REFORMA TRIBUTÁRIA NA PANDEMIA: PONTOS SENSÍVEIS SOBRE AS ALÍQUOTAS SINGULARES FACE AOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE

Resumo

Este trabalho versa sobre a atual reforma tributária proposta pelo governo federal, precisamente sobre o impacto que o estabelecimento de alíquotas singulares por meio de leis ordinárias pelos entes federativos causará ao contribuinte, assim como o que alíquota singular da União causará nestes mesmos entes, face aos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Foram analisados documentos, gráficos, e doutrina pertinente para o sustento deste estudo, concluindo-se que o período pandêmico não seria o momento oportuno para uma reforma, acarretando ainda mais fragilidade para o contribuinte, entes federados e para o Estado Democrático de Direito brasileiro.

Abstract

This paper deals with the current tax reform proposed by the federal government, precisely about the impact that the establishment of singular rates through ordinary laws by the federal entities will cause to the taxpayer, as well as what the singular rate of the Union will cause in these same entities, in face of the principles of legality and legal certainty.Documents and doctrine were analyzed, concluding that the pandemic period would not be the opportune moment for a reform, causing even more fragility for the taxpayer, federated entities and for the Democratic State of Brazilian Law

Keywords:
tax reform; pandemic; principle of legality, principle of legal security; singular rates

Artigo

REFORMA TRIBUTÁRIA NA PANDEMIA: PONTOS SENSÍVEIS SOBRE AS ALÍQUOTAS SINGULARES FACE AOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE.

 

Valéria Gravino[1]

Resumo:

Este trabalho versa sobre a atual reforma tributária proposta pelo governo federal, precisamente sobre o impacto que o estabelecimento de alíquotas singulares por meio de leis ordinárias pelos entes federativos causará ao contribuinte, assim como o que alíquota singular da União causará nestes mesmos entes, face aos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Foram analisados documentos, gráficos, e doutrina pertinente para o sustento deste estudo, concluindo-se que o período pandêmico não seria o momento oportuno para uma reforma, acarretando ainda mais fragilidade para o contribuinte, entes federados e para o Estado Democrático de Direito brasileiro.

Palavras-chave:

reforma tributária; pandemia; princípio da legalidade, princípio da segurança jurídica; alíquotas singulares

TAX REFORM IN THE PANDEMIC: SENSITIVE POINTS ABOUT SINGULAR RATES IN FACE OF THE PRINCIPLES OF LEGAL SECURITY AND LEGALITY.

Abstract:

This paper deals with the current tax reform proposed by the federal government, precisely about the impact that the establishment of singular rates through ordinary laws by the federal entities will cause to the taxpayer, as well as what the singular rate of the Union will cause in these same entities, in face of the principles of legality and legal certainty.Documents and doctrine were analyzed, concluding that the pandemic period would not be the opportune moment for a reform, causing even more fragility for the taxpayer, federated entities and for the Democratic State of Brazilian Law

Keywords:

tax reform; pandemic; principle of legality, principle of legal security; singular rates

  1. Introdução

O Brasil tem passado por várias tentativas de realização da reforma tributária. É fato que o sistema brasileiro é alterado cotidianamente, porém uma reforma estrutural, como está sendo proposta, requer cuidados extremos com a negociação com diversos setores da nossa sociedade, com o equilíbrio econômico; com a harmonia social e com o período e cenário com o qual vivemos, atualmente.

É notório que é essencial que uma reforma tributária no Brasil seja realizada. No entanto, esta reforma toca em pontos extremamente sensíveis que não podem ser desprezados e que este trabalho se dedica a ressaltá-los, dentro de alguns limites, considerando que não é nossa pretensão esgotá-los. Mesmo porque, um assunto de natureza tão ampla e em trâmite, não permite que afirmações taxativas lhe sejam atribuídas, já que a provisoriedade e especificidade de vários temas nele contidos acabam por alterá-lo, substancialmente, ao longo do tempo.

