreram em via pública e 32,9% na casa do suspeito. Nos casos das denúncias anônimas, 93% das denúncias foram mencionadas apenas no depoimento dos policiais. Além disso, em 49% dos processos analisados, houve violação de domicílio sem mandado judicial. São dados que demonstram que a criminalização das condutas relacionadas às drogas se dirige seletivamente à população mais vulnerável à criminalização e se converte em instrumento de expropriação contínua de seus direitos fundamentais básicos em nome da eficiência da persecução penal. Um cenário de direito penal excedente que foi fagocitado pela racionalidade neoliberal imposta ao poder punitivo como um todo.

Do ponto de vista estrutural, a criminalização das drogas é o elemento jurídico da aparência que, em larga medida, corresponde ao grande encarceramento e à expansão da letalidade policial enquanto duas faces do agigantamento do poder punitivo[10]. A imposição da guerra às drogas se converteu no “grande eixo moral, religioso, político e ético da reconstrução do inimigo interno[11]”.

Este controle sobre as populações negras e pauperizadas exibe raízes sociais mais profundas que remontam à escravidão. Não à toa, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro já em 1830 proibia o uso do “pito do pango” em seu Código de Posturas, muito embora seu uso fosse até então difundido no mercado têxtil e medicinal. Curiosamente, tal regramento já previa punição de multa ao vendedor, enquanto ao escravo se aplicava 3 dias de cadeia[12]. A criminalização das drogas também é derivação direta das ordenações municipais, dos crimes de polícia e das contravenções penais, especialmente a contravenção de vadiagem[13]: um mecanismo jurídico que historicamente concedeu às agências punitivas a possibilidade constante de controle e disciplinamento sobre uma determinada classe social e categoria racial.

Dois séculos depois da criminalização do pito do pango, muito embora a lei não prescreva mais tal desigualdade expressa, sua aplicação seletiva seguiria, explicitando as desigualdades da instância material. O paradigma da diferenciação, como não poderia deixar de ser, além de classista e racista, é orientado pela permanência da ideologia positivista como aqueles descritos no início do século passado na clássica obra Difíceis Ganhos Fáceis, de Malaguti Batista: já naquela época, aos pobres, a prisão; aos ricos, a internação[14], em processos nos quais se discutia elementos como “famílias desestruturadas”, “atitudes suspeitas”, “meio ambiente pernicioso à sua formação moral”, “ociosidade”, “falta de submissão,” “brilho no olhar” e “desejo de status que não se coaduna com a vida de salário mínimo[15]”.

  1. A hipocrisia da guerra às drogas frente ao advento da cannabis medicinal

O atual paradoxo reside no fato de que as agências punitivas exercem todo o tipo de restrição sobre o exercício dos direitos (inclusive sobre a vida) sob a justificativa do combate às drogas para proteção do suposto bem jurídico da saúde pública (se é que possa ser considerada bem jurídico[16]), quando na prática, é a saúde dos moradores de comunidades de periferias de todo o Brasil que é sacrificada neste genocídio a conta-gotas[17], como demonstrou um levantamento realizado na Pesquisa Saúde na Linha de Tiro[18]. Dentre as favelas mais expostas a tiroteios no Rio de Janeiro, em 60% das operações, os hospitais foram fechados; a chance de um morador dessas regiões desenvolver insônia aumenta em 73%; 62% de desenvolver depressão e 42% de desenvolver hipertensão. Paradoxalmente, algumas destas condições poderiam ser tratadas com a chamada cannabis medicinal.

Desde a mudança no regramento regulatório da ANVISA, que passou a permitir a importação de produtos derivados de cannabis medicinal em hipótese específicas[19], bem como o advento do associativismo, o paradoxo entre a cannabis legal e a “maconha ilegal” escancara a falta de racionalidade e o caráter elitista e racista da proibição.

Antes de tudo, o óbvio precisa ser dito: maconha é a mesma coisa que cannabis e diferenciar tais termos alimenta esta diferenciação seletiva entre remédio e entorpecente. Cria-se, ainda, uma verdadeira incongruência no âmbito do sistema jurídico, que, em determinada circunstância, reconhece o caráter medicinal de uma planta, mas, em diversas outras, impõe severas penas de prisão para algumas dezenas de núcleos verbais a ela relativos. A própria distinção entre uso medicinal e uso social (ou adulto) deve ser visto com algumas ressalvas pelos setores críticos, sob pena de se adotar um critério arbitrário de legalidade (e seletividade) como categoria de diferenciação entre dois indivíduos que portam a mesma substância.