Assim, a relevância do tema é latente ou presumida; afinal, tratando-se de alterações profundas de tributação em plena pandemia mundial, a insegurança é sentida em todos os setores da vida humana no planeta; não faria o menor sentido realizar mudanças desta natureza sem trazer à baila a questão da segurança jurídica, pois ela é inerente à qualquer modificação de ordem social, política e econômica e propriamente jurídica, que atinja o contribuinte pós-moderno se é que já não poderia ser intitulado contemporâneo, para adequar, minimamente, à nossa era histórica.

É cristalino que não se pode desmerecer os benefícios que as propostas trouxeram, sendo que as de número 110 e 45, ambas do ano de 2019, que encabeçam a reforma tributária, existem dispositivos idênticos aos de propostas anteriores.

No entanto, a PEC nº 110/2019, prevê a extinção de alguns tributos, quais sejam: IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS; e a criação de dois novos, quais sejam, o IBS (imposto sobre bens e serviços) e a CBS (contribuição sobre bens e serviços), uma espécie de excise tax, imposto cobrado sobre produtos manufaturados, no momento da fabricação e não da venda, mas isto apenas para alguns casos específicos.

Já a PEC nº 45/2019, prevê uma subdivisão do IBS entre os demais entes federativos. Isto porque, uma vez estipulado na referida PEC que ele é um tributo federal, seria ele implantado através de lei complementar federal e as respectivas alíquotas, seriam determinadas em lei ordinária, para efeito de distribuição aos Estados, Municípios, Distrito Federal e à própria União. Importante ressaltar que esta propõe a substituição de cinco tributos, quais sejam: o IPI, PIS, Cofins, ISS e ICMS.

A distribuição da arrecadação prevista pela PEC nº 45/2019, institui um sistema de várias alíquotas, de natureza federal, estadual, distrital e municipal, remontando a alíquota única que seria estabelecida, a princípio, pela lei complementar federal, gerando assim as chamadas alíquotas singulares. Logo, quanto maior a participação desta alíquota singular, que determinado ente federativo estabelecer por meio de lei ordinária no tributo em tela, maior será a fatia deste ente na distribuição da arrecadação, visto que a partilha desta distribuição será realizada conforme a participação de cada ente.

É exatamente neste cenário que reside a questão da segurança jurídica. Em um país de dimensões continentais como o nosso, onde em plena pandemia global a necessidade de um ente federado possui o mesmo grau que o de outro, ressalvadas as dimensões geográficas e demográficas de cada um, porém encontrando-se todos no mesmo contexto de estado de alerta e calamidade, não comportam tão específicas variáveis; e é onde se contextualiza este trabalho.

  1. Da Segurança Jurídica

A Segurança Jurídica é um princípio que está implícito, por assim dizer, na nossa Constituição Federal. Diz-se “implícito”, porque não existem, expressamente, dispositivos literais estabelecendo este princípio. O que há, são dispositivos outros que em sua composição carregam a segurança jurídica como uma ideia subentendida a ser concretizada de acordo com o que estabelece a regra do dispositivo.

Em sentido amplo, poderia se dizer que o princípio da segurança jurídica é uma das bases do Estado Democrático de Direito; isto não quer dizer que o que está sempre preservado não pode ser alterado em definitivo, posto que o direito se modifica conforme a sociedade, e uma vez que esta não é estática, há necessidade de que o direito acompanhe as suas mudanças, tal como estabelece o notório brocardo latino “ubi societas ibi jus”, em tradução livre: “onde há a sociedade, há o direito”. Isto quer dizer que, apesar das modificações sociais, o direito deve acompanhá-las e modificá-las dentro de um respeito a algumas regras, quais sejam, a da coisa julgada, a do ato jurídico perfeito e a do direito adquirido.

Como está em tela o Estado Democrático do Direito, existem ainda outras regras ou normas imperiosas, como as dos direitos humanos e fundamentais, cláusulas pétreas, normas consagradas como características deste tipo de organização estatal, onde a liberdade deve exercer sua primazia, desde que o direito de um indivíduo não ultrapasse a linha tênue que delimita o direito de outrem.

A priorização da segurança jurídica decorre da necessidade de que não há possibilidade de se promover o bem-estar social em seu sentido mais amplo; sem ela, ocorre a quebra de um outro princípio constitucional basilar, que é o princípio da legalidade estabelecido no inciso II do art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), onde ninguém poderá fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei que assim estabeleça, ou seja, é a garantia constitucional, de que a lei deverá nortear os atos dos indivíduos, em vida social e; devidamente cumulado com o princípio da segurança jurídica, tem-se que nada poderá ser alterado sem lei que assim defina. Discussão paralela seria a de que, como um princípio não estabelecido em norma constitucional, que é o princípio da segurança jurídica, poderia ter relevância vital; porém não é este o foco deste trabalho. Por ora, pretende-se chegar à inferência de que tanto o princípio da legalidade quanto o da segurança jurídica, são princípios tão basilares a ponto de permitir que um indivíduo exerça a sua liberdade com o consentimento de que certas flexibilizações são necessárias para o convívio social dentro do Estado Democrático de Direito, sem que essas flexibilizações violem os seus direitos mais fundamentais.

A título ilustrativo, a segurança jurídica deve garantir que as leis não sejam alteradas com a conveniência de seus proponentes e eventuais interessados, seja de que credo, ideologia, grupo ou classe pertença. No Estado Democrático de Direito, as diferenças são mitigadas para que a exclusão social e econômica não seja alvo de injustiças e barbáries.

Por isso, a Justiça não pode ser segregadora e sim, ratificadora dos direitos fundamentais que eventuais normas jurídicas possam violar. A segurança jurídica pode não comparecer na discussão de uma lei cuja proposta está em trâmite, entre as sanções do Poder Executivo e as discussões com o Poder Legislativo, porém, poderá comparecer quando contestada a sua validade constitucional pelo Poder Judiciário.

Sendo assim, as propostas de normas jurídicas para a reforma tributária não podem servir de meio para a promoção de desigualdade social, promoção de injustiças à medida em que a liberdade do contribuinte está em xeque. Muito ainda há que ser discutido e em que pese as afirmações dos proponentes da reforma alegarem a questão da agenda política para justificar a discussão de tal reforma em pleno período pandêmico, existem questões ainda mais relevantes a serem consideradas dentro da reforma em comento. Há quem diga que prefere uma lei, do que lei nenhuma; porém se esta lei servir para endossar perigo ou malefícios, ela torna-se mais danosa do que a sua própria ausência. E no caso em tela, ainda existem muitas leis tributárias (na verdade, todo o sistema) que necessitam urgentemente de reforma, porém pode ser que a discussão desta que está em questão, venha sendo realizada em um momento impróprio e pode acabar por estruturar mais uma guerra fiscal, que seria o caso das alíquotas singulares mencionadas do introito deste trabalho, algo nocivo se analisarmos do ponto de vista do cenário pandêmico, onde todos os entes federados, sem exceção, precisam igualmente de auxílio econômico. Ao menos neste aspecto, os entes federados estão em estado de igualdade, porém terão que disputar, através das referidas alíquotas, qual será o seu quinhão na distribuição da arrecadação federal, o que não é muito diferente do que hoje já ocorre, levando-nos a refletir sobre onde estaria o benefício da reforma, neste ponto, necessariamente, a não ser acirrar ainda mais a disputa por alíquotas por meio de leis, conforme prevê a própria PEC nº 45/2019.

Mais do que nunca, faz-se necessária a segurança jurídica nesta questão supramencionada, para que o princípio da legalidade não venha a ser mitigado hodiernamente; ou seja, para que venha a ser utilizado para encorajar disputas entre os entes federativos por questões econômicas, para melhor participarem da distribuição da arrecadação realizada pela União.

A situação supra descrita, cumulada com tantas outras, afora a existência de dois sistemas tributários pelo período de dez anos, como é previsto nas referidas PECs, caso a reforma seja aprovada, traz uma imensa sensação de insegurança jurídica; afinal toda transição deve ser extremamente cautelosa, sob pena de tornar ainda mais tormentosa a situação do contribuinte brasileiro que vive sob a égide de um dos sistemas tributários mais nocivos do mundo.