Poderia se argumentar que tais produtos cuja importação é permitida passam por um rigoroso controle de qualidade, diferentemente da maconha popularmente encontrada pelas ruas e bocas de todo o país. Mas isso só é parcialmente verdade: como boa parte dos produtos importados é proveniente dos Estados Unidos, onde a regulação para o chamado hemp ou cânhamo (não muito diferente da diferenciação cannabis/maconha e cânhamo por aqui) é a mesma dos suplementos alimentares, ou seja, pouco rigorosa. Sob argumento do controle de qualidade, o atual regramento regulatório proíbe o cultivo em território nacional, enquanto permite a importação de medicamentos cujo controle de qualidade é deveras questionável. Para piorar, impõe-se às associações regramento da RDC nº 327/19, incompatível com a natureza do associativismo, enquanto aos medicamentos importados o controle é mais flexível. Não se trata, por evidente, de defender maior controle nos produtos importados, mas da isonomia perante a nascente tecnologia social associativista.

É aqui que reside outro paradoxo da hipocrisia da proibição. Por qual razão é permitido importar medicamentos e até mesmo insumos de outros países, mas é crime cultivar esta mesma planta em território nacional, produzindo aqueles mesmos insumos? O atual cenário propicia o surgimento de uma indústria farmacêutica milionária com pouco interesse na reforma do modelo de controle de drogas, lucrando com restrições regulatórias que rememoram as épocas do mercantilismo. Não estamos falando de uma tecnologia diferenciada que demande importação de insumos, mas de uma planta como boldo e manjericão, de uso milenar, cujo plantio não ofereceria nenhuma lesão à saúde pública.

  1. A resistência dos cultivadores e associativistas perante o poder punitivo

Nesse cenário incerto, as pioneiras e corajosas associações de pacientes se destacaram como bravo exemplo de desobediência civil perante uma criminalização injusta, capaz de mudar centenas de realidades. Também funciona como uma tecnologia social capaz de criar novas realidades que fujam às tradicionais estruturas empresariais de concentração de recursos, de modo que o associativismo busca produzir melhoria das condições de vida dos pacientes que utilizam tais medicamentos, e na ampliação das capacidades produtivas dos atores envolvidos, aliado à transformação de relações sociais rumo a uma realidade menos desigual e hierarquizada[20].

Hoje, são mais de uma dezena de associações cujo funcionamento é autorizado por decisão judicial e que buscam promover a universalização do acesso. São bravos militantes da causa que colocam em risco sua liberdade (não são poucos os casos de associativistas presos ou criminalizados) em prol de uma causa coletiva, enfrentando obstáculos de toda ordem para sua formalização e objetivando universalizar o acesso aos medicamentos derivados de maconha.

Os habeas corpus individuais para autocultivo também surgiram como estratégia jurídica de proteção dos cultivadores perante o poder punitivo. O interessante desta estratégia é a inversão da lógica inquisitorial, de forma que “paciente de ‘boa-fé’ se apresenta para o Judiciário dominando a instrução processual”, demonstrando por meio da documentação médica a necessidade daquele cultivo[21]. Embora se trate de um importante marco no cenário da cannabis medicinal, não é errado apontar que os salvos-condutos individuais se inserem diante de uma lógica de privilégios e não necessariamente de universalização de direitos. São uma medida necessária para defesa de liberdade de centenas de cultivadores medicinais enquanto a proibição durar, mas não podem ser vistos como uma saída coletiva para tal crise.

  1. Considerações Finais

Diante de um cenário permeado de preconceitos e irracionalidades, fica claro que o debate pautado por critérios de validação científica e criminológica indica a legalização do uso de maconha como medida necessária para estancar o genocídio a conta-gotas. Não é o objetivo aqui mostrar que os efeitos deletérios da proibição são muito piores do que as ofensas à saúde pública que poderiam derivar de uma hipotética utilização desenfreada de maconha. Convido, ainda, o leitor a um raciocínio contrafático: se nem mesmo nas prisões repletas de agentes prisionais, consegue-se coibir o consumo de drogas, por qual razão acharíamos ser possível realizar tal controle na sociedade fora das grades? Como já demonstrou o neurocientista Carl Hart, a maioria dos usuários de droga não sofre de dependência: são membros responsáveis de suas comunidades, pagam suas contas, cuidam de suas famílias, e são artistas, engenheiros, advogados, médicos, políticos, professores, dentre outros. O que causa a dependência não é necessariamente a substância, mas o contexto social da pessoa que a consome, que é agravado pelo proibicionismo[22].