Prova disto é o gráfico a seguir, demonstrando o Brasil como o país que mais se paga impostos na América Latina, de acordo com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico):

Não há como negar que as formas de tributação no Brasil acabam por estimular a má distribuição de renda no país. E os estados e municípios, na disputa constante pela maior fatia da proporção que lhes há de caber pela fragmentação das alíquotas singulares, considerando o agravante do contexto pandêmico, apenas nos demonstra que não é cristalino chegar-se à conclusão de que não há como sustentar que haverá uma melhor distribuição da arrecadação e consequentemente, de renda, dentro deste quadro e muito menos uma simplificação, como constantemente tem sido pregado.

O Professor Ricardo Lodi Ribeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, discorre em artigo publicado no site Conjur, sobre a justificação das PECs no que tange à guerra fiscal:

                                                              “Para evitar a guerra fiscal, não há, de acordo com a proposta, qualquer                                                       possibilidade de concessão de benefício fiscal no IBS, não restando espaço                                                   para extrafiscalidade, como reconhece a exposição de motivos da proposta.                                                            De acordo com essa justificação, o imposto deve ser informado pela                                                                               neutralidade, devendo as desigualdades regionais ser combatidas pela                                                                 União, e não pelos entes periféricos da federação.”

 

No entanto, ainda que bem intencionada a justificação das PECs a respeito da tentativa de prevenção da guerra fiscal entre os entes federativos, a iniciativa, ao que tudo indica aponta para o corolário indesejável da insegurança jurídica quanto às alíquotas singulares; afinal, elas passarão a existir de forma equânime, onde a partir disto, uma nova guerra fiscal será instaurada, que é a dos entes federados para disputar através da edição de leis ordinárias, seus quinhões sobre a arrecadação, o que sem qualquer sombra de dúvida atingirá o contribuinte em cheio, diante da certeza de que seu estado ou município não captará a contento a sua parte na distribuição, da forma como está prevista na reforma e ainda mais grave, como se verá a seguir.

O secretário da Fazenda do Paraná, Renê Garcia Junior, em recente entrevista ao caderno de Economia do Jornal Gazeta do Povo, ilustra de forma tangente o acima disposto:

“Essa postura do governo de mandar agora seu projeto de reforma tributária, após um ano de discussão com estados, e só da sua parte e com a sua alíquota definida, não é uma coisa republicana condizente com um pacto federativo mais avançado. Não é coisa de quem quer dialogar. Essa coisa autoritária cria clima de antagonismo”.

 Dizemos que este trecho tangencia o acima disposto, justamente porque acrescenta ainda, a questão da alíquota já pré-fixada da União Federal no projeto da reforma tributária em comento. Ela própria não concorrerá no que diz respeito à alíquota singular e muito pelo contrário; da forma como a questão fora colocada, ela própria, a União é quem estaria, a princípio, promovendo a insegurança jurídica dos entes federados, deixando à mercê, em pleno período pandêmico, estados e municípios, de uma concorrência e entraves legais, para ao contrário de mitigar, estabelecê-las, por mais que se pregue que não seja o almejado pela reforma.

Ou seja, até que entes federados processem normas para estabelecimento de suas alíquotas, a União não fará a distribuição por falta de determinação da norma em processamento. E com isto, uma perda substancial será computada para estes mesmos entes. Assim, mais um ponto a favor da insegurança jurídica passa a ser computado no quadro das desvantagens da reforma tributária, endossando o que dispôs em entrevista ao mesmo periódico acima mencionado o secretário municipal de finanças de Curitiba, Vitor Puppi, presidente da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf):

O governo federal não quer invadir a esfera de competências dos estados e municípios, e por isso não propõe uma reforma mais ampla. Mas ele também aumenta a alíquota da sua CBS ao mesmo tempo, tornando quase impossível que estados e municípios avancem em suas alíquotas”.

Ao que tudo indica, o momento da pandemia é conveniente para que o governo federal assegure o aumento de sua fatia na arrecadação. No entanto, se a inadimplência ou a quebra dos 137 contribuintes permanecer, a arrecadação dos entes federados reduzirá drasticamente gerando um a quebra por uma espécie de efeito dominó, demandando da União um auxílio emergencial, considerando de um lado, a demora no processamento de leis ordinárias para implementação da nova alíquota singular a ser acoplada à fatia da União e; de outro lado, a margem dos estados e municípios ficará bastante reprimida.

Como resultado o contribuinte ficará sobrecarregado; afinal, nos dias atuais o Imposto sobre Serviços (ISS) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuem alíquotas de 2 a 5% e de 10 a 18%, respectivamente. Se estas alíquotas forem acopladas pelos entes federativos ao novo tributo único, considerando o quinhão pertencente à União, já pré-fixado em 12%, dificilmente não se chegará a uma alíquota total menor do 30% do IBS, superando em muito, países como a Alemanha (16%).

À título ilustrativo, o gráfico abaixo poderá demonstrar que, se dentro do sistema tributário atual, o país já se encontrava entre os países do topo da lista de maior carga tributária, dentro os países da OCDE, não será muito diferente. Aliás este quadro poderá se agravar, no caso de guerra fiscal por ocasião das alíquotas singulares entre os entes federativos, como se verá a seguir:

Em contrapartida, os entes federativos estariam de certa forma, sem alternativa, pois, partindo-se da premissa acima, teriam que reduzir suas alíquotas, o que não os tornaria viáveis do ponto de vista financeiro, somando-se ainda o cenário pandêmico causado pela Covid-19.

Assim, torna-se cristalino que o contribuinte sofrerá o efeito dominó supracitado, por qualquer lado que se analise a questão. Segundo o art. 35 da Constituição Federal de 1988 os municípios poderão sofrer intervenção dos estados, se aqueles deixarem de prestar contas devidas na forma da lei; ou que não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e serviços públicos de saúde (BRASIL, 1988).

Trata-se o comando supra de exceção em relação à intervenção de um ente federativo sobre o outro e, considerando uma outra exceção, que é o art. 34 do mesmo diploma legal, onde este confere à União a competência de suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos ou caos não entreguem aos municípios receitas tributárias nos prazos legais.

De acordo com as propostas da reforma sobre as quais temos discorrido neste trabalho, analisando a questão por este ângulo, há um risco total de intervenção da União sobre os estados se estes falharem nas obrigações supracitadas e de intervenção dos estados sobre os municípios, violando profundamente o pacto federativo, causando uma total instabilidade, desvelando mais um aspecto grave de insegurança jurídica, uma vez que em uma Federação, não é permitido que os governos de cada ente intervenham entre si, salvo as exceções ora descritas, que passarão a ser regra, se as alíquotas singulares de cada um não forem estipuladas em harmonia, já que, da forma como se encontra atualmente, se tornará inviável a não intervenção por conta desta brecha constitucional, que poderá tornar o pacto federativo inócuo diante da primazia econômica de um ente sobre o outro, acarretando grave ameaça à democracia brasileira.

O gráfico abaixo, extraído do site do Tesouro Nacional, mais precisamente do estudo Estimativa da Carga Tributária Bruta no Brasil – 2019, já demonstra a supremacia da União sobre as receitas tributárias, não restando margem para os demais entes federados, haja vista a carga tributária bruta a seguir apresentada:

Desta forma, não há menor possibilidade, ao menos no que tange ao aspecto jurídico, a viabilidade da manifestação da segurança jurídica na reforma tributária proposta, sob qualquer ângulo que se analise a questão, em que pese as vantagens trazidas pela mesma reforma.

  1. Do princípio da legalidade

Conforme acima descrito, o princípio da legalidade insculpido no inciso II do art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), estabelece que ninguém poderá fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei que assim estabeleça, ou seja, é a garantia constitucional, de que a lei deverá nortear os atos dos indivíduos, em vida social.

Fora também exposto no item anterior, que o princípio da legalidade é tão basilar a ponto de permitir que um indivíduo exerça a sua liberdade com o consentimento de que certas flexibilizações são necessárias para o convívio social dentro do Estado Democrático de Direito, sem que essas flexibilizações violem os seus direitos mais fundamentais.