Se a legislação criminaliza fortemente as condutas associadas a qualquer droga, tímidos avanços vêm ocorrendo no âmbito da jurisprudência dos Tribunais Superiores. No último dia 13 de setembro, a 3ª Seção do STJ chancelou a possibilidade de habeas corpus para autocultivo de cannabis medicinal, quase um ano após ambas as Turmas Criminais firmarem relevantes precedentes nesta seara, por sete votos a dois. O fato de até mesmo o debate medicinal gerar divergências certamente é um sintoma relevante da crise vivida. No STF, a votação pelo reconhecimento da inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha está em 5×1, faltando apenas um voto favorável à descriminalização, muito embora não estejam claros os critérios objetivos que advirão deste julgamento. O temor é que a depender do critério quantitativo escolhido, o superencarceramento pode inclusive ser agravado, em virtude da possibilidade de inversão prática do ônus da prova que pode derivar da adoção de um critério quantitativo[23]. Em reação à decisão do STF, a Presidência do Senado apresenta uma vergonhosa PEC que visa a criminalizar o uso de qualquer quantidade entorpecente[24]. No jogo político permeado de achismos e irracionalidades, perdem as populações submetidas diariamente à vigilância policial.

Enquanto isso, diversos países centrais já legalizaram ou descriminalizaram o uso adulto, e há alguns anos esta onda chegou na América Latina: Uruguai, México, Argentina e Colômbia estão entre os países cuja legalização do uso adulto vem sendo discutida, e o Brasil não pode perder (novamente) a oportunidade de ficar atrás nesse debate.

Nosso modelo de legalização deve levar em conta as peculiaridades brasileiras, bem como a necessidade de universalização do acesso à maconha medicinal, não podendo ficar concentrado na mão de um pequeno grupo de empresas estrangeiras que pouco reverterão para o país. Deve privilegiar o associativismo enquanto tecnologia social de democratização do acesso e criar incentivos para que tais associações possam se desenvolver e baratear cada vez mais seus medicamentos. Tampouco podemos deixar de lado a dívida histórica imensa que remonta à escravidão. Nosso atraso, por outro lado, nos permite observar a diversidade de modelos de legalização e aprender com seus erros e acertos.

Neste cenário, o estado de Nova York apresentou um modelo promissor ao legalizar a posse de até 85g de maconha para uso adulto ou 24g de concentrados canábicos para maiores de 21 anos, bem como o cultivo de até 6 plantas por pessoa, ou o máximo de 12 plantas por família. Seu pioneirismo, contudo, diz respeito à reparação histórica. 150 mil pessoas com condenações anteriores relacionadas à maconha terão seus registros eliminados pelo judiciário daquele estado; 50% das licenças para comercialização serão destinados a indivíduos que viveram em comunidades desproporcionalmente impactadas pela Guerra às Drogas, bem como empresas pertencentes a minorias, mulheres e agricultores. Além disso, 40% da receita tributária gerada pelas vendas será destinada à ajuda das comunidades mais prejudicadas pela guerra às drogas, por meio de um Fundo Comunitário[25].

Diante dos diversos entraves para avanço da pauta no cenário nacional, o avanço da pauta medicinal nos estados pode ser uma forma eficiente de promover a universalização do acesso aos medicamentos à base de maconha. Diversas medidas podem ser pensadas a nível estadual, como o estabelecimento de incentivos ou isenções tributárias às associações, parcerias com a rede pública para distribuição de extratos medicinais a partir de farmácias-vivas do Sistema Único de Saúde, capacitação dos profissionais da rede saúde para prescrição e compreensão do sistema endocanabinoide e incentivo à pesquisa nas Universidades.