As flexibilizações supramencionadas dizem respeito à concessão que o indivíduo ou o grupo social aceita realizar para que exerça a sua liberdade econômica. Esta concessão é por sua vez o pacto social que o grupo estabelece e que os indivíduos per si aceitam em pagar tributos para que o Estado não se sinta tentado a interferir na liberdade dos indivíduos, é como se estes destacassem uma parte de seu patrimônio, para que possam exercer a liberdade; já que, sem arrecadação tributária, um Estado que garante a liberdade individual, não se sustentaria. É como se, para ter liberdade, fosse necessário pagar impostos e, a arrecadação por sua vez, ao garantir a liberdade, oprimisse a liberdade plena. Esta é grosso modo, uma tese defendida pelo Professor Ricardo Lobo Torres, que se enquadra muito bem, de forma análoga, à questão que trazemos à baila sobre o princípio da legalidade.

Se o princípio da legalidade estabelece o acima descrito, existem aqui uma hipótese de risco de que, uma vez que a reforma tributária em tela estabeleça que os entes federados devem editar lei ordinária para estabelecer suas alíquotas singulares que serão acopladas ao tributo único, haverá uma mitigação de tal princípio, posto que será ele utilizado para viabilizar leis com intuito claramente econômico que não só de estabelecimento da justiça social e do equilíbrio financeiro-tributário.

Partindo-se desta premissa, tem-se que ao estabelecer por lei complementar que entes federados editem por lei ordinária suas alíquotas, é o que dá início à guerra fiscal; é como se o princípio da legalidade, por estabelecer que a lei é imperativo do cumprimento de atos lícitos, fosse atribuída a ela a “culpa” digamos assim, de permitir que uma guerra fiscal fosse estabelecida. Por si só, a premissa acima representa a mitigação do princípio da legalidade, ou seja, uma supressão do seu verdadeiro fundamento que o de estabelecer a paz social, ao permitir a criação de normas jurídicas para harmonizar o convívio social e não o contrário.

Para que o princípio da legalidade não venha a ser mitigado hodiernamente; ou seja, para que venha a ser utilizado para encorajar disputas entre os entes federativos por questões econômicas, para melhor participarem da distribuição da arrecadação realizada pela União. Se “mitigado” não for exatamente o termo, que seja utilizado então o “suprimido” ou “alterado”, mas desde que fique cristalino de que um princípio deste quilate não pode sofrer alterações desta natureza para suprir os interesses econômicos convenientes a uma determinada classe ou grupo.

O que causa as hipóteses e dúvidas refletidas neste trabalho é o fato de que assuntos de tamanho melindre possam ter passado despercebidos aos olhos dos envolvidos sejam de natureza técnica ou política. Caso tenha passado, recomenda-se que estas reflexões sejam procedidas de forma extenuante. Caso contrário, é de se considerar de um lado que possam ter passado despercebidas de forma conveniente, diante do imbróglio que poderá ser instaurado e aí reside uma outra circunstância que recairia no item do princípio da segurança jurídica.

Diz-se que o assunto supra seria pertencente ao item da segurança jurídica, considerando que haveria neste ponto, a necessidade de que este princípio fosse recuperado pelo Poder Judiciário, caso a reforma, uma vez aprovada, fosse alvo de questionamento por via judicial. Neste caso, o próprio Poder Judiciário poderia imbuir-se de aplicar ou não o princípio da segurança jurídica, quanto à validade das contestações que lhe fossem apresentadas a respeito da reforma em comento. Poder-se-ia assim, aventar-se uma chance de ver eventuais direitos adquiridos sendo consagrados e reiterados pelas cortes judiciais, com o fim de manifestar a primazia da segurança jurídica sobre os aspectos econômicos da reforma tributária.

Reitere-se que este trabalho não se presta a contestá-la de todo, e sim de refletir sobre alguns os aspectos que se consideram negativos, como forma de contribuição ao bom debate, onde os argumentos ora apresentados, podem tranquilamente serem vencidos de pronto, por meio da técnica jurídica ou econômica, porém poderão ter um pouco mais dificuldade de serem vencidos do ponto de visto lógico e social dentro das circunstâncias que atravessamos não apenas no que tange à pandemia instaurada pelo coronavírus, mas sim por ser este ano de 2020, um ano de eleições , com cofres públicos à míngua.

Voltando-se para o aspecto do princípio da legalidade, afirme-se o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contém abstratamente nas leis”.