No âmbito nacional, os argumentos em prol da legalização são diversos e consistentes, mas fato é que sob qualquer ótica de critério racional, até mesmo do ponto de vista da arrecadação tributária e da geração de emprego, a legalização do uso adulto e a regulamentação do cânhamo industrial poderia constituir um novo boom na economia brasileira, transformando centenas de realidades. Uma legalização à brasileira certamente precisará endereçar o profundo problema da reparação da guerra aos pobres, bem como o dreno de uma relevante fonte de renda para o comércio varejista ilegal, pensando em políticas que sejam capazes de promover a reparação dos efeitos deletérios ocasionados às comunidades e às centenas de realidades individuais afetadas pelas diversas formas de manifestação do sistema penal dirigido ao controle das classes marginalizadas. Se fomos o último país das Américas a proibir a escravidão, que não sejamos os últimos a revogar os remanescentes da Lei do Pito do Pango.

Notas:

[1] MALAGUTI BATISTA, Vera. A juventude e a questão criminal no Brasil. p. 1. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2016/02/1053773b21eb7cc6e5600f16cc0663e4.pdf >  Acesso em 1.2.23.

[2] Economia política da pena (EPP) é o nome dado a uma corrente de pensamento construída a partir das formulações antológicas de Rusche e Kirchheimer, Pachukanis continuada por autores como Melossi e Pavarini, Hall , Piven e Cloward , dentre outros cuja listagem exaustiva parece desnecessária. O relevante é que tais formulações culminam em novas abordagens de autores contemporâneos, imprimindo uma abordagem materialista aos campos da criminologia e da sociologia da punição a partir de dois postulados fundamentais, derivados essencialmente do clássico Punição e Estrutura Social : (i) mudanças na tendência de punição não são determinadas por variações nas estatísticas oficiais de criminalização, mas sim pelas condições do mercado de trabalho e pela degradação das condições de vida para a classe trabalhadora ; e (ii) os padrões e formas de punição tendem a estar ligados às mudanças nos modos de produção, enquanto parte integral da totalidade do sistema social. Ver: HALL, Stuart et al. Policing the crisis: Mugging, the state and law and order. London: Macmillan, 1978 apud DAL SANTO, Luiz Phelipe. Economia política da pena: contribuições, dilemas e desafios. Op. Cit; GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social theory. Oxford University Press: Chicago, 1990; GARLAND, Crime and social order in contemporary society. Oxford University Press: Chicago, 2001; DAL SANTO, Luiz Phelipe. Economia política da pena: contribuições, dilemas e desafios. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021. Acesso em: 1.3.23. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/52261. p. 4; KIRCHHEIMER, Otto. RUSCHE, Georg. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004. pp. 265-281.

[3] MINHOTO, Laurindo Dias. Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal [livro eletrônico]. São Paulo: Escola Superior de Advocacia da OAB SP, 2021. p. 200.

[4] Diversas das reflexões a seguir provém de minha dissertação de mestrado, onde foram originalmente desenvolvidas.  (DUEK, Natan Aguilar. Financeirização, superencarceramento e sistema penal letal: uma análise da correlação entre a financeirização da economia brasileira e a expansão do sistema punitivo. 2023. 172f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.)

[5] Othering é um processo de criação de um outro diferente, desviante, desumanizado, que é uma ameaça ao padrão dominante e precisa ser encarcerado ou completamente eliminado: nas palavras de Gonçalves, em um “processo simbólico em que o grupo social e o espaço a serem expropriados são retórica e discursivamente estabelecidos como um Outro prejudicado, inferiorizado atrasado ”. Para isso, mobiliza-se a insegurança subjetiva, o medo do crime, os sentimentos talvez mais primitivos de preservação explorados ao extremo para reprodução da ordem social. Ver: GONÇALVES, Guilherme Leite. Capitalismo e violência jurídica: ampliando a sociologia do direito marxista. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2018. Ano 26, nº 303. p. 18.