Portanto, não há como escapar da edição de leis para estabelecer as atividades e regras dos entes; não há como escapar do fato de que na reforma tributária em comento, as bases da criação das leis pelos entes sejam estipuladas no sentido exclusivamente econômico, como se a União instigasse os entes federados, a concorrerem entre si e ameaçando, simultaneamente o contribuinte. Os entes federados ficarão presos entre duas opções: se diminuírem a alíquota singular, podem quebrar em plena pandemia e se não o fizerem, quebrarão o contribuinte que os financiam.

E é neste ponto que a liberdade do contribuinte, que já não era plena, e sim, parcial, por conta da arrecadação tributária necessária para justamente suportar a liberdade da vida social cidadã, estaria colapsada pelo manejo sistemicamente viciado dos fundamentais princípios, da legalidade e da segurança jurídica, que, uma vez criados para basear e viabilizar o Estado Democrático de Direito, serão assim utilizados e não utilizados, respectivamente de forma contrária e por que não, cruel, contra os contribuintes brasileiros.

  1. Considerações finais

A linha entre o poder de tributar da federação e a liberdade dos contribuintes é muito tênue; somente uma democracia frágil pode permitir que seus princípios fundamentais não sejam utilizados ou utilizados de forma contrária ao disposto por uma Carta Magna. A reforma tributária já vem há muitos governos tentando ser implantada, porém, em se tratando das constantes ameaças à nossa democracia, recentemente presenciadas por diversas situações, sejam políticas, judiciais, econômicas e sociais, no contexto atual, deve ser, desta vez, profundamente estudada, pesquisada, debatida, analisada, por todos os setores da nossa sociedade; nenhum aspecto poderá deixar de ser observado. E além da nossa fragilidade democrática, há ainda três outras, que é o cenário pandêmico, os cofres vazios e o ano de 2020 ser um ano eleitoral; ou seja, nada contribui para que eventuais desmandos da reforma em tela sejam obstados.

Toda a cautela é pouca, em que pese as promessas de simplificação e demais vantagens sejam muito bem-vindas para um país que figura entre os que possuem os piores sistemas tributários do mundo.

Neste breve trabalho, tratamos apenas do periculum in mora que a falta de observação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade podem acarretar, sobre o aspecto da criação de leis ordinárias por parte dos entes federativos para defender suas alíquotas singulares trazem para o contribuinte

Enfim, enquanto a reforma tributária estiver em processamento, ainda há a esperança de que não seja tarde para que estes pontos ora levantados, sejam fortemente considerados, para efeito de reforço do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Referências

  1. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.
  2. Câmara dos Deputados. Reforma Tributária: Comparativo da PEC 45/2019 (Câmara) e da PEC 110/2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultorialegislativa/fiquePorDentro/temas/sistema-tributario-nacional-jun-2019/reformatributaria-comparativo-das-pecs-em-tramitacao-2019. Acesso em: 27/09/2020
  3. Diário do Comércio. ‘É o melhor momento para aprovarmos uma ampla reforma tributária’. Disponível em: https://dcomercio.com.br/categoria/leis-e-tributos/e-omelhor-momento-para-aprovarmos-uma-ampla-reforma-tributaria. Acesso em: 27/09/2020
  4. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2008.
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  6. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
  7. MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
  8. Revista Consultor Jurídico. Reforma tributária simplifica, mas tem efeitos regressivos e centralizadores. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-08/ricardolodi-reforma-tributaria-simplifica-efeitos-regressivos Acesso em: 27/09/2020.
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  10. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Processo, 2018.
  11. Uol Economia. Brasil só perde para Cuba na lista de países da América Latina onde mais se pagam impostos. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/03/25/brasil-so-perde-para-cuba-nalista-de-paises-da-america-latina-onde-mais-se-pagam-impostos.htm. Acesso em: 27/09/2020

Notas:

[1] 1 Advogada, MBA em Direito Tributário, MBA Gestão e Business Law, certificações pela Harvard/Edx, práticas jurídicas certificadas pelo Instituto Innovare, professora e escritora. Membro da Academia de Letras do Brasil.

Palavras Chaves

reforma tributária; pandemia; princípio da legalidade, princípio da segurança jurídica; alíquotas singulares