[6] Cabe uma ressalva terminológica: sistema penal subterrâneo foi a terminologia utilizada primeiramente por Castro para se referir a um sistema penal que operaria em “letal, mediante poderes excepcionales, como detenciones a disposicion del poder ejecutivo, y tambien um sistema penal subterraneo, que se ocupa de los secuestros, asesinatos, torturas y desapariccines forzadas, o sea, de los massacres ”, em fenômeno que não é estranho à normalidade do poder punitivo. Embora o termo mais recorrente na criminologia seja subterrâneo, fazendo referência à sua clássica formulação, utilizarei a palavra sistema penal letal, uma vez que que a emergência de um modelo de estado baseado em letalidade policial alçou o que era subterrâneo a um sistema que existe à margem da legalidade e dentro da legalidade, incentivado pelos gestores da legalidade de forma geral. Nada há de subterrâneo nisso. Trata-se da outra face punitiva de um sistema de punição voltado ao controle populacional das populações pobres e faveladas: a emergência de um sistema penal letal, que tampouco pode ser chamado de paralelo sob pena de incorrermos em fetiches legalistas. Constitui, em verdade, mais uma manifestação de uma face do poder punitivo voltada para o disciplinamento das populações pobres e negras, que cumpre funções determinadas no âmbito dos processos de expropriação de direitos e acumulação de capital. (CASTRO, Lola Anyar de. Derechos humanos, modelo integral de la ciência penal y sistema penal subterrâneo.In: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas Penales y Derechos  Humanos en América Latina (Primer Informe). Buenos Aires: Depalma, pp. 233-247, 1984; DUEK, Natan Aguilar. Op. Cit.)

[7] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação de Mestrado em Direito pela Universidade de Brasília. 2006. p. 33

[8] DA MATA, Jéssica. A Política do Enquadro, São Paulo: RT, 2021, pp. 150-156.

[9] Criminalização da pobreza e pouca investigação no combate às drogas: veja conclusões de pesquisa engavetada pelo governo. G1. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/18/criminalizacao-da-pobreza-e-pouca-investigacao-no-combate-as-drogas-veja-conclusoes-de-pesquisa-engavetada-pelo-governo.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-mobile&utm_campaign=materias> Acesso em 18.3.23.

[10] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Op. Cit. p. 92.

[11] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Op. Cit. p. 92.

[12] “É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.” (BARROS, André; PERES, Marta Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas Periferia, vol. 3, núm. 2, julio-diciembre, 2011 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Duque de Caxias, Brasil)

[13] ROORDA, J. G. L. Criminalização da vadiagem na Primeira República: o sistema penal como meio de controle da população negra (1900-1910). Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 135, n. Setembro, p. 269-306, 2017.

[14] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis. Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Revan, 2003, pp. 130-133.

[15] Ibidem, pp. 133-134.

[16] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 51

[17] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro: a criminologia do ser-aqui. Traduzido por Juarez Tavares. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2021.

[18] LEMGRUBER, Julita et al. Saúde na linha de tiro [livro eletrônico]: impactos da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro / Julita Lemgruber. [et al.] ; ilustração Laerte Coutinho. – Rio de Janeiro : CESeC, 2023. Disponível em < https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2023/08/RELAT%C3%93RIO_Saude-na-linha-de-tiro.pdf> Acesso em 14.9.23.

[19] Tal RDC foi elaborada em cumprimento à decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública n. 0090670-16.2014.4.01.3400

[20] OLIVEIRA, Monique Batista de. VIEIRA, Miguel Said. AKERMAN, Marco. O autocultivo de Cannabis e a tecnologia social. In: Saúde Soc. São Paulo, v.29, n.3, e190856, 2020 1

[21] RAMOS, Lucia Lambert Passos. FIGUEIREDO, Emilio Nabas. SABOIA, Vladimir. O HC enquanto estratégia da advocacia ativista para incidir jurídica e politicamente na questão do cultivo de cannabis para fins medicinais no Brasil. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/depeso/380585/o-hc-na-questao-do-cultivo-de-cannabis-para-fins-medicinais>

[22] HART, Carl. Drogas para adultos – tradução Pedro Maia Soares – 1ª. ed – Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

[23] Avaliação do Impacto de Critérios Objetivos na Distinção Entre Posse para Uso e Posse para Tráfico. Associação Brasileira de Jurimetria.

[24] Pacheco diz que vai apresentar PEC para criminalizar drogas em qualquer quantidade. CNN . Disponível em <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pacheco-diz-que-vai-apresentar-pec-para-criminalizar-drogas-em-qualquer-quantidade/> Acesso em 15.9.23.

[25] KREPP, Anita. Nova York cheira a maconha, agora legalizada. Poder 360. Disponível em <https://www.poder360.com.br/opiniao/nova-york-cheira-a-maconha-agora-legalizada/> Acesso em 15.9.23.

 

Palavras Chaves

Guerra às drogas; economia política da pena; cannabis medicinal; criminologia crítica